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Que horas ela volta? ou Second Mother – Minha mãe, e do seu filho também

Filme brasileiro Que Horas ela Volta? ficou de fora da disputa pelo Oscar / Crédito: Divulgação

Que Horas ela Volta?

“É um filme acessível a todos, e é difícil assisti-lo e não se identificar com pelo menos um dos personagens em seus gestos mais nobres ou repulsivos”.

Por Karina Balan Julio

Regina Casé está chegando aos cinemas para interpretar a babá e empregada doméstica Val, no novo filme de Anna Muylaert (Durval Discos, É proibido fumar). Com estreia prevista para semana que vem, Que horas ela volta? narra o drama de Val, que deixou sua filha Jéssica (Camila Márdila) em Pernambuco para tentar a vida como babá em São Paulo, e foi morar na casa dos patrões. Ela cuida de Fabinho (Michel Joelsas), filho de Bárbara (Karine Teles) e Carlos (Lourenço Mutarelli), até a adolescência do garoto, e deposita nele todo o carinho e atenção que não pode dar à filha. Até que, anos depois de se separar da mãe, Jéssica decide ir à São Paulo para prestar vestibular e reencontrar Val. Ela é uma garota inteligente e determinada que, quando chega à casa da família, não se deixa submeter às barreiras invisíveis de classe.

Que horas ela volta? é atual, tem o frescor das transformações dos últimos anos e, como poucos filmes com temática social, tem a dosagem certa de provocação e humor. As tensões entre patrões e empregados são bem orquestradas e a atuação de Regina traz um toque de leveza e comicidade à trama. Tendo conquistado visibilidade internacional, o filme já ganhou o prêmio de melhor filme pelo júri popular no Festival de Berlim, e rendeu às atrizes Regina Casé e Camila Márdila prêmios de melhor atriz em filme estrangeiro no Festival de Sundance. O rebuliço do filme no exterior pode ser explicado pela universalidade do tema e os conflitos inerentes à ele. “É um filme que trata de relações de poder, e isto está em todo lugar…Todo mundo está em algum lugar dentro desta hierarquia de poder. Eu acredito que ele seja popular”, completa a diretora Anna Muylaert na coletiva de imprensa em São Paulo .

É um cutucão na classe média alimentada pela cultura da segregação, que não é intencional mas que possui raízes históricas. Ao trazer Val e Jéssica como condutoras da trama, Muylaert nos faz sair de nosso lugar de conforto e nos convida a observar a realidade sob o olhar do outro, um olhar invisibilizado. É uma denúncia dos preconceitos e comportamentos que foram naturalizados ao longo do tempo. Jéssica se vê no direito de ocupar os mesmos espaços dos patrões e tomar do mesmo sorvete de Fabinho. Diferente de Val, que adota uma postura servil e indulgente, ela não aceita a separação imposta pela arquitetura da casa e os comportamentos impostos pelos patrões da mãe . Sua determinação e olhar crítico são vistos como petulância e imoralidade, visto que ela rompe com a ordem estabelecida e causa um choque de valores.

A patroa interpretada por Karine Teles pode até parecer caricata à princípio, mas também traz à tona inseguranças e fragilidades na sua relação com o filho. “A gente pensou muito o lugar da Bárbara tentando não demonizar ela, esse lugar de não saber como se comportar e de reproduzir um comportamento transmitido a ela pela sociedade, que é cultural…ela está ali achando que está certa e precisa fazer o papel de patroa”, diz ela. A sensibilidade está muito presente na abordagem das relações maternais entre Val e Jéssica, Bárbara e Fabinho, e até no papel maternal de Val em relação à Fabinho. É possível tecer um paralelo com o curta metragem Babás, de Consuelo Lins, que também é um belo elucidativo do papel social da babá como co-criadora dos filhos dos patrões, que tem raízes lá no Brasil colonial com as Amas de Leite.

Que Horas ela Volta?

Em Que horas ela volta?, a diretora sai do lugar comum e modifica o arquétipo da família brasileira: A família católica composta pela mulher dona de casa e homem que trabalha fora é substituída pela família moderninha, onde Carlos é artista plástico e não trabalha e Bárbara é designer bem sucedida. “Eu realmente queria que eles não fossem aquela velha guarda. Queria que fosse eu, a gente, que usa camiseta do Elvis Costello, que trabalha, que fosse uma família contemporânea”, alega Muylaert. A articulação destes personagens funciona muito bem, e é a prova de que a família cool não está isenta de reproduzir valores mesquinhos.

Após testemunhar diversas realidades durante a sua carreira, em programas como Central da Periferia e Brasil Legal, Regina Casé não descarta a importância de sua trajetória na construção de sua personagem: “reparei tantos gestos e tantas coisas de um tipo de mulher enquanto eu viajava, coisas que eu olhei tanto e que eu prestei tanta atenção durante anos…a Val é uma oportunidade de eu tirar das costas muitas coisas que eu juntei, uma tralha emocional e amorosa em relação a tantas mulheres do Brasil que eu conheci, me emocionei e observei cada gesto, cada maneira de falar e comportamento… eu vi a Val na favela, a Val do forró, como ela se diverte…eu agradeço à Anna por poder devotar o meu amor a essas mulheres que eu olhei com tanta admiração”.

Existem filmes excelentes com temática semelhante, como O som ao Redor (Kleber Mendonça Filho) e Doméstica (Gabriel Mascaro), ambos muito contundentes no retrato da classe média e das relações de poder que permeiam nossa sociedade. A diferença está no potencial comercial de Que horas ela volta?, que será exibido em pelo menos 20 cidades do Brasil e tem tudo para ser bem recebido tanto pelo público geral como em circuitos alternativos. É um filme acessível a todos, e é difícil assisti-lo e não se identificar com pelo menos um dos personagens em seus gestos mais nobres ou repulsivos. “O genial seria que todos os correspondentes dos personagens assistissem ao filme todos os patrões, todos os filhos que foram criados por empregadas e filhas de empregadas”, afirma Regina.

Karina Balan Julio é estudante de Comunicação da UNICAMP e correspondente do site em São Paulo

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