“Existe a regra e a exceção. Há a cultura que é da regra, e há exceção que é da arte. Todos dizem a regra, ninguém diz a exceção. Isto não se diz. Isto se escreve: Flaubert, Dostoievski. Isto se compõe: Gershwin, Mozart. Isto se pinta: Cézanne, Vermeer, isto se grava: Antonioni, Vigo. Ou se vive, e é então a arte de viver. É da regra querer a morte da exceção, será então da regra da Europa da cultura organizar a morte da arte de viver que ainda floresce a nossos pés”.
Jean-Luc Godard
Por Adolfo Gomes
Pedro Costa é um cineasta materialista. E, como tal, nada tem a transmitir em seus filmes. “Não gosto quando as pessoas começam a interpretar coisas escritas”, declarou o realizador lusitano. Pedro Costa, convém assinalar, tem uma escrita cinematográfica. Começou a filmar já sob a égide do conceito de cinema de autor, mas não parece interessado no status artístico a priori que essa condição contemporânea costuma conferir aos autores de filmes. A arte, para ele, é resistência, conflito no seio da cultura. É contracampo. Não por acaso, sua produtora se chama Contracosta. Ele é contra a cultura, pela arte de viver, conforme a assertiva godardiana.
Após seu primeiro longa, “O Sangue” (1990), volta seu interesse para o além-mar das ex-colônias, notadamente Cabo Verde, onde filma “Casa de Lava” (1994). Nesta altura, é também Costa contra Portugal.
“Este filme é filho do desencanto. Guarda disso traços profundos. Desencanto com o País, com sua miserável humilhação política, social, artística, com esse povo passivo e mau. Desencanto comigo próprio […]. Para nós, cineastas portugueses, foi o momento de começar a sofrer a violência de um poder inculto e arrogante. E tomei a decisão de me afastar de casa […]”, explica o realizador.
Pedro Costa
Quando retorna, vai direto para a periferia de Lisboa, “os bairros de lata” – correspondentes às favelas brasileiras sem a topografia exótica dos morros cariocas –, num movimento semelhante ao dos imigrantes de “Casa de Lava”, que sonhavam com Sacavém, subúrbio lisboeta e refúgio dos caboverdianos recém-chegados e em busca de trabalho, com ou sem visto de residência. “Quero morrer em Sacavém!”, diz uma das personagens do filme ao reivindicar uma passagem para Portugal. Assim, se “Ossos”, realizado três anos depois, origina-se sob o signo de um nascimento (o da criança cujos pais já não sabem o que fazer para criá-la e alimentá-la e, por fim, tentam vendê-la), é a morte que sombreia e dirige o percurso deles, amplificada por, pelo menos, duas tentativas de suicídio. Não é mais Sacavém, o bairro agora se chama Estrela de África; fora construído por portugueses pobres e, depois da Revolução dos Cravos, em 1974, acolheu imigrantes africanos que o reconstruíram pedra por pedra, em cimento, à imagem dos bairros das colônias portuguesas, como um labirinto.
“Há mesmo um pequeno mercado no interior. Porém, no meu filme, esse bairro é mais ‘sentido’ do que mostrado; mais do que um bairro crioulo, africano, caboverdiano, é uma ideia abstrata de um bairro de Lisboa”, acrescenta Costa.
“Ossos”, no entanto, nada tem de abstrato. Inicia uma trilogia bastante concreta sobre o desaparecimento de alguns bairros periféricos da capital portuguesa. Em “No quarto da Vanda”, de 2001, Costa se instala em Fontainhas, abandona o entrecho ficcional da obra anterior e consolida um estilo documental que lhe conduzirá, cinco anos mais tarde, a “Juventude em marcha”. Da premissa bressoniana – “o que nenhum olho humano é capaz de captar, nenhum lápis, pincel, caneta, de reter, a câmera capta sem saber o que é, e retém com a indiferença escrupulosa de uma máquina” –, o cineasta português incorpora uma austeridade radical para registrar a epifania discreta do cotidiano daquelas pessoas. Não atores, como no caso de Bresson e seus modelos – “a utilização de modelos encontrados na vida, ser (modelos) em vez de parecer (atores) – no entanto, algo mais sensível e complexo: “As pessoas que aparecem no filme descobrem-se a si próprias a criar histórias, diálogos, narrativas, e o realizador reinventa-se através deste encontro. Havia uma verdadeira fraternidade e igualdade, porque nenhum dos lados abdicava da sua responsabilidade”, observa Thom Andersen em seu artigo “Histórias de Fantasmas”.
Ossos
Para “No quarto da Vanda”, Costa acumulou 140 horas de imagens e sons. Foi importante nesse processo o uso da câmera digital, leve e discreta, e, a partir de então, utilizada em toda a sua filmografia posterior. Mas se, como bem assinala Thom Andersen, ele consegue essa franqueza sem precedentes no documentário (gênero de filme que Kieslowski afirmou ser impossível, porque “há esferas da intimidade humana onde não se pode entrar com uma câmera”), isso não se deve simplesmente a uma questão de técnica.
“Costa fala em utilizar a câmera de vídeo de um modo que resiste às intenções dos seus fabricantes: ‘Querem que a mexa de um lado para o outro, e eu não quero mexer’”, resgata Andersen de uma entrevista com o cineasta português. “‘As coisas usam-se para trabalhar. As câmeras pequenas são muito úteis. São práticas, e não são caras, mas cuidado. É preciso trabalhá-las muito, e o trabalho é o contrário da facilidade. A facilidade é a primeira ideia. É a falta de resistência”, complementa Costa .
É curioso notar como o português, ao fixar sua câmera, subverte não apenas uma tentação tecnológica como todo o princípio do cinema moderno: da Nouvelle Vague, incluindo aí a ressignificação do travelling, por exemplo, a partir daquele momento empregado como “uma questão de moral”, instrumento de aproximação da vida e registro do real. Temos Costa, dessa vez, contra os cânones do filme moderno, pela arte de viver.
No quarto da Vanda
Essas imagens estáticas e majestosas que se erguem verticais como duas paredes (o uso sistemático do formato 1,33:1, tal qual uma tela de TV), mas, ao mesmo tempo, livres e surpreendentes, voltam em “Juventude em marcha” (2006), após um período de 15 meses de convivência e 320 horas de filmagem acumulados. De Fontainhas, já em fase de destruição em “No quarto da Vanda”, só resta uma casa, a casa de Bete, uma das filha(o)s de Ventura, um imigrante caboverdiano, que, como um espelho, reflete as pessoas e os ambientes que estão à sua volta. Não é um personagem tradicional; é um ente, cuja passagem e presença faz reverberar emoções, lembranças, escritas, afetos, revoluções, ideais – seus, mas, sobretudo, dos outros.
Ventura, homem-coletivo, que aceita a todos como filhos, introduz na obra de Costa um componente novo, metafísico no sentido benjaminiano, de “uma metafísica da juventude”, a juventude como “uma categoria do espírito e não como uma representação sociológica e cultural”, nas palavras de António Guerreiro – daí uma chave possível para compreender este título enigmático, “Juventude em marcha”, de um filme em que não há fisicamente jovens, apenas um bebê.
Guerreiro assinala ainda:
“Ventura é a figura dessa força imensa que Benjamin quis mobilizar contra o inferno do presente – uma força que não está na experiência, nem na maturidade, nem na autoridade, nem na razão. Está num olhar sobre o curso do tempo […]. Ventura traz consigo um poder: o de não estar possuído pelo presente e abrir abismos por onde passa e para onde olha”.
O novo bairro que é designado para acolher os moradores de Fontainhas, Casal da Boba, também é índice dessa fratura do tempo e da memória no olhar de Ventura. A arquitetura impessoal, os prédios padronizados e novos, mas de má qualidade, como os de qualquer conjunto habitacional popular, remontam a opressão da época colonial com a negação da possibilidade de construção de um espaço próprio, identificável, humano. “Os corredores amarelo-alaranjados e salas brancas são cubos perfeitos. Os planos de Costa fazem com que as molduras das portas pareçam os caixões verticais das famosas fotografias de Nadar do massacre dos membros da Comuna de Paris”, lembra Andersen.
Juventude em Marcha
Há também muitos espectros em “Juventude em marcha”. Em alguns planos, é como se não houvesse tempo, distinção entre mortos e vivos. Essa capacidade do cinema de criar uma espécie de Aleph, a esfera borgiana que reúne passado, presente e futuro, é explorada por Costa a partir de referências a outras épocas, da canção libertária do movimento de independência de Cabo Verde (“Labanta Braço”) ao poema que o francês surrealista Robert Desnos escreveu na forma de carta em um campo de concentração nazista, durante a Segunda Guerra Mundial, pouco antes da sua morte. Tanto a música como a carta são tocadas e lidas várias vezes, ao longo do filme, de modo a constituir não apenas uma lembrança de tempos nostálgicos, do sentimento de finitude das coisas e das pessoas, mas, sobretudo, da permanência da utopia e da criação artística num mundo dessacralizado, frio e cínico.
“Às vezes tenho medo de construir estas paredes. Eu com picareta e cimento. E tu, com e teu silêncio. Uma vala tão funda que te empurra para um longo esquecimento”, diz um trecho da carta apropriada do poeta francês e transfigurada, aqui, por uma nova realidade, a do exílio econômico e espacial. Assim, quando Ventura revisita o Museu Calouste Gulbenkian, que ajudou a construir logo após chegar a Portugal, é convidado a se retirar do salão principal por outro imigrante que agora faz a vigília do local. O guarda, de maneira autômata, tenta apagar com uma flanela os rastros deixados pelo conterrâneo que, antes dele, tinha uma função naquele ambiente e hoje é a presença incômoda, como a do próprio vigia expulsando um colega do cenário das grandes artes em exposição. Da subversão do caráter museológico (como algo congelado num passado glorioso), da arte tradicional apenas como moldura e fruição, mais uma vez acompanhamos, nessa extraordinária sequência, um movimento que ressalta a importância e força da arte de viver.
Ao fim desse trajeto, no cinema concreto de Costa, o espaço urbano, com o qual temos contato somente através dos vestígios dos corpos no seu interior (não existe sequer um plano geral da cidade ou do bairro, em “Juventude em marcha”), dá corpo e topografia ao conflito da cultura hegemônica (regra) destruindo a exceção (a arte de viver dos imigrantes, por exemplo), como uma nova forma de colonização, contra a qual ele se mobiliza e reage como o outro (“O eu é um outro”, Rimbaud), alguém emigrado em seu próprio país.
Adolfo Gomes é cineclubista e crítico de cinema filiado à Abraccine. Curador de mostras e retrospectivas, entre as quais “Nicholas Philibert, a emoção do real”, “Bresson, olhos para o impossível” e “O Mito de Dom Sebastião no Cinema”. Coordenou as três edições do prêmio de estímulo a jovens críticos “Walter da Silveira”, promovido pela Diretoria de Audiovisual, da Fundação Cultural da Bahia.