Na contramão da objetividade anódina, os curtas-metragens “Ritual Pam Pam” e ” Muros” se impõem como documentários com um olhar vigoroso sobre o real
Por Adolfo Gomes
É preciso ter algo de impertinente para registrar as coisas, os lugares ou as pessoas. Pode-se, é claro, refugiar-se no real e então temos esse sem número de documentários recentes, destituídos de um olhar, da imaginação do olhar. Mas também temos dois curtas-metragens documentais que oferecem, quer seja pela impertinência ou interesse no que está à nossa volta, o que ver, para além do simples registro da realidade.
“Ritual Pam Pam” (BRA, 2013), de Ramon Coutinho, e “Muros” (BRA, 2015), de Fabricio Ramos e Camele Queiroz, escolhem compartilhar a experiência de entrar em territórios relativamente conhecidos, como se fosse uma descoberta.
No curta de Coutinho, jovens se encontram em torno das aparelhagens sonoras. Há um entrecho etnográfico na associação daquelas reuniões sensoriais aos ritos tribais, ainda latentes nessa espécie de pós-civilização em que vivemos. Nem precisava. Estamos no domínio das imagens e, quase sempre, elas são as evidências de que precisamos, do contrário, pode se fazer literatura, arte abstrata ou música atonal…
O movimento efetivo em “Ritual Pam Pam” é o da naturalização, no mais amplo sentido. Fora do quadro construído por Coutinho pode parecer extravagante, estranho e até mesmo ridículo tal “volume social”. É da imaginação, não simplesmente da captação do real, que emana esse desejo de entendimento, de imersão naquele “universo”, a ponto de não nos sentirmos, como antes, apartados dele, mas de reconhecermos ali um traço mais antigo e, de fato, universal.
Ritual Pam Pam Pam
O percurso de “Muros” é de natureza semelhante. A partir da vivência do fotógrafo Rogério Ferrari em áreas de conflito, sobretudo no Oriente Médio e em particular na Palestina, o casal Fabricio e Camele põe (em)cena as diversas “faixas de Gaza” encravadas na topografia urbana brasileira.
Nesse processo de aproximação, é como se a experiência anterior de Ferrari no estrangeiro, cujo contundente registro fotográfico ajuda a legitimar, assegurasse a ele, ainda que sob um ponto de vista dramatúrgico, o papel de anfitrião/repórter, de mediador da experiência atual, da dupla de realizadores, numa zona conflituosa.
É uma força adicional de “Muros” que Ferrari nunca deixe se subjugar pela “funcionalidade” da sua presença. É ele, também, um fator de tensão no cenário em que se insere colhendo imagens. Sua postura altiva e impertinente o afasta do tom conciliatório e assistencialista que costuma nortear esse gênero de intromissão artística “na vida real”. O curta trata a todos como iguais.
Não fossem os excessivos fades a preparar a inserção das fotografias de Ferrari (emulando “o click” da câmera), o fluxo narrativo do documentário seria ainda mais vigoroso. Em cortes secos, “Muros” teria, talvez, uma outra poética, direta e horizontal. Ver, não apenas mostrar, aquelas ruas, casas e pessoas, sem respiros ou piscadelas. Mas essas possibilidades – de certa forma é bom que seja assim – cabe ao espectador imaginar.
Adolfo Gomes é cineclubista e crítico de cinema filiado à Abraccine. Curador de mostras e retrospectivas, entre as quais “Nicholas Philibert, a emoção do real”, “Bresson, olhos para o impossível” e “O Mito de Dom Sebastião no Cinema”. Coordenou as três edições do prêmio de estímulo a jovens críticos “Walter da Silveira”, promovido pela Diretoria de Audiovisual, da Fundação Cultural da Bahia.