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As Coisas e os Museus II: a preservação dos objetos

Patrimônio e Sociedade; memória social, identidade cultural, patrimônios, coleções e muito mais

As Coisas e os Museus II: a preservação dos objetos

 

Quando objetos passam a fazer parte da coleção de um museu, o museu se torna responsável por ele. O caráter protecionista e colecionista da entidade é natural de sua origem no mundo ocidental, dada a função representativa que estes locais assumiram para si. Sobre as funções dos objetos em museus trataremos noutro momento, agora cabe-nos um pensamento sobre a tecnicidade necessária numa entidade detentora de coleções para a manutenção da vida útil dos objetos.

Quando um objeto é musealizado, no sentido de incorporado ao acervo permanente de um museu, bem como em suas atividades, meios e fins, imagina-se que ele ficará seguro e “vivo” para sempre, por conta da função do museu, “guardar coisas velhas”, não é?

Não, não é! As funções das entidades museológicas vão, hoje principalmente e cada vez mais, para além do “guardar coisas velhas”. As coisas antigas que se tornam parte de um museu se tornam também parte de uma sociedade, de uma memória social, de um patrimônio cultural comum, de uma vida orgânica e não-automática que é inerente ao museu, portanto as coisas passam a ter, em teoria, um sentido mais coletivista e menos individualista, ou pelo mesmo deveria ser assim. Falaremos também noutro momento sobre os sentimentos e as funções embotadas às coisas de museus.

No foco deste texto, temos então a preservação dos objetos do acervo para oportunizar uma maior vida útil a ele. Pensemos para exemplo lúdico num telefone de disco da década de 1960 que hoje está com Antônio Fone, mas que pertenceu a sua avó. Durante todas as tradições familiares de se repassar objetos, as coisas antigas, mesmo que sem muita utilidade, acabam sendo resguardadas na casa de alguém como Antônio Fone porque “ah… é antigo e não existem mais desses, não devemos jogar fora”.

Certo dia, Antônio Fone resolve se desfazer do telefone de disco, justamente porque não vê utilidade para ele em sua casa, porque ocupa espaço e “só fica juntando pó”, mas para não jogar fora, decide levar para o museu de sua cidade, já que é antigo o museu guardará. Ledo engano, Antônio, mas partamos na ideia de que o museu aceitou receber esta doação.

De imediato começam os processamentos técnicos aplicados ao telefone de 1960. Mesmo sendo “de imediato” o processamento técnico não é rápido como pensam alguns gestores ignorantes no assunto. O museu, que já tem coleções formadas, provavelmente tem uma reserva técnica, depósito, área de guarda, ou seja lá qual for o nome usado para identificar o local onde ficam guardados os objetos do acervo.Uma vez lá dentro, os objetos devem ser assistidos constantemente sobre sua condição física e sobre seu conteúdo, afinal de contas é por isso que estão lá. Um objeto externo, novo, no caso o telefone de disco do Antônio Fone, não pode ser colocado ao lado de um outro tipo de telefone que já está lá há muito tempo, e, por mais que pareça engraçado ou até estranho dizer isso de utensílios inanimados, acostumado com seu lugar espacial.

Numa perspectiva de uma equipe multidisciplinar, com espaços físicos bem equipados e preparados para receberem e manterem acervos, um objeto novo precisa ser avaliado quanto a sua condição física quando chegou. O telefone de Antônio Fone, por ter pertencido a sua avó, pessoa de alta estima na família, foi muito bem cuidado, portanto não apresenta nenhum dano grave em seu suporte material. Num segundo momento, uma quarentena deve ser aplicada. Na quarentena o forasteiro no acervo é mantido longe dos já habituados e velhos conhecidos do acervo permanente, de preferência em outra sala, para que seja observada a lenta, mas necessária, familiarização do objeto com o ambiente.

São Miguel, Séc. XVIII, quebrado por um turista que tentava fazer uma selfie.

E neste caso, não estou falando de um telefone que vai chorar de saudades de seu antigo dono e precisa entender que aquela é sua nova casa, a familiarização é com as questões climáticas do ambiente do museu. Um museu deve, para manter a qualidade de seus objetos e exposições, manter uma temperatura e uma umidade relativa controladas, porque, por exemplo, uma temperatura e uma umidade muito elevadas podem propiciar o aparecimento e a proliferação de fungos, que podem se instalar nas superfícies dos objetos e manchar sua estética.

Se parecer meio estranho imaginar um telefone nesta situação, imagine também um documento em papel, que é um material ainda mais sensível a mudanças no clima. Depois de muito tempo fazendo parte de uma família e de um uso caseiro, o documento em papel, o telefone ou uma fotografia, estavam familiarizados, no sentido químico e físico da ideia, com o ambiente e com os usos daquela casa. O telefone já não fazia chamadas, não tocava a pele das pessoas, então, não recebia diretamente ácidos e gorduras eliminados naturalmente pelas pessoas, e a fotografia quase nunca era tirada de uma caixa de papelão que ficava em cima do guardarroupa, portanto, estava acostumada ao microclima criado nesta caixa e com o escasso manuseio.

Uma vez integrando um cervo museológico, não se pode repentinamente mudar este “cotidiano das coisas”. A quarentena serve para isso, para que as coisas se acostumem com o novo ambiente, e para que se analise se há ou não alguma mudança na estrutura químico-física delas, tendo assim um controle sobre a vida orgânica dos objetos. Passada a quarentena, as intervenções diretas podem acontecer. A higienização, a restauração (quando necessário), a conservação direta, a conservação indireta e as análises frequentes. Diferentes tipos de materiais pedem diferentes técnicas, mas a intenção é sempre livrar de toda impureza que possa estar nos materiais, como a gordura das refeições caseiras que pode estar depositada no telefone de disco, para que nada possa alterar sua química original e prejudicar sua utilidade.

Já a conservação, direta ou indireta, atende o objeto numa ideia de evitar danos ao material. O controle da temperatura e da umidade relativa, por exemplo, tem esse objetivo, já que evitar o aparecimento e a colonização de fungos nos objetos visa mantê-los protegidos e preparados para os possíveis usos museológicos aplicados a eles. Depois de garantida sua conservação, eles podem ser organizados e dispostos juntos aos outros objetos que já figuram nas coleções do museu.

Dentre os principais problemas que encontramos nesta área estão: o financiamento, e esse é um problema marcante em várias vertentes deste trabalho porque como o trabalho é muito específico e objetivo, os profissionais da área, que precisam ser bem treinados e atualizados sempre, costumam ter uma remuneração um pouco alta, e os gestores quase nunca contratam esta mão-de-obra especializada, além de que os materiais e equipamentos usados nos processamentos técnicos, por vezes, também têm um valor considerável, e podem sofrer também sanções por parte dos administradores; outro problema é o despreparo da mão-de-obra utilizada quando não há a especializada, porque, como já falamos em outro texto, é comum funcionários em fim de carreira, aqueles que só estão “estão esperando se aposentar”, sejam mandados para museus, dado que o “trabalho é mais tranquilo”, e estes profissionais, não necessariamente os quase aposentados mas também os administrativos em geral, não estão preparados para este tipo de atuação e podem atrapalhar a existência material dos objetos.

Prédios históricos que são transformados em museus também podem ser um problema. Uma casa do início do século XX exemplo, foi feita para ser uma casa do início do século XX e não um museu do século XXI. Suas divisões, encanamentos, fiações e demais questões construtivas não se aplicam às necessidades de um museu contemporâneo, e, em geral, também são alegados problemas financeiros para realizar as adequações necessárias como ar condicionado e isolamento de janelas para um melhor controle ambiental.

Para finalizar os exemplos de entraves, gostaria de citar mais um, que por sinal é muito corriqueiro: o ser humano. A falta de conhecimento, de cuidado, de noção (espacial e moral), ou qualquer outra, é responsável por muitos “acidentes” que poderiam ter sido evitados. Não é raro encontrarmos notícias de pessoas que visitam museus e interagem de forma incorreta com os objetos danificando-os, como o turista americano que, ao medir as proporções de sua mão com a mão direita de uma estátua, Anunciação, esculpida por Giovanni D’Ambrogio e exposta no Museu da Catedral de Florença, quebrou o dedo mínimo de uma obra que não tem menos de seiscentos anos; ou ainda o turista brasileiro que, ao tentar tirar uma selfie com um São Miguel, esculpido em madeira no século XVIII e exposto no Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa, derrubou a imagem fazendo-a se dividir em várias partes.

Nos dois casos acima, e em outros como pichações, os danos são reversíveis, entretanto, despende-se de uma renda não programada para aquilo e de tempo dos profissionais que precisam parar suas atividades para resolver o problema. Os dois casos explicitam um problema crescente no século XXI em muitos âmbitos sociais: o individualismo. Nestes exemplos, a experiência individual da fotografia ou do toque na estátua suprimiram a experiência coletiva de apreciação, fruição e preservação, mostrando que o imediatismo da aparência, do momento efêmero, foi mais importante que a manutenção perene da cultura, da memória e da história coletiva, além de garantir mais uma vez que o uso cotidiano e os cuidados dia-a-dia destes usos são extremamente importantes para garantir a preservação dos objetos.

Por fim, é importante pensarmos nos objetos em si. Quanto tempo um objeto deve durar? Até cumprir sua função e ser substituído? Ou deve durar para sempre? Se fosse para sempre, por que continuar produzindo telefones mais modernos ao invés de readequarmos os de disco? Numa teoria de finitude, acredito que nada foi feito para durar para sempre, nem mesmo o que é musealizado. As coisas nos museus, por mais que tenham um valor simbólico, que discutiremos futuramente, são matéria, e matéria se deteriora e há um ponto que não podemos fazer mais nada quanto a isso.

Curitiba, 21 de março de 2017.

Titulado em nível de graduação em Conservação e Restauro de Bens Culturais, graduado em História, especialista em Gestão, Preservação e Valorização de Patrimônios e Acervos e em Estudos em Memória, e mestre em Patrimônios, Acervos e Memória. Atualmente é Historiador e Conservador-Restaurador do Círculo de Estudos Bandeirantes, em Curitiba, entidade cultural agregada à PUCPR onde também ministra aulas e oficinas periódicas para graduandos em História

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