Coringa
O Exterminador, Malévola e Coringa gritam que a vida moderna baniu os indeléveis que, verdadeiramente, travam lutas com seus darksiders
“Se heróis são ungidos por santos; vilões são ungidos também: Tanatos, Hafes, Tártaro, Sisifo, Medusa, todos que, os contratos sociais, rasgaram, numa alusão à Rousseau.”
Por Elenilson Nascimento e Anna Carvalho
Nietszche dizia que, com a modernidade, alguns medíocres optam por serem medíocres na falta se escolhas diante dos eventos modernos. E nós aqui, meros mortais e clandestinos, temos absoluta certeza da decadência atual do cinema, da música, do teatro e até da literatura. Deveríamos generalizar um pouco mais e falarmos da decadência das artes em geral? Bom, mas, hoje, o assunto aqui é cinema ou ao menos pretendemos partir dele. Desta mediocridade que, talvez, seja o grande senso de muitos, destes seres medíocres com o que se sente, com o que se é, com as suas próprias sombras, seus desequílibrios, tentando lidar economicamente com seus escombros, com suas condições precárias, e fazendo de conta que se é bom homem, bom cidadão, boa coisa.
O EXTERMINADOR CANINO – E começamos este texto dizendo que acreditamos que a crescente intervenção dos produtores e roteiristas hollywoodianos tem efeitos desastrosos nas recentes produções. Nesta semana, por exemplo, ficamos surpresos ao ver “O Exterminador do Futuro: Destino Sombrio”, lançado recentemente, onde esta nova aventura da franquia tenta nos fazer esquecer que existiram os seus antecessores em “Rebelião das Máquinas” (2003), “A Salvação” (2009) e “Gênesis” (2015), ao criar uma nova continuação imediata e pífia para seu melhor produto: “O Julgamento Final” (1991), o último da série que foi dirigida pelo seu criador, James Cameron. Nesta nova “matança” do protagonista (*que não mais aparece como protagonista) da frase famosa “Hasta la vista, baby”, nos deu a nítida impressão de que o exterminador Schwarzenegger virou um Conan aposentado e que repetia os mesmos diálogos que tivera antes do simpático fim do mundo. Pudemos nos assegurar do fato ao coçar os nossos olhos e dar de cara com uma Linda Hamilton, a Sarah Connor, muito envelhecida e xaropada com os mesmos falas e as mesmas situações dos filmes anteriores.
Então, aprendemos que as quedas das demandas sociais fazem da gente, pessoas mortas, e que vivamos com os nossos filtros solares fatores 50.000, na loucura do dia a dia, cheios de receitas de remédios para serem comprados na Farmácia do Povo, aliás, entram aí as pessoas incapazes de terem filtros, loucas, na acepção da sociedade profilática e concisa em fabricar doentes. Mas, logo em seguida, neste novo exterminador, usando a tecnologia que temos disponível hoje, vem a cena mais movediça: o reencontro da Sarah Connor, o adolescente John Connor e o T-800, recriados por computação gráfica em 1991. O que acontece na cena, muda o futuro como o conhecíamos, criando, assim, uma nova linha temporal, sem Skynet, mas com outros problemas para Sarinha na boca da garrafa. Não é só surreal que ao lado do bem tenha que vir sempre o mal quase didático.
É maravilhoso ver Linda Connor Hamilton chutando bundas ao lado de Mackenzie Davis, mas Schwarzenegger não convence e não se leva a sério, e sempre fica aquele gosto de promessa não cumprida. A sequência, desta vez, é rasa, como raso foi todo o roteiro. O ator Gabriel Luna parece que saiu de uma produção pornô das As Brasileirinhas. E, por fim, ainda não é a linha do tempo em que temos uma sequência à altura de “Exterminador do Futuro 2”. E tinha gente que pensava que o problema era a Skynet…
Exterminador e Malévola
MALÉVOLA NERVOSA – Só que parece que, ao invés de pesquisar e se comunicar melhor, os produtores de hoje, sentindo no bolso que os filmes têm que ser tão bons como as sequências anteriores, repetem minuciosamente a fórmula. E em “Malévola 2: A Dona do Mal” a coisa foi milimetricamente estruturada para só agradar. A quem, ainda não sabemos! E assim caminha a humanidade, ao menos a cinematográfica. Bem, mal, Deus, diabo, paraíso, inferno, profano, sagrado, chifres, heróis, vilões, jecas e manés. Todos juntos e misturados ao lado daquela princesa chatinha Aurora, agora adulta, lá no mundo dos Moors. E ao ser pedida em casamento pelo igualmente chato príncipe Philip, ela é imediatamente acolhida pela sogra, a Rainha Ingrith (*uma Michelle Pfeiffer irreconhecível com o peso dos anos na cara). Mas acontece que essa atitude deixa Malévola (Angelina Jolie – com a mesma aparência de 20 anos atrás) um tanto destilando veneno, mas ela, no entanto, engole momentaneamente sua insatisfação para acompanhar a filha chata a um jantar na casa dos pais do pretendente. E Malévola logo é apontada como vilã da história novamente, o que faz com que ela busque outros aliados para defender seu reino.
E a maldade canina de Malévola foi sem sombra de dúvidas o início de uma era entre os live actions da Disney com sua subversão da história da Bela Adormecida. Tirando o foco principal da princesa amaldiçoada, trazendo uma nova perspectiva sobre uma das vilãs mais conhecidas do cinema, transformando-a em uma personagem complexa com um passado trágico. O ponto alto dessa nova versão ficou com o povo de chifres e asas, parentes da nossa vilã-favorita, que nos remete a história bíblica dos anjos caídos. Muitos críticos têm afirmado que Angelina Jolie parece ter perdido o brilho natural no olhar e que não conseguiu uma performance para conquistar as plateias, mesmo com todo trabalho de maquiagem que já conhecemos, em certos momentos fica com aspectos de cara de boneca. E entre feliz, fragilizada ou agressiva, carrega Malévola com a mesma expressão vazia. Na Folha de São Paulo, um certo crítico de cinema chegou a dizer que a Elle Fanning, que interpreta uma Aurora, não tem um pingo de convencimento e carisma. Podemos até concordar, em parte, mas Michelle Pfeiffer, mesmo com uma aparência de quem foi vender picolé na Feira de São Joaquim, ganha momentos de atenção, facilmente com algumas expressões faciais de vilania. E o sempre excelente Sam Riley foi o destaque do filme, tentando salvar as cenas mais tediosas com sua atuação e humor do personagem.
Coringa
CORINGA TRISTE – Mas estamos em pleno século XXI, vendo um palhaço, sob nome de uma carta que se transmuta em tudo: o Coringa feito por Joaquim Fênix desbanca os já desbancados. A sensação de estar diante da fragilidade do mal até ele se tornar em sua quintessência era a sensação de impotência diante das nossas sombras, das nossas mediocridades em não lidar com nossos esqueletos nos armários. E o filme dialoga muito bem com esse sentimento de completo vazio. Joaquim Fênix, magro, com costelas a mostra, que emagreceu 22 quilos para fazer o seu Coringa, com uma risada histriônica, sob a pecha da doença mental, cuida da mãe, a põe para dormir, dá banho, sonha, colide com a vida de escombros de nós invisíveis. Homens e mulheres que cumprem seus ritos ecumênicos de viverem seus fiapos de vida até algum clímax acontecer.
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Coringa, antes de sê-lo, é invisível, apanhou nas ruas, não reagiu, reserva-se a si mesmo o avesso à kriptonita, pois ele precisava ser humilhado, vilipendiado, sangrado como Cristo, em farrapos, para ser maestro da sua maldade. A cidade natal do Batman e da riqueza de Bruce Wayne produziu do outro lado, a pobreza do Coringa que se descobre “irmão” de Batman numa narrativa da sua mãe que se descobre paranoica. O último elo entre ele e a normalidade se dá na perda da sua mãe. Parece que ele foi tocado, ungido, como no fogo da Igreja Universal, porque se heróis são ungidos por santos; vilões são ungidos também: Tanatos, Hafes, Tártaro, Sisifo, Medusa, todos que, os contratos sociais, rasgaram, numa alusão à Rousseau.
Coringa sai do homem em farrapos e entra na saga do clown, e, na montagem de sua cara num espelho (dramático e poético!) como nas personagens que montam seus processos, suas diásporas, seu festival de peles, ele monta sua verdadeira face, desnuda o palhaço e se mete no clown sombrio, frágil, solitário, solidário, indecente, que será agora uma espécie de vintage de mim, você, de todos nós. E aqui chegamos na cilada deste filme: saímos do cinema com a pessoa ruim que mata as suas sombras, que foram tão libertas diante do filme, que parece que nós éramos as grandes farsas. Em frases como: “Doentes mentais precisam parecer saudáveis ou sociáveis”, ele elucida que a vida moderna baniu indecentes, indeléveis, os que, verdadeiramente, travam lutas com seus darksiders.
E vivemos como heróis, bons pagadores, profissionais medíocres, homens e mulheres numa marcha solidária de razão. E isso é ser são? Joaquim Fênix, por exemplo, é um monstro de interpretação porque torna o anti herói humano, refratário, com camadas, e vemos aquela cebola má, sendo descascada, desnuda a nossos olhos desejosos de mais. O filme nos conecta, porque a gente ou nossas sombras, estamos ali presentes, onipresentes diante de construções e histórias sociais. E vemos as teses de Panoptismo de Foucault ali, os corpos, as vítimas dele que eram de fato bons. Será mesmo? Foi desumano o vilão ter dado fim as pessoas más autorizadas a serem más por paletós, ironias e holofotes?
Coringa
Sentimento como a do Miguel Torga, com o seu tafona, o seu abafador, ou a saga imoral saramagueana de Blimunda, o avesso moral de Dom Quixote, o avesso do ego de Bento Santiago, a fúria intercepta do Conde de Monte Cristo. Ao final , uma prédica aos egos: somos desautorizados pela sociedade em sermos sombras, onde os filtros morais funcionam todos debaixo de padrões, arquétipos, limites, e quem sair de seu limbo precisa na hora estar em contato com tarjas pretas, camisas de força, padrões morais crachás, creches, crochês.
Artistas que ousam sair dos seus entornos verossímeis como Maurizio Cattelam em sua obra, podem ser adotados como malditos. Nascemos para termos medo do outro, da polícia, da sociedade, de nós mesmos, dos outros. Não somos ilhas, mas vivemos por mentirmos nosso tesão por solidão. Viva ao anti herói, antídoto de nós mesmos. Responde minh’alma em bandagens sob os escombros dos egos de alguém: viva!