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“Eles Não Sabem, Mas o Show Começa bem Antes!”: pela valorização dos bastidores

Patrimônio e Sociedade; memória social, identidade cultural, patrimônios, coleções e muito mais

“Eles Não Sabem, Mas o Show Começa bem Antes!”: pela valorização dos bastidores

Imaginemos que vamos a uma abertura de uma exposição, a noite do vernissage. De um modo geral as coisas acontecem sempre da mesma forma: chegamos um pouco antes da hora marcada, nos apresentamos ao cerimonial, aceitamos uma taça de qualquer bebida, cumprimentamos pessoas, encontramos conhecidos e com eles fazemos grupos nos quais falamos do dia, do trabalho, da política e do tempo, tudo para esperar a hora de começar. Por vezes lembramos do conteúdo que nos traz ali antes da abertura acontecer e falamos da expectativa, das outras exposições deste ou daquele artista, das montagens do curador que está ali, da gestão daquele museu que está sem verba para manter um projeto legal, até que o “senhoras e senhores, boa noite” do cerimonialista nos avise que o evento está começando. Agradecem-se as presenças, citam-se autoridades, executam-se hinos, convidam-se algumas pessoas para falar: o gestor do lugar que expõe fala da satisfação de poder executar esse trabalho, o curador fala do orgulho de por tê-lo feito e o artista agradece o convite e ressalta como isso lhe traz felicidade e bem-estar, entregam-se presentes e outras coisas que enfeitem a solenidade até o “mais uma vez, muito obrigado” seguido de palmas que liberta a todos das falas. Uma vez aberta a exposição as pessoas saem do auditório ou de perto do púlpito, vão para as salas que interessam, aceitam outra bebida, um canapé, alguém reclama que isso não ajuda na dieta, “mas só unzinho”. Paramos nas telas que nos prendem a atenção, passamos batido pelas que não, comentamos com os colegas o que nos agrada na obra, sugerimos melhores luzes para este ou aquele quadro, cumprimentamos o artista, satisfeito, e o curador, orgulhoso, e depois de algumas horas vamos embora. É isso, mas só isso? Quanta coisa aconteceu para que aquele momento, ínfimo e significativo, fosse possível?

Certa vez fui convidado para montar uma exposição de uma artista já falecida, mas bastante conhecida, num dos maiores museus da América Latina – e aqui não cito nomes porque essa exposição, por mais que seja motivo de exemplo para mim, trouxe alguns problemas a algumas pessoas, então ficamos na ludicidade. Era meu primeiro grande trabalho. Eu deveria ser o curador-auxiliar e também dar uma mão para as pessoas que estavam organizando o dia do evento, coordenando para que tudo ficasse em harmonia e para que ninguém acima de nós, gerentes e diretores, não reclamassem de nada. Não falarei aqui da curadoria, da escolha das obras nem dos modos de expor que escolhemos. A parte de curadoria foi tranquila, eu e o curador-chefe, que já tinha muita experiência na área, nos demos bem e tudo funcionou tranquilamente. Quero agora lembrar o evento ínfimo e significativo e o caminho que nos leva a ele.

Pelo menos dois meses e meio antes do vernissage começamos a debater sobre a comida que seria serviço, que buffet seria contratado, quantas opções de doces, salgados e bebidas e isso gerou a primeira tensão clássica: quem monta o evento quer o melhor, quem paga o evento quer o mais barato. Desentendimentos à parte, foi escolhido o buffet e marcado um horário para provarmos as opções. Uma vez no restaurante as bandejas traziam várias opções e doces e salgados, todos pequenos, daqueles que se come com uma mão em uma ou duas mordidas. Os testes ali não eram só de sabor. A primeira coisa debatida foi o conforto de quem come, então simulamos situações de conversa, risos, mãos ocupadas com várias coisas ao mesmo tempo, cumprimentando pessoas, para saber se o folhado de queijo não soltaria muita daquela massinha crocante e dourada que tem em cima ou se a ideia de por uma geleia de frutas vermelhas em cima do trufado, sem louça alguma, não faria ela escorrer nos dedos. Testes feitos, eleitos os itens, montado o cardápio!

Saímos do restaurante por volta das 19h e eu já pensando em ir embora quando o rapaz responsável pelo planejamento do mobiliário exclusivamente escolhido para a grande noite nos lembra de passarmos no museu para, de novo e de novo, testarmos os espaços físicos, as possibilidades de circuito, a adequação conforto-não impedimento de saídas de emergência e afins. Nunca isso ficaria pronto naquela noite, mas também não no próximo dia, nem na próxima semana, Testes e mais testes foram feitos para que se encontrasse o melhor lugar para por uma simples mesa de apoio onde se largariam copos vazios de um modo que não refletisse a luz da segunda tela, ou que não atrapalhasse essa parede “que será para as fotografias”.

Faltando um mês para o evento o planejamento de segurança começou a ser desenhado. Esse foi rápido porque os seguranças do próprio museu eram experientes e sabiam o que e como fazer. Faltando três semanas a exposição começou a ser montada, ter as luzes configuradas, ter as paredes plotadas com textos e ter as interatividades disponibilizadas. Uma vez com ela montada, voltamos a noite. As cadeiras reservadas foram nomeadas, autoridades foram confirmadas, convites foram reiterados, “tirem o Professor Fulano de perto da cadeira do Governador! Lembra da última vez?” diziam os que tinham mais traquejo. Até com rixas políticas tínhamos de nos preocupar! Passado tudo, tudo estava pronto!

Na minha ingenuidade, no dia anterior ao da exposição, indo para casa pensei “bem, amanhã é chegar, comer e tirar fotos” até que uma mensagem da senhora que estava à frente da organização da noite dizia “amanhã ás 6h, esqueci de avisar, mas agora já sabe”. “Às 6h?…”, pensei, “…mas o evento começa às 18h!”. Às 6h eu cheguei, claro. Aí entendi que aqueles dois meses e meio que passaram eram talvez 40% do trabalho. Às 7h a empresa dos móveis que alugamos, como as mesas para apoiar os copos vazios, chegou e foi montando tudo, sempre perguntando onde, como, por quê e se estava bom. Às 8h30 uma última obra da artista, encontrada por acaso pelo curador, foi trazida por ele mesmo em seu carro e devia ser pendurada “ao lado daquelas três, porque são um políptico”. A tela estava empoeirada, a equipe de conservação do museu foi chamada e as montagens do evento pararam porque os químicos usados na higienização são sensíveis e é melhor prevenir, assim a obra foi limpa logo depois de ser instalada. Como as telas que estavam na parede foram realocadas tendo as distâncias diminuídas para receberem a irmã perdida, a equipe de manutenção teve de tapar os buracos dos pregos que ficaram na parede, usaram massa corrida e tinta para fazer de conta que nada aconteceu, mas aconteceu: uma das mesas de apoio estava com uma grande pelota de massa coberta por respingos de tinta! Um acidente, claro, mas vai explicar para os donos. Outra mesa foi pedida sob algumas frases enervadas sobre valores, acidentes, desculpas e “temos pressa”.

Ao meio-dia tudo estava onde devia estar, exceto pelos ventiladores que tentavam secar logo a tinta e a massa da parede. No almoço, todos cansados faziam piadas e riam, para aliviar o estresse talvez. “Está gostando, Luciano?” perguntou o chefe da equipe de segurança, ao que respondi “estou, claro! É interessante e divertido, mas cansa mais do que eu esperava”. Placidamente o chefe de segurança, outro experiente desses eventos, riu e me disse a frase que para mim explicou tudo: “Eles [os convidados] não sabem, mas o show começa bem antes! Eles nem precisam saber, só precisam aproveitar”.

Durante o resto da tarde o trabalho continuou pesado e cada vez mais frenético. Cada dez minutos eram muito tempo. A parede não secava por completo, a mesa danificada não tinha sido trocada e a equipe do buffet ia descarregando mesas, bandejas, taças, copos, toalhas, flores, enquanto, nua sala vazia, parte dela montava um fogão industrial e um forno para irem finalizando os quitutes. Às 16h o diretor do museu passou na sala, viu o semicaos que estava em parte sob controle, balançou a cabeça sorrindo como se estivesse tudo bem e disse para a senhora que coordenava tudo ao sair “vocês dão conta! Sempre dão!”. Às 17h instrui os garçons a não servirem os doces mais melados, que podiam sujar as mãos, perto dos monitores e painéis interativos, para evitarmos a sujeira, a não servirem nada, bebida ou comida, perto da entrada das salas e a ajudarem, quando pudessem, a não permitir que as pessoas desatentas confundissem uma mesa iluminada com gravuras da artista com a mesa de apoio. Às 17h30 o quarteto de cordas chegou e rapidamente se instalaram no espaço reservado para eles, pedindo apenas por copos d’água.

Arte Contemporânea no Acervo UFG

Às 17h45, já de roupas limpas, desligamos os ventiladores mesmo com a parede ainda meio úmida, repassamos o serviço com os garçons, conferimos a segurança, o estacionamento e estava tudo bem até a cozinheira anunciar que haviam esquecido a pimenta-biquinho que ia sobre a tortinha de camarão. Num rompante atravessei a rua com uma colega de equipe e entramos num pequeno restaurante pedindo pela pimenta, negociando rápido e fugindo com um “é aqui para o museu, na frente, acertamos amanhã”. Menos um problema.

Às 18h, talvez um pouco depois pela elegância de se esperarem os grandes nomes da sociedade, tudo começou. Às 23h o último convidado saiu e voltamos ao trabalho. Os espólios dos desatentos foram reunidos para que fossem devolvidos, uma taça quebrada num canto foi varrida com os guardanapos, o buffet foi desmontado depois de ser servido um pequeno jantar para toda a equipe, toalhas foram dobradas, pratos empilhados, e então a empresa dos móveis começou a recolhê-los. Por fim, à 1h estávamos liberados, casados, agradecendo uns aos outros por tudo e indo embora aliviados.

Meu objetivo com esse texto não é o de sensibilizar ninguém para que pensem “coitados, trabalham tanto”, mas sim para ajudar a iluminar pontos não lembrados geralmente, como o fato de que uma noite de festa que dura no máximo cinco horas tem pelo menos meses de preparação, para lembrar que para que cheguemos num lugar organizado, seguro e confortável, comamos, bebamos e ríamos, há seguranças que voltam para casa de madrugada e há cozinheiros que fazem o melhor para agradar. A politicagem, a fotografia e as rixas pessoais não são nada perto do esforço e da intenção de quem faz tudo acontecer, seja num museu, num shopping, num restaurante, numa feira literária, numa galeria ou numa edição da Casa Cor, por exemplo. Um viva à valorização dos bastidores!

Curitiba, 17 de agosto de 2018.

Titulado em nível de graduação em Conservação e Restauro de Bens Culturais, graduado em História, especialista em Gestão, Preservação e Valorização de Patrimônios e Acervos e em Estudos em Memória, e mestre em Patrimônios, Acervos e Memória. Atualmente é Historiador e Conservador-Restaurador do Círculo de Estudos Bandeirantes, em Curitiba, entidade cultural agregada à PUCPR onde também ministra aulas e oficinas periódicas para graduandos em História

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