Literatura

[Literatura] O Homem Sem Doença: uma crítica ao idealismo

Arnon Grunberg

“E essa parece ser a grande sacada do livro, a intenção derradeira do autor. A critica ao idealismo exacerbado e a vida sob máscaras enquanto uma história dura e suja acontece bem embaixo dos nossos narizes”

Por Pedro Del Mar

Um jovem suíço, filho de um imigrante indiano, recém formado em arquitetura e que, após estágio em um dos escritórios mais renomados da Europa, acaba de abrir, em sociedade com um colega, seu próprio negócio. Já tendo executado seu primeiro projeto, a construção de um centro budista, a vida de Samarendra Ambani parece fluir com a leveza e agilidade de alguém com um futuro promissor. Tal qual o aparente sucesso na vida profissional, Sam – como lhe foi transfigurado seu nome no ocidente – vai muito bem também no amor. Namora com Nina, uma jovem que conheceu em um avião para a Itália e que parece lhe completar e lhe satisfazer. O que poderia dar errado nessa vida milimetricamente nos trilhos? Essa é a máscara que o Homem Sem Doença” apresenta ao leitor. Uma máscara bela, robusta, refinada, indefectível, mas, ainda assim, uma máscara.

O Homem Sem Doença, mais que uma designação aleatória ou trivial, passa a ser a identidade de Samarendra. Assim o é em referência a sua vida sob a casca, ou melhor dizendo, sem a máscara. Aida, a irmã de Sam, possui uma grave e degenerativa doença muscular que a torna depende para todas as tarefas diárias. Sam, o irmão fisicamente saudável, o homem da casa após a trágica e precoce morte do pai , torna-se assim o homem sem doença, o homem onde recai todas as expectativas.

Arnon Grunberg

O roteiro da trajetória do jovem arquiteto, como o leitor perceberá no decorrer da obra, confunde-se facilmente com as contradições e diferenças entre mundos distintos. Sam, embora cidadão europeu e orgulhoso dessa condição – “sou um arquiteto suíço” é a frase que veremos seguidas vezes no livro – carrega no nome e na aparência física os traços de sua ascendência asiática. E é na Ásia, mais precisamente no Oriente Médio, que se dará o desenrolar da história.

Entre projetos profissionais e experiências aterrorizantes no Iraque e em Dubai, onde Sam é torturado, preso, acusado de espionagem e protagoniza um epílogo cruel e pujante, lembrando claramente a celebre passagem de Karl Marx “a história se repete, a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”, o autor, Arnon Grunberg, expõe, sempre com ironia e uma pesada dose de realismo, algumas das fissuras e hipocrisias marcantes na relação – cada vez mais bélica – entre o ocidente e o oriente e entre uma realidade árida e uma vida tomada pelo idealismo.

Se o protagonista parece um individuo saudável em termos físicos, há traços de sua personalidade que poderiam, sem exagero, ser considerados graves sintomas de uma doença fatal.  Idealista e ingênuo, metódico e apático, Sam descobre da pior forma possível o alto preço desse distanciamento do chão. Aficionado por limpeza e devoto de uma ideia que ele acredita ser o objetivo da sua profissão, e, portanto, o objetivo da sua vida, Sam é pisoteado por uma realidade impiedosa. “Caramujinho”, o apelido de Sam dado por sua namorada, resume bem sua personalidade, alguém que se esconde sob sua casca diante dos perigos do mundo real. Aliás, esses traços lembram bastante a personalidade de um outro protagonista de um outro livro da Rádio Londres: Stoner.

E essa parece ser a grande sacada do livro, a intenção derradeira do autor. A critica ao idealismo exacerbado e a vida sob máscaras enquanto uma história dura e suja acontece bem embaixo dos nossos narizes.

Embora apresente uma sequência lógica dos fatos, “O Homem Sem Doença” deixa perguntas sem respostas, fatos sem elucidações e pontos sem nós, mas não por falha ou desatenção, mas como um recurso estilístico e técnico do autor, dando margem ao leitor para interpretações diversas e focando a mensagem central em outros aspectos. O que verdadeiramente é o World Wide Design Consortium? Quem realmente é Hamid Shakir Mahmoud? O que Heavy fazia em Zurique? Por que o levaram para Bagdá? Por que ele? São perguntas que o leitor fará durante e após a obra, mas nem por isso torna o enredo desinteressante.

O Homem sem Doença

Como um bom thriller moderno, dinheiro, sexo, álcool, violência, dor e morte são constantes em toda obra. O final, longe de previsível, deixa o leitor, ainda que por poucos segundos, paralisado. O próprio Sam, em suas últimas páginas, parece já não saber o que é verdade e fantasia, o que realmente aconteceu e o que foi fruto da sua imaginação, se ele mesmo fala a verdade ou criou aquela história em sua mente. Sua família e poucos amigos, igualmente parecem não saber em que chão estão a pisar.

Grunberg, além da já declarada inspiração kafkiana, parece transitar entre Lars Von Trier e Quentin Tarantino ao costurar os caminhos de seus personagens e seus destinos finais. Em outras palavras, não espere um final de novela ou de conto de fadas, se é isso que procuras, veio ao lugar errado. Mas se é uma história intrigante, conectada ao contexto geopolítico atual, recheada de ironias, surpresas, críticas e desfechos desconcertantes, ou seja, se é boa literatura que desejas, então mergulhar em “O Homem Sem Doença”  é uma boa pedida. Li as 233 páginas em um único dia, e foi um belo dia!

Título: O Homem Sem Doença
Autor: Arnon Grunberg
Editora: Rádio Londres
País: Holanda
Ano: 2012 Holanda/ 2016 Brasil
Páginas: 233
Avaliação do Cabine Cultural: 9,0

 Pedro Del Mar, baiano, 26 anos, repórter e colunista. Um curioso nato que procura enxergar o mundo sem as velhas e arranhadas lentes do estabilshment. Acredita que para todo padrão comportamental há interessantes exceções que podem render boas histórias.

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