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As Coisas e os Museus IV: a política, a vaidade, o orgulho e o ressentimento

Patrimônio e Sociedade; memória social, identidade cultural, patrimônios, coleções e muito mais

As Coisas e os Museus IV: a política, a vaidade, o orgulho e o ressentimento

Após refletirmos sobre o papel dos museus, e de outras entidades culturais, em, de alguma forma, oficializar a cultura, ditar o que é merecedor de ser mesmo uma peça de museu; sobre os esforços, questões e problemas da preservação técnica das coisas já musealizadas, e nesse ponto a oficialização da cultura já aconteceu; e sobre pontos imateriais inerentes as coisas materiais, como a memória e os valores simbólicos depositados nelas, podemos unir todos esses momentos, todas essas teorias, agregando-as a sociedade. Para isso, usaremos, como de costume, um exemplo, uma historinha, para facilitar a compreensão e a reflexão, e para não os deixarmos no limbo da narração ou para não os tornarmos pontos sem nós, lembremos do Antônio Fone que tem um telefone de disco que pertenceu a sua avó, e da dupla Barão e Miro da porcelana e da caneca esmaltada, durante o texto.

Museus, e pensemos aqui no museu público de história de alguma região pequena, que já aventamos nesta série, costumam ter o cargo de direção como um cargo de comissão, portanto, escolhidos os diretamente pelo poder executivo, seja pelo prefeito ou pelo secretário de cultura. Por vezes os critérios de escolha levam em consideração a capacidade profissional do eleito (pelo executivo não pelo povo), por outras não. Claro que não posso afirmar isso sistematicamente porque não tem como eu, nem ninguém imagino, fazer ideia do que se passa na cabeça de quem faz essa escolha, entretanto, podemos ver por meio do trabalho desempenhado a capacidade, acadêmica ou de experiência do nomeado. Quando este ou esta é da área, tem conhecimentos específicos da gestão museológica, ótimo!, quando não, vivamos com isso.

A questão nevrálgica aqui não é exatamente a capacidade acadêmico-profissional da pessoa, mas o que ela pode fazer uma vez que está na direção de um museu. Se há bagagem quanto as teorias e práticas da administração de museus, espera-se e costuma-se ver ações fundamentadas, decisões criteriosas e justificativas esclarecidas, se não há essa bagagem há a boa vontade, ou melhor, a vontade, se vai ser boa ou ruim só a experimentação das decisões dirá.

No primeiro exemplo, Miro, Barão e Antônio Fone tentam doar seus pertences a um museu gerido por um museólogo, profissional que tem traquejo com os trâmites cotidianos da instituição. Sendo uma pessoa lúcida no assunto, o julgamento sobre a entrada destes objetos ou não para a coleção permanente é avaliada com parâmetros, desde o estado físico do objeto para as questões de preservação que comentamos anteriormente, até a real necessidade e possível função deste objeto no museu. Caso perceba-se uma efetiva função de envergadura pública para a cidade o objeto fica no museu, caso seja apenas uma vaidade de quem doa, em preservar seu nome e sua memória, ou o nome e a memória de sua família, não tendo as possibilidades públicas suficientes, não serão aceitos os objetos.

No segundo exemplo, num museu com um diretor que é mais amigo do prefeito que diretor de museu as coisas podem ser diferentes. Miro é um lavrador, então, seu círculo social é junto aos lavradores, criadores de animais, etc. Antônio Fone é da “classe média”, como se estivesse no meio de uma sociedade estamentada. E o Barão, bem, é o Barão. Conhece todo mundo, é amigo do prefeito e também do diretor do museu, assim, a chance de que o julgamento seletivo da musealização das peças tenha peso a favor, já no início, para o Barão em detrimento dos outros é grande. Dessa forma, a formação do acervo deste museu, que deveria ser de cunho cultural e de importância pública e não privada, torna-se de cunho político e de importância privada e não pública.

Um exemplo próximo que posso citar é o de uma ex-professora, membra do Conselho de Patrimônio Cultural de uma cidade que, porque sua prima disse que não queria, não sugeriu a casa de um tio seu já falecido e pai desta prima como um bem cultural a ser tombado pelo município. O tal tio falecido foi um escritor, linguista e professor de Língua Portuguesa de muita projeção social e importância cultural, mas só porque a prima da tal membra do Conselho de Patrimônio Cultural achou que isso traria problemas para a família, principalmente pela burocratização de se mexer em qualquer coisa na casa, como uma pintura externa, ela achou melhor não sugerir. Isso é um exemplo de uso político da cultura e não propriamente cultural.

Nestes contextos e exemplos é que estão subjetivamente a vaidade, o orgulho e o ressentimento. Por vezes o querer doar coisas ao museu é pura vaidade, de individual mesmo, e não com intuitos de colaborar com a construção cultural da cidade. Quando aceitos os objetos é que pode se gerar o orgulho ou o ressentimento. Mas em que situações? Já presenciei em experiências profissionais a visita de pessoas ao museu onde atuei que, ao se deparar com um ornamentado relógio de mesa dos oitocentos, por exemplo, olhava com os olhos brilhando para quem estivesse perto e ao mesmo tempo para o nada, talvez em busca de um tipo de público, e dizia “este relógio foi do meu avô! Bom saber que o museu ainda o guarda”. Aqui é um exemplo de vaidade, da memória familiar e ao mesmo tempo de uma memória cultural de si, e de orgulho, pelo objeto ter sido oficializado como cultura da cidade além de receber os esforços técnicos necessários para “se manter vivo”.

Já o ressentimento pode ser encontrado num exemplo muito parecido, e curiosamente é dotado de vaidade também. Quando alguém vai ao museu querendo doar algo e não é aceito é comum o doador frustrado se ressentir. Aí os discursos podem ser variados, desde o famoso “quando eu era [insira aqui algum cargo público de notoriedade] todos me bajulavam, agora que não sou nada não me dão atenção”, até o “este museu não permite a participação cidadã! É tudo uma falácia!”. Ainda mais curioso é quando o ressentimento acontece mesmo com o objeto tendo sido aceito e oficializado enquanto cultura: se um museu por bastante tempo traz em suas exposições, nas etiquetas que identificam os objetos expostos, os nomes de quem doa, gera-se ali uma “culturalização” da coisa musealizada e também do nome do ex-dono, entretanto, uma vez doada, como o nome diz, não é mais do dono, mas sim do todo público, cidadão (fato este comum de encontrar em museus administrados pelos amigos do prefeito e não por profissionais). Se, de uma hora para a outra, os nomes dos ex-donos são tirados das etiquetas e então des-relacionados o indivíduo da coisa, justamente pela importância pública dela e não privada, também é normal parentes perguntarem ou pelo menos comentarem sobre a ausência do nome “do meu avô que foi o último dono e que doou este relógio ao museu”.

A questão inerente a todos esses casos, do Miro, do Barão, do Antônio e das pessoas da vida real, é sempre o sentimento, a emoção, com uma intensidade que chega a transpassar para a vida pública sublimando a lógica, a racionalidade, da função pública de um museu, que então não é a vitrine de uma ou outra família, mas é o repositório, o símbolo da cultura de todas. É claro que boa parte das pessoas, inclusive eu, gostariam de ver seus objetos dentro de museus, sendo exemplos e ícones da cultura de todo um povo, mas caso isso aconteça os objetos não são mais seus, não são mais meus, são do povo, e temos de viver com isso, com a noção de que neste caso o público deve sublimar o privado e que nossa parte não está em ser lembrado privadamente, mas em ajudar a lembrar um todo público.

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