Bacurau
[…] a dialética do uso do dispositivo tecnológico (ora reacionário, ora revolucionário) é bastante presente na obra de Kleber Mendonça Filho
I
Eu queria me deter especificamente na filmagem da violência, na fotografia da violência, no monitoramento da violência através de um dispositivo tecnológico, em Bacurau. Vamos a uma cena específica: aquela em que as caricaturas de caçadores humanos americanos metralham o carro do casal brasileiro fugitivo (que tentava fechar o corpo através de uma oração) na estrada noturna. Bom, após terem exercido a execução, distanciando-se do local do crime, os fascistas começam a fazer sexo. O drone-câmera-disco voador paira sobre eles, registrando, com luz noturna, o intercurso sexual, a cópula pós-caçada humana. Nesse sentido, a violência torna-se mote para um registro visual pornográfico. Embora esteja no descampado, em espaço aberto, a dupla assassina transa envolvida pelas sombras. Por isso, seu gozo é privado. Por outro lado, o drone torna a cópula pública, pornograficamente: não num sentido social, mas de publicidade, um sexo público-comercial. Quem será que assiste àquele gozo, para além da metalinguagem da plateia?
Quando os fascistas, com seus uniformes de paintball, são degolados pela comunidade sublevada brasileira, o registro-filmagem da violência assume uma outra dimensão, completamente diferente. Os smartphones que fotografam as cabeças decepadas dos caçadores gringos funcionam, discursivamente, como disparadores de memória histórica (e não pornográfico-privada) para a população do vilarejo, que resistiu aos agressores. Nessa sequência, o registro da violência, logo, deixa de funcionar numa clave masturbatória-privada, por assim dizer, e passa a se nutrir de uma dimensão épica, de fundação comunitária. Assim, o gozo se torna público-político, de acordo com a argumentação do filme, e descola-se do ato sexual “de alcova”, em direção à sublimação da “ágora”. Por isso, não é à toa que a batalha final ocorra na cidade, no museu, na igreja abandonada, e não no ermo vazio: que ocorra no centro social e narrativo daquele mundo alegórico.
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Essa dialética do uso do dispositivo tecnológico (ora reacionário, ora revolucionário) é bastante presente na obra de Kleber Mendonça Filho. Há uma analogia, ainda, que pode ser feita. Em Aquarius a personagem principal, Clara, interpretada por Sônia Braga, fica abatida e quase desiste de sua resistência após consultar os mitos da internet, a deep web, os illuminati etc e associá-los infernalmente à figura de seu perseguidor elitista. A internet e o dispositivo tecnológico drenam a práxis, abatem o ânimo, a capacidade de reação. Por outro lado, é através do compartilhamento via redes sociais da barbárie de seus agressores que um poderoso golpe é desferido contra os cínicos, os fascistas, os assassinos. Pense-se, a este respeito, na cena em que o cupinzeiro é despedaçado no escritório da imobiliária, enquanto o ato é filmado pelo celular. Não é o oposto antitético, esta sequência, à suruba monstruosa que ocorre no apartamento um andar acima do de Clara, também documentada e filmada pelos fascistas mascarados?
II
Que goze de respeito quem argumenta que Coringa é o filme sobre o “incel”, o celibatário involuntário. No entanto, há um problema. O incel parece ser um tipo sobretudo privado. É produto do recalque e do mal-estar da epidemia de aids, do ‘sexo mata’ dos anos 1980 e 1990; teve sua iniciação sexual mediada quase exclusivamente pela pornografia online; anda às voltas com a insegurança sexual, com a impotência, ela mesma, sob um céu azul-viagra, num tempo neoliberal de pesado custo de vida, em que “é melhor ver netflix do que ir à balada”, em que é melhor ficar em casa do que gastar dinheiro na rua. Tempo de desemprego, que faz o incel pender, diz-se, ao isolamento e à extrema-direita. Ou ao amok, à explosão de violência desmedida, que se vê no modelo terrorista dos anos 2010: o lobo solitário. Tudo isso para dizer que o personagem Coringa é, por outro lado, bastante gregário, e politizante, no sentido de afunilar ao redor de si o ódio da multidão, e fazer algo com esse ódio, que ele controla (o que ele faz com tal controle deve ser fruto de outro debate crítico, de outra discussão). Talvez esteja o personagem Coringa (e a recepção desse personagem pelas massas/redes sociais) mais para uma atmosfera Blanqui do que para o típico incel trancado no quarto escuro, acessando fóruns espúrios e misóginos.
III
Apesar de o pano de fundo de Era uma vez em Hollywood ser o assassinato de Sharon Tate, em 1969, o filme fala, no final das contas, sobre crise profissional e sobre sujeitos de meia-idade. Por isso, talvez seja o mais lírico e o mais profundo filme de Tarantino desde Jackie Brown (1997), sua melhor obra. Mas aqueles jogos cansativos de “pegou a referência?” ainda são sua marca, sua piscadela, e muita crítica gasta esforços para decifrar o que, no final das contas, deseja ser cifra, fetiche e consumo vintage. Por isso Tarantino tornou-se bastante dispensável, e tem pouco a acrescentar sobre o mundo do século XXI.
IV
Ad Astra começa bem. Os personagens chegam à lua e veem subways, escadas-rolantes e freeshops: o inferno, basicamente. Mas quando Brad Pitt volta à Terra, não dá pra segurar o riso ao notarmos que o conceito de paraíso do filme também tem muito de infernal: o exército americano, o casamento e a comunidade de consumo compondo uma espécie de família feliz. Só faltou um elogio à hipoteca, às Disney ao cupom do supermercado. Prefiro pedir a promoção do dia num subway de Mercúrio, se possível numa franquia voltada em direção ao Sol, na parte quente do planeta.