Patrimônio e Sociedade; memória social, identidade cultural, patrimônios, coleções e muito mais
Sempre Haverá um Ponto em Comum
No último texto, que fazia parte daqueles “dos astronautas”, falamos da diversidade cultural que podemos e vamos com certeza encontrar sempre nas sociedades do mundo todo, sabendo, então, que os grupos humanos não são homogêneos culturalmente, que a existência mútua acontece cotidianamente, que a tolerância e o respeito são essenciais para a boa convivência, e acrescento ainda que preocupar-se com algo que não compete diretamente as nossas vidas no dia-a-dia é desnecessário, e se alguém sente a necessidade de investigar e se ocupar tanto da vida alheia, que não seja para fins de pesquisa/trabalho, deveria procurar tratamento ou algum hobbie saudável, porque que diferença nos faz se este ou aquele ouve MPB ou funk, veste burca ou fio dental, ou ainda não acredita que o patrimônio que tem um significado muito grande para um não tem para outro?
Sabendo destas diferenças acredito que faltou refletirmos sobre um outro ponto: sempre haverá um ponto em comum. Penso que seja quase impossível, em pleno século XXI, depois de tantas miscigenações globais, ocorridas do “jeito bom”, como os contatos pacíficos de sociedades isoladas com um mundo conectado, ou do “jeito ruim”, como o tráfico de escravizados ou o turismo sexual, que um indivíduo não tenha alguma relação biológica, social ou cultural com todos os outros bilhões de seres humanos da Terra.
Partindo de uma biologia contemporânea, podemos pensar na composição dos nossos DNAs. Sempre únicos, mas embotados de muitos antepassados. No Brasil, então, com a quantidade de imigrantes, forçados pela escravidão ou “convidados” pelas ofertas de trabalho, as trocas genéticas por meio da produção de brasileirinhos é imensa. Como vimos no último texto, os povos nativos tiveram contato com os portugueses e espanhóis que “descobriram” as regiões do atual Brasil, em seguida foram trazidos os africanos de diversas regiões do continente, posteriormente europeus de outras regiões querendo emprego nas fazendas, como os italianos e poloneses, bem como os japoneses, e hoje temos uma grande quantidade de refugiados de áreas de conflito, como haitianos e sírios que, assim como fizeram os italianos nas fazendas de café do século XIX, buscam uma vida melhor nos grandes centros urbanos do Brasil.
É antigo o conhecimento de que já os “descobridores” mantinham relações sexuais com as nativas brasileiras; assim como os senhores brancos também mantinham relações com suas escravas; além das imigrantes, principalmente as famosas francesas e polacas, que não encontravam trabalho ou não se adaptavam as funções disponíveis no Brasil e optavam pela prostituição, engravidando vez por outra apesar das técnicas rudimentares de contracepção; isso sem contar as possibilidades sexuais explicitadas no século XX quando a mistura destes e de outros grupos deixou de ser tão grave na sociedade, gerando destes muitos encontros ligeiros ou dos longos e duradouros casamentos crianças com cargas genéticas mistas. Então, hoje é muito difícil, senão impossível, encontrar alguém no Brasil com um DNA puramente português, por exemplo. Mas também, qual é o DNA puro, sendo que para a consolidação do DNA português, seguindo o exemplo, muitos outros também se misturaram, não é? Já foi muito registrada e estudada a história europeia que antes formar sua sociedade atual, civilizada, unida e pura, também passou por violência, casamentos arranjados e, claro, misturas de heranças genéticas pacificamente ou não.
Já socialmente falando, o mundo globalizado e cada vez mais conectado traz a possibilidade do contato fácil e quase que imediato com quase todos os seres humanos. É possível um morador do interior do Amazonas se conectar com um japonês, por exemplo, usando os vários aparatos tecnológicos à mercê dos homens. Os mais jovens, mais ligados na tecnologia e mais interligados nas redes sociais virtuais, criam em rede relações que talvez não seriam possíveis fora dela. Talvez o morador do interior do Amazonas nunca falasse com um japonês senão fosse a internet. Claro que devem ser consideradas aqui questões como o excesso de presença em redes virtuais se contrapondo a ausência no mundo real. Mas, o que interessa agora é entendermos as possibilidades de contato que o mundo nos oferta, e como podemos nos relacionar e nos identificar com coisas longínquas ou muito diferentes culturalmente falando através do contato social, virtual ou não.
Ainda, numa visão de cultura mundial, tendo como base que ao longo dos séculos muitos contatos sociais foram oportunizados, realizando algumas vezes misturas genéticas por meio de encontros ligeiros ou longo e duradouros casamentos, é importante refletir sobre o intercâmbio cultural que se consolida. É impossível ter contato com alguma cultura sem ser afetado de alguma maneira. A ligação com alguma característica de outro grupo sempre nos causa impressões, sejam de identificação, de neutralidade ou de negação. Para que alguém se diga contra ou a favor da causa de algum grupo, deve-se, pelo menos em ideal, ter contato com a causa e com o grupo. O problema atual é a superficialidade com a qual as causas e as identidades de grupos são tratadas uns com os outros, trazendo embates ferrenhos de interesses nos quais uns desejam sobreporem-se aos outros, como se devesse haver uma “cultura oficial” ou como se existisse a “certa”.
Diversidade Cultural
O ponto de reflexão aqui é que a cultura existente hoje no Brasil está carregada de características de grupos nacionais e internacionais. A música é um exemplo nítido. Quantos estilos musicais devem existir no país? E estes estilos foram cunhados com as agregações de quantas outras características de outros grupos? De onde vieram particularmente cada instrumento usado no samba? Qual as origens das batidas usadas no rock ou no funk?
A língua portuguesa no Brasil, chamada de “a mais rica e mais bonita do mundo” por Ariano Suassuna, também traz exemplos das influências que recebeu. Fafá de Belém, há poucos dias num talk show, contou que ao ficar doente durante uma viagem a Portugal foi consultada por um médico que identificou sua moléstia e disse que se ela tomasse o remédio receitado através de uma pica (do verbo picar) no cu ela se sentiria melhor. Ela mesma conta que ficou assustada com a declaração, mas tudo não passou de um pequeno mal entendido ocasionado pela negligência da relatividade cultural. No Brasil não se diz tomar uma pica (do verbo picar) no cu, e sim uma injeção na bunda, mas o que ocorre é que a palavra “bunda” tem origem africana e foi introduzida na língua nacional pelos escravizados trazidos da África. Suassuna também deu, de forma irônica, um exemplo da diversidade linguística do português brasileiro dizendo que nós chamamos o clássico objeto de tomar bebidas de “copo de vidro”, enquanto nos EUA, onde a tradução de “copo” é “glass” e a de “vidro” também é “glass”, segundo ele, eles deveriam chamar de “glass de glass”, sendo o inglês uma língua “pobre e feia”.
Para encerrar esta reflexão, parto para algo bem simplista e reducionista, para aqueles que não concordam com os “pontos comuns” existentes pela biologia, pela socialização e pela cultura. Temos hoje duas correntes de pensamento sobre o surgimento do homem na Terra que há bastante tempo estão em voga: a Criacionista e a Evolucionista. Os que acreditam no Criacionismo, principalmente os mais religiosos, creem que uma força maior que tudo, onipresente, onipotente e atemporal criou tudo do nada porque quis. Já os que acreditam no Evolucionismo, dentre várias teorias podem crer no Big Bang, uma explosão de imensa energia que originou por meio de evoluções e mutações toda a matéria que existe naturalmente. Portanto, tanto para uns quanto para outros há um ponto em comum: para um grupo todos os seres humanos foram criados pela força maior que tudo, que pode também ser chamada de Deus, para os cristãos; para outro grupo, todos os bilhões de humanos desenvolveram-se de organismos unicelulares, passando por diversas mutações até sermos o que somos hoje.
Só estes pensamentos já são capazes de trazer “pontos em comum” e já deveriam, por definição, basearem o respeito e a tolerância entre os pares, que oportunizariam uma vida social mais saudável.
Curitiba, 13 de fevereiro de 2017.
Titulado em nível de graduação em Conservação e Restauro de Bens Culturais, graduado em História, especialista em Gestão, Preservação e Valorização de Patrimônios e Acervos e em Estudos em Memória, e mestre em Patrimônios, Acervos e Memória. Atualmente é Historiador e Conservador-Restaurador do Círculo de Estudos Bandeirantes, em Curitiba, entidade cultural agregada à PUCPR onde também ministra aulas e oficinas periódicas para graduandos em História