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Memória Patrimônio e Sociedade: “uma faca de dois gumes”

Patrimônio e Sociedade; memória social, identidade cultural, patrimônios, coleções e muito mais

“uma faca de dois gumes”

Os primeiros documentos que intencionavam a criação de um departamento que se ocupasse dos patrimônios brasileiros, ainda na década de 1930, também contemplavam a funcionalidade e as possíveis efetividades de ações educativas voltadas ao patrimônio. Mário de Andrade, à época um dos maiores nomes do movimento Modernista e diretor do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, foi convidado para escrever um anteprojeto que culminou na criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, órgão que antecedeu o atual Instituto que trata dos mesmos temas.

No anteprojeto Mário de Andrade defende a criação de museus técnicos que, via de regra, ao redor do mundo eram usados para ensinar sobre a história de uma indústria ou outra grande empresa, sendo estes museus, à exemplo o Museu Técnico de Munich e o Museu de Ciência e Indústria de Chicago, de teor altamente pedagógico. Nesses museus ou, em linhas gerais, nesses equipamentos culturais encontraríamos o lugar de encontro dos esforços civis, governamentais e privados para a promoção do conhecimento e da cultura. Dentre todas as ações como a fundação de museus, tombamento de coleções e acervos e a publicação de obras especializadas promovidas durante os primeiros trinta anos do IPHAN (durante a gestão de Rodrigo Melo Franco de Andrade) destacam-se a promoção de exposições que tinham intrinsecamente o caráter educativo, não só informativo.

Apesar dos esforços dirigidos para a educação em museus, foi somente na década de 1970 que o tema da educação por meio e para o patrimônio foi aprofundado a partir de reuniões de funcionários do governo federal e de professores da Universidade de Brasília, tendo sido eleita a maior necessidade como a educação que formasse pessoas capazes de entender e auxiliar na manutenção da preservação do patrimônio que tinha como plano de fundo a formação cultural do cidadão em diversas vertentes. Para além da educação formal dentro das escolas, também se davam vistas ao ensino e pesquisa sobre a cultura dentro dos equipamentos culturais como os museus, sítios patrimoniais e galerias. A inserção do indivíduo dentro do espaço patrimonial aconteceu aos poucos, movendo o foco da educação tradicional para uma educação mais dinâmica que possibilitava uma maior participação dos envolvidos. A pluralidade e a diversidade cultural presente no Brasil eram os principais assuntos envolvidos na necessidade de se educar indivíduos a serem inseridos nesses debates entendendo uma amplitude maior que a escolarização restrita ao ensino alfanumérico. Apresentações teatrais, desenhos, fotografias, debates e aulas de artistas plásticos dentro de museus foram alguns dos produtos conseguidos com as atividades pedagógicas nos ambientes patrimoniais.

Em 1983, durante o Primeiro Seminário sobre o Uso Educacional de Museus e Monumentos realizado no Rio de Janeiro, houve a inclusão do termo Inclusão Patrimonial no Brasil com as mesmas bases da educação promovida correlatamente na Inglaterra. Já em 1996, com o lançamento do Guia Básico de Educação Patrimonial, o Brasil tem sua primeira grande referência teórica com o estabelecimento de conceitos e sugestões práticas para a execução dos trabalhos educativos envolvendo o patrimônio. Nessa obra foram contemplados quatro momentos que promoveriam a efetividade da educação patrimonial: observação, registro, exploração e apropriação. Além dessas duas importantes ações, a criação, em 2004, da Gerência de Educação Patrimonial e Projetos pelo IPHAN também é um dos tópicos a serem registrados na ação pedagógica patrimonial no Brasil por ser o primeiro órgão público federal a se ocupar essencialmente com o tema.

Com essa base histórica podemos analisar as possibilidades e atualidades da educação patrimonial brasileira. Trataremos aqui de duas possibilidades dessas atividades que podem, inclusive, serem realizadas concomitantemente: a possibilidade de contato com locais, temas e metodologias pouco conhecidas dos indivíduos ou de difícil acesso por eles se não fosse por ações de educação patrimonial; e a possibilidade de se usar a educação patrimonial para se impor os pensamentos vigentes sobre o patrimônio nos indivíduos que tomam o contato com ele especialmente nas primeiras vezes, impedindo a reflexão e a formação de caráter cidadão. Todas as atividades pedagógicas voltadas ao patrimônio e por meio dele podem realizar essas duas operações, uma positiva e outra negativa, uma vez que estão dotadas de poder quando são implementadas.

Museu

Os setores ou as atividades didáticas via patrimônio, como se propõe, educa sobre um objeto usando-o como método instrutivo. Ensinar sobre a necessidade, historicidade e aplicação dos museus dentro dos próprios museus, com os acervos dos museus e usando as expografia deles aumenta o contato, a dinamicidade e também a ludicidade dos modos educativos. Um dos pontos iniciais a serem observados é que os espaços de cultura, que envolvem museus e patrimônios em linhas gerais, são embebidos em poder institucional que usualmente justificam sua existência e suas implementações, ou seja, a criação de um museu por meio do poder do governo federal, por exemplo, não abre atualmente muitas possibilidades de questionamentos sobre sua própria fundação e suas atividades (esse segundo ponto tem tido, aos poucos, novas contingências no país como nos casos de Queermuseu no Rio Grande do Sul e La Bête em São Paulo) de forma prática no cotidiano das sociedades. Museus, centros históricos, galerias, monumentos e outras representações da cultura patrimonial são cotidianamente tidos como positivos justamente pelo caráter cultural que carregam, não à toa a crítica sobre a validação destes é pouco encontrada nos debates políticos que visam mais a gestão.

Uma vez implementadas as ações pedagógicas para e por meio do patrimônio, que são de fato a melhor tentativa já realizada de formar indivíduos para a vida cidadã neste conteúdo específico, e dotadas até mesmo inconscientemente do poder que carregam e exercem apresentam as duas possibilidades citadas. Na primeira, a possibilidade de contato com locais, temas e metodologias pouco conhecidas dos indivíduos ou de difícil acesso por eles se não fosse por ações de educação patrimonial, as atividades ajudam na formação dos indivíduos, muitas vezes de estudantes da Educação Básica (crianças e adolescentes), mas também outros grupos como grupos de turistas, idosos e curiosos em geral. A educação patrimonial promovida pelos poderes públicos municipais em centros históricos e outros roteiros com outros motes podem ser, sim, uma alternativa de melhorar a educação para a história, a sociologia, a política e a cultura. Muitas vezes, não fosse pela educação patrimonial promovida pelos setores especializados, os estudantes não teriam um contato de qualidade reconhecível com estes temas.

Como exemplo de possibilidade pensemos numa professora do Ensino Fundamental I que, nos anos finais dele, precisa tratar com os estudantes a história regional: em suas aulas ela pode tratar do recorte das grandes imigrações acontecidas entre a metade do século XIX e a metade do século XX no Brasil privilegiando, se a região historicamente assim permitir, os italianos. As aulas podem transcorrer estudando a vida pré-viagem dos italianos ainda na Itália, as transformações do cotidiano italiano (trabalho, demografia, cultura, política) que propiciaram as massivas viagens ao Brasil, as condições da imigração, a chegada no continente americano e os modos pelos quais se estabeleceram, se mantiveram e se perpetuaram os que escolheram passar sua vida no Brasil. Após o necessário suporte histórico sobre o tema pode-se, ainda no mesmo exemplo, acontecer uma visita da turma no museu histórico da cidade para que os estudantes tenham contato com o mesmo conteúdo, mas com outra metodologia. No museu eles podem ter acesso às testemunhas materiais da vida dos italianos imigrantes com indumentária, ferramentas do trabalho agrícola e registros culturais como fotografias de festas e missas. Ainda, para possibilitar outras capacidades de análise dos estudantes, uma visita a uma colônia ou uma região da cidade que tenha recebido os imigrantes para se avaliar a arquitetura restante do fim dos oitocentos, as famílias que ainda vivem no local e como se mantêm atualmente promovendo um estudo sobre as permanências e as rupturas da cultura italiana no Brasil. Neste exemplo temos a primeira possibilidade da educação patrimonial, quando o contato oferece novas perspectivas didáticas colocando em questionamento sempre constante o conteúdo estudado, a manutenção das permanências e o estabelecimento das rupturas com base na atualização das necessidades e outras extensões que aumentem a criticidade dos que interagem com o patrimônio.

Neste mesmo exemplo podemos ter o teor negativo da execução da educação patrimonial. No mesmo caso do estudo da imigração italiana, da visita ao museu histórico e posteriormente à colônia, podem ser deturpadas as intenções pedagógicas e cidadãs se a educação patrimonial for usada com força impositiva do conteúdo e da aceitação quase que meramente contemplativa dele. Se ao visitar o museu e a colônia os estudantes, especialmente as crianças das séries iniciais, tiverem como ponte algum agente (mediador, monitor ou outro nome usado para designar a pessoa que intermedia o momento da educação patrimonial) que deixa transpassar no ato educativo alguma eleição de valores ou saberes tidos como mais ou menos merecedores de preservação e/ou descarte, isso pode dirigir os futuros julgamentos das crianças com base no conteúdo recebido uma vez que estes espaços validam-se em si com o poder institucional e a positividade de sua produção. Se ao visitar o museu, por exemplo, o agente do intermédio praticar alguma religião evangélica mais fundamentalista que não concorda com a existência de ídolos nas igrejas e com o ato de adorar imagens e deixar isso extrapolar os limites do público e do privado dizendo aos estudantes que adorar imagens de santos não é correto, possivelmente estes estudantes irão à colônia e encontrarão os descendentes de italianos, quase sempre católicos, com outra visão religiosa, na qual as imagens existem e são adoradas, e terão desde o início uma predisposição a entender como incorreta essa prática. O risco está na existência da clara viabilidade de se transmitir valores simbólicos próprios por meio da cultura de um modo geral como foi feito com a arte nos regimes totalitários do século XX.

A educação patrimonial deve permitir acesso e contato com temas muitas vezes corriqueiros, mas com métodos próprios e muitas vezes mais dinâmicos e participativos. Quando a participação se restringe a ser um receptáculo mudo de conteúdo há apenas a reprodução da educação tradicional e falha. A educação patrimonial deve intentar também a formação de senso crítico dos estudantes e/ou interessados em geral viabilizando a análise e o questionamento sobre a existência deste ou daquele bem cultural e dos empenhos para sua manutenção ou das negligências relegadas a eles. Se a educação patrimonial transforma os bens em meros merecedores de contemplação e altamente protegidos de críticas contrárias à sua validade, tira-se dele o potencial didático-crítico. Ainda, o ensino pelo e para o patrimônio pode, quando mal aplicado, ser usado para forçar a aceitação do próprio patrimônio não permitindo a construção de um conhecimento individual próprio de cada indivíduo, mas naturalizando e essencializando o saber que negativamente, como um bloco já moldado e pronto, deve ser aceito por todos para a subsistência do próprio.

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