Literatura

“Pose” é uma das melhores séries de todos os tempos (c/spoilers).

Pose

“Necessária, elegante, chic, cheia de tristeza, aceitação, luto, HIV, ativismo, romance e demasiadamente honesta, essa é a produção de Ryan Murphy que continua a sua tradição de reviver a cultura pop dos anos 80/90 e dar voz a minorias.”

Por Elenilson Nascimento e Anna Carvalho

A categoria é VIVA… ARRASE… POSE! Estávamos tentando escrever um texto bem imparcial sobre “Pose”, mas aí não resistimos e entregamos os nossos personagens preferidos no final. Um dos grandes lançamentos do ano de 2018, a série “Pose” é descrita por muitos críticos de cinema e TV como uma obra sobre a comunidade gay de Nova York, durante os anos 80 e começo de 90. Mas é algo muito maior que isso. Só tivemos oportunidade conferir as duas temporadas recentemente e, realmente, afirmamos: é uma obra por demais necessária! Fugindo do óbvio, a série do canal FX apresenta um enredo que desafia quando a questão é representatividade.

Produzida por Ryan Murphy, a mente por trás de coisas bacanas como “American Horror Story”, “Glee” e “The Assassination of Gianni Versace: American Crime Story”, a série é uma espécie de ensaio cego sobre a Aids que começou a dizimar pessoas no começo da década de 80 e, a priori, era uma doença que alijava os já alijados em suas “gambiarras de sobrevivência”. Com o maior elenco gay e trans da história da televisão, “Pose” tem uma narrativa de exclusão que é típica das minorias e também do longo trabalho que o showrunner vem executando, sempre pensando na cultura pop, nos guetos, em reacender gêneros perdidos e em focar no azarão. Aqueles que não se comunicam com a realidade de “Pose” podem, contudo, encontrar a boa e velha narrativa de superação que também é muito recorrente na obra do produtor. Torcer por aqueles personagens fica inevitável já nos primeiros instantes do episódio piloto. E é muito curioso ver como a série que mostra “o show da turma que mais sofre preconceitos de públicos conservadores” é o melhor drama familiar já exibido até então.

Com o maior elenco gay e trans da história da televisão, “Pose” tem uma narrativa que foca na exclusão.

Após um começo turbulento a série começa a contar sua história em capítulos curtos que revisitam a comunidade gay: seus dilemas, seus dramas, seus vícios, suas músicas e seus encontros às escuras. Em um primeiro momento, a série aborda o que é mais doloroso para os personagens: o senso de rejeição. Expulsos ou abandonados pelos que deveriam amá-los incondicionalmente, os personagens se reúnem em busca de afeto, de um lar, de uma breve felicidade, de beleza e de ilusão nas pistas de dança. E para que a dramaturgia toda de “Pose” funcione bem e não vire um retalho de clichês, o público precisaria sentir o quão “invisíveis” aquelas pessoas (gays, negros, cafetões, drogados, putas, desempregados e latinos) são para o resto do mundo e o quanto os bailes eram o refúgio tomado de cores e brilhos, onde cada um podia se sentir aceito.

A cena do jovem Damon, interpretado por Ryan Jamaal, levando uma surra do próprio pai quando este encontra uma revista pornô masculina no meio das coisas do rapaz é emocionante. Mas Damon é o elemento otimista dentro da série, e isso não deixa de ser um alento, uma personagem que enuncia surras de cinto, tapas na cara, a identidade se firmando exatamente na ausência do lar, da família, a morte para um pai machista e violento. Não importa o quanto sofram os personagens, já sabemos, encontraram um jeito de pegar toda aquela escuridão e traduzi-la em algum tipo de otimismo.

Contudo, a pegada começa mesmo quando a Casa Abundance (um grupo unido por afinidades e necessidades) está iniciando seu processo de decadência, uma vez que sua “mãe”, a estonteante-deslumbrada-venenosa Elektra Abundance (Dominique Jackson) deixou-se tomar pela arrogância e transformou seus “filhos” em soldados gananciosos e frios. Então, Blanca (MJ Rodriguez), que até então pertencia a Abundance, está cansada disso tudo no mesmo momento em que descobre que é soropositivo, abandona o lar e decide começar ela mesma sua “prole”. A série, então, passa a mostrar as disputas entre os grupos Abundance e Evangelista, agora de Blanca, enquanto ao redor disso estão os dramas pessoais das personagens, que incluem a marginalização social, a ameaça constante da morte e a busca pelo amor (seja de que for) e pela aceitação. Mas a história fica gravitando em torno da Blanca, sobre seus conflitos, discriminação, a descoberta do diagnóstico de HIV, pois a homossexualidade realmente expõe esses meandros: a família desfeita, as facetas de uma moral ilibada e feita para discriminar entes.

As disputas das Casas Abundance e Evangelista: unidas no ódio e também no amor.

Mas “Pose” também se erige pela religiosidade de punir aqueles que transitam diante da vida, sendo escrutinados a provarem que podem entrar no reino dos céus, afinal Deus não deve estar interessado no que os homens achem normal ou não. Cortes nas cenas de glamour: hospitais, a morte de Candy, choro, diagnóstico, a profecia se cumprindo; pois o HIV é uma destinação natural para pessoas com vida, estilo que a sociedade não queira? Aqui um adendo, os testes de HIV deveriam ser trágicos, pois a vida deveria ser mais do que um positivo ou negativo. A Blanca, por exemplo, recebe o seu diagnóstico e decide viver sob esse julgo, mas a série também é permeada pelo fio condutor de uma trilha sonora perfeita, temporal, memorialista, diria. E também trata de casas, onde as pessoas “criam famílias”, já que as suas famílias, no sentido biológico da palavra, as expelem de seu lar, aí se apresenta o conceito de irmandade tão específico nesse meio.

A Blanca vive com alguns estigmas das minorias: negra, trans e abandonada pela família. Não sabemos se cabem tais anacronismos na série, mas nos permitimos o devaneio conceitual, por que para algumas questões sociais, mudam-se os tempos, os homens, mas nada muda de fato, hipocrisias, sobretudo. Outro adendo da série: a dança, a discoteca numa espécie de darwinismo social, uma espécie de eleição de talentos também à margem dos processos subjetivos. Talentos ou estigmas? Eis a questão sutil elaborada também em “Pose”.

E tudo isso regado ao glamour, ao brilho dos bailes e da divulgação da “Vogue” – estilo de dança popularizado por Madonna, lá no ano de 1990, com o lançamento da música com o mesmo título, além de várias músicas disco como que servindo a uma causa, pois há uma cena de roubo para que as personagens tenham glamour; além dos guetos que seduzem a acepção etimológica da palavra, gay: alegre. Aliás, Madonna é citada várias vezes, seja com a própria música “Vogue”, com vários personagens fazendo referências, seja com as inusitadas participações da atriz e comediante Sandra Bernhard (que já foi amiga de Madonna) fazendo uma ponta como médica, além de José Gutierrez (que foi dançarino da cantora na turnê “Blond Ambition”) fazendo uma performance e sendo jurado no clube, remetendo ao ambiente idílico em que gays, homens, mulheres e trans viviam plenamente em seus estilos de vida.

Candy, vivida pela atriz trans Angelica Ross, com a sua Madonna preta e pobre.

Angel, a personagem vivida por Indya Moore, tem sua narrativa correndo por fora. A prostituição era, para muitas das transexuais e travestis da época, o único caminho para garantir comida na mesa. E como achar moral, por exemplo, onde muitos morreram pela infecção suspeita que trazia sob suspeição um estilo de vida não convencional, como diria Cazuza, também morto por infecção oportunista da Aids: “Meu prazer agora é risco de vida”, onde denunciava as cicatrizes de uma sociedade cravada sobre uma síndrome que anunciava um certo cadafalso. E, de fato, isso ainda acontece até hoje.

Angel, então, é “resgatada” por Stan (Evan Peters, o Mercúrio de “X-Men: Dias de um Futuro Esquecido”), um típico americano branco criado pelas regras conservadoras da família católica, casado com a personagem de Kate Mara (dos filmes “Quarteto Fantástico” e “Perdido em Marte”), empregado de uma das empresas de Trump (isso mesmo, o próprio) e com um patrão aproveitador e fofoqueiro, mas a narrativa desse núcleo tem uma única grande coisa a dizer: o higienizado mundo da classe média branca não é capaz de entender o que é viver tendo direitos básicos negados a cada minuto do dia. Contudo, o amor entre Angel e Stan tem uma infinidade de poréns e pesares, cada um deles tomados de melancolia e humanidade, principalmente por ela ser trans.

O triste relacionamento de Angel e Stan: vivendo escondidos entre poréns e pesares.

Mas será que a série trataria da superficialidade desse mundo epidérmico entre brilhos, títulos, troféus, disco, globo? As personagens da trama circulariam em dilemas éticos contra a polícia e a política? Será que na rua que esses flashes se desenhariam? Questões que remetem nossas cabeças com um tema tão específico e sério, em uma década de perdas, revisitação cultural, devastação moral de uma sociedade que engavetava discriminações, delitos e a sexualidade sob a epidemia de Aids. Talvez, sempre talvez, plasmava-se num senso de epígrafe moral de Sodoma e Gomorra. Como se o pecado procedesse de um castigo moral para efeito de castigo na pior acepção da palavra.

Em recente entrevista, o diretor Ryan Murphy, que também é escritor, jornalista, professor e produtor de cinema e televisão americano, vencedor de 5 prêmios Globo de Ouro e 7 Emmy, disse que a ideia de “Pose” foi recusada muitas vezes por alguns estúdios e que o FX topou a empreitada ciente de que, embora os dramas humanos fossem universais, a série falaria para um nicho específico – e isso é a absoluta verdade.

Ao se descobrir soropositivo, Ricky Evangelista só questiona a sua total solidão.

O CONCEITO DE CASA – Um espaço em que haverá uma família, uma mãe escolhida, celebração da vida e que o resto do mundo esteja vetado. Mas o mundo dos bailes é apresentado em “Pose”, não de maneira burlesca, mas afetada, uma espécie de chancela àquelas pessoas vetadas pela vida dura normativa. Uma das coisas que surgem nas nossas cabeças: dependendo da sua escolha, você é sujeira que a família joga para debaixo dos tapetes da sala de estar.  Mas o mundo das discotecas cede lugar para o abandono, exílio, buraco no peito deixado pelas famílias biológicas das pessoas que são expulsas. Pensamos aqui no Rei Lear, de Shakespeare, onde a história sobre um rei, um servo charlatão, a roupa que não existe, todos enganando o rei até um menino constatar o óbvio: o rei está nu.

A sociedade era o rei, o HIV, o menino que constatava o óbvio, a nudez de uma sociedade em drágeas, sendo mesmo placebo. Há cenas de Evan Peters, que tem seu personagem trabalhando com Trump, que sai com a trans Angel, onde a série se insinua nos seus interstícios, naquilo que existe e que não se pode saber, ver, atestar. Aliás, por que será tão importante aquilo que se faz na intimidade? Em posição vertical? Nas alcovas? Mesmo assim, “Pose” encerra a sua segunda temporada imbuída de muito afeto, mesmo com aquelas cenas clichês da Blanca em um cadeira de rodas dublando Whitney Houston.

A atriz trans MJ Rodriguez, que interpreta a personagem Blanca em “Pose”.

Ainda que expulsos de casa, ainda que rejeitados pelas maiorias, ainda que perdendo seus grandes amores, estas personagens têm uma ligação fraternal que se torna o centro da questão. As trajetórias de Blanca e Elektra convergem de forma coesa e especial, proporcionando ao espectador um respiro bem-vindo depois de semanas seguidas de dramas e perdas.

Ainda que hoje essas perguntas permaneçam frivolamente sem respostas, a ponto de se causar comoção uma detenta trans institucionalizada abraçada por um médico famoso num programa em rede nacional aberta. O médico sai como herói. Mas a voz que o diretor de “Pose” deu à comunidade LGBTQI+ dessa vez é gritada, mas o showrunner continua capaz de cavucar catarses em qualquer pedacinho de arte que colocam em suas mãos. “Pose” tem uma direção de arte impecável, um texto cuidadoso e um elenco cheio de representatividade e talento, de um jeito que – quando colocamos em perspectiva o que Hollywood sempre fez – chega mesmo a comover.

Uma das cenas mais fortes da série “Pose”: Ricky Evangelista e Pray Tell, ambos diagnosticados com HIV, se entregam a paixão.

É isso que se quer, espera-se de uma sociedade tão versátil? Até o menino gritar que o rei está nu. E está mesmo com uma nudez pouco privativa, vulnerável, exposta, sem respostas, esperando hipocrisias em seu trapo. “Pose” veio para ser esse menino gritando sua obviedade: Deus, vida, sociedade, doença, julgamentos sumários, todos nus. AAAAAH! não acreditamos que demoramos tanto pra assistir. Assistam “Pose”. E não só porque é uma série belíssima, é pela reflexão. Sobre dores, escolhas, feridas, preconceitos, aceitação, caminhos, e especialmente sobre encontrar o lugar que te faz feliz. Assistam, pois nós aqui vamos ter que tomar uns 10 litros de soro para nos reidratar de tanto chorar assistindo “Pose”, meu Deus! E o Pray Tell cantando no hospital para pacientes com HIV? Como é bom saber que dentre tantas coisas que precisamos na vida, uma delas é saber que (sempre) existe e precisamos ver mais “Pose” para (continuar) a sonhar com um mundo onde existam mais Elektra & Blanca & Candy & Lulu & Angel & Pray Tell & Ricky & Damon. #PoseFX #LiteraturaClandestina

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