Lucy
“Lucy pode até ser uma ficção científica disfarçada de filme de ação, mas é muito melhor do que isso.”
Faz tempo que os filmes de Hollywood andam me cansando mais do que ouvir pagode num fim de semana na praia de Itapoan, mas ao optar em assistir um longa pelo seu desdobramento de questões acabo criando uma expectativa no panorama de temas transversais que, por ventura, poderiam ser abordados, coisa não muito comum nas atuais produções comerciais. E foi exatamente isso o que aconteceu ao assistir “Lucy”, do diretor francês Luc Besson, onde logo na primeira cena é mostrado uma simples célula se dividindo, o que me remeteu às minhas chatas aulas de Biologia no colégio e, num corte brusco, vemos a Lucy – o australopiteco mais antigo conhecido pelo homem e primeiro elo da cadeia evolutiva – aprendendo a beber água em um riacho. Acho que poucas pessoas fizeram essa ligação!
Então, o filme passa para os dias atuais, e vemos a história de outra Lucy (a estupenda Scarlett Johansson), uma jovem inocente que caiu em um esquema de tráfico de drogas, para ser usada com mula – o que acabou me lembrando de filmes como o longa mexicano não muito conhecido “Maria Cheia de Graça”; o excelente “A Mula”, com Sharon Stone; e até o brasileiro “Como Nascem os Anjos”. Nada mais razoável para um diretor que tem no seu currículo bons filmes de ação com protagonistas femininas fortíssimas. E logo no início do filme, o diretor utiliza letreiros enormes que ocupam toda a tela para informar o nome dos atores e após Lucy ingerir a droga CPH4 (em uma cena estranha demais), ela passa a usar mais do seu cérebro que os 15% usados por humanos normais, então os letreiros são usados para informar qual é a porcentagem do seu cérebro que a protagonista está controlando – e passamos a acompanhar a evolução de Lucy.
Besson é craque nessas artimanhas. Lá na década de 90, escreveu e dirigiu “La Femme Nikita”, “O Profissional” (*que revelou ninguém menos do que a Natalie Portman, então com 12 anos) e “O Quinto Elemento”, um clássico moderno da ficção científica. Mas, apesar de, em alguns momentos, esta abordagem parecer meio superficial e simplista, pois a extensão da obra de Besson não permitiria aqui um aprofundamento de todas as questões propostas), a opção nessa matéria é evitar a categorização e concentrar nas consequências pessoais e emocionais das personagens, e isso é o maior trunfo na abordagem desse diretor.
O diretor sempre foi um subestimado em comparação aos seus confrades norte-americanos, mas sempre soube fazer ótimos filmes com bons roteiros e boas doses de ação – e, em sua grande maioria, protagonizados por personagens fortes e, como já disse, bastante femininas. Basta lembrar da “Nikita” de Anne Parillaud, da infante Mathilda vivida por Natalie Portman no já citado “O Profissional” ou da esquisita Leelo da ficção científica “O Quinto Elemento”, interpretada por sua musa Milla Jovovich. Mas “Lucy” é tão bem roteirizado que nada passa despercebido. E vemos uma palestra do professor Morgan (interpretado pelo excelente Morgan Freeman, que aparece no filme como um narrador-onisciente) discorrendo sobre a utilização do cérebro. E enquanto o professor questiona e especula sobre o que aconteceria com o cérebro humano caso tivéssemos um controle maior sobre ele, uma ousada montagem no filme mostra imagens da natureza mescladas com a palestra de Freeman, que parecem contar a história da própria Lucy.
Mas se ainda considerarmos os roteiros das sagas “Busca Implacável” e “Carga Explosiva”, não é difícil notar que Besson é um dos caras mais importantes para o cinema de ação atual, justamente por ter a ousadia de pisar em uma área ainda fragmentada da ciência. Mas, mesmo em suas falhas, o filme prende a atenção. A emocionante cena onde a protagonista, com a mãe ao telefone, mostra acesso a todas as memórias de infância do cérebro; ou então as modificações que ela faz no corpo são muito bem feitas e fazem muito sentido para quem já leu os livros de Isaac Asimov.
“Lucy” pode até ser uma ficção científica disfarçada de filme de ação, mas é muito melhor do que isso. Ao ser colocada sozinha numa cela, Lucy se coloca à prova e abdica do drama clichê de suas mais recentes experiências e usa um fino humor sutil em determinados momentos. Então percebemos a capacidade do diretor para escrever cenas de ação e tensão: a fuga do cativeiro, as perseguições de carros em Paris, a invasão ao covil do malfeitor oriental, o corredor repleto de capangas armados que ela coloca pra dormir ou na ótima montagem da cena final com ângulos de câmera fechados no rosto de Scarlett Johansson.
O roteiro é um dos mais rápidos que já vi, mas não deixa que a história perca o ritmo. Talvez a falta de traquejo do público com esse tipo de abordagem de interpretação num filme, por vezes, transpareça no tom pouco à vontade que o diretor fez questão de mostrar em algumas cenas. Por outro lado, Scarlett Johansson está demasiadamente linda e se entrega à emoção em demasia, e nos leva a penetrar na história, principalmente na sequência em que viaja no tempo e chega de lugares remotos até Nova York – no mesmo lugar que anos antes o Tom Cruise filmou as cenas em que corre num pesadelo no filme “Vanilla Sky”. Mas “Lucy” é um daqueles filmes tipo “ame ou odeie” que, provavelmente, não ganhará uma legião de fãs no Facebook, mas é um ponto respeitável da carreira de Besson, mantendo a qualidade de seus filmes e mostrando que consegue se manter bem com ousadia e explorando temas mais complexo em épocas de grandes blockbusters e franquias.
“Lucy” é um desses filmes que merece uma discussão. Não é um filme comum, mesmo com alguns diálogos expositivos que auxiliam na interpretação, mas a sequência final de imagens sem falas e algumas brincadeiras visuais não é tão óbvia para o público médio de cinema, e chega até a lembrar “Árvore da Vida” de Terrence Malick (*mas com menos filosófica). A discussão que Besson introduz é muito interessante: ora, na questão da barbaridade, mas não acho que seja uma defesa da ideologia de partidos políticos, pois não faz sentido; ora, na questão de que a humanidade não está pronta para enfrentar a noção do todo que acontece ao seu redor, ao contrário do que o professor Morgan afirma. A Índia, por exemplo, acabou de eleger um governo liberal em economia e conservador em questões religiosas; o governo chinês é muito liberal em algumas questões econômicas, mas restringe gastos sociais; e em alguns outros lugares o sistema político é bem mais restrito que o da Rússia, para não falarmos em Índia, Brasil e África do Sul, três democracias imperfeitas e problemáticas, sem plena liberdade de expressão, mas muito mais livres nesse último quesito que a Rússia. O que o diretor parece enfatizar ainda é a mais pura e simples ignorância humana ao sugerir que os BRICS formam um bloco contra os “polos dominantes do sistema-mundo. Tudo bem, sabemos que existe uma corrente de neurocientistas que afirmam que este papo de que a gente só usa 10% do nosso cérebro é uma balela (*Raul Seixas também já disse isso!), um mito criado e fomentado pela indústria da autoajuda (“ah, você pode ser melhor, mais criativo, mais bem-sucedido”), devidamente desmentido pelos caras do Mythbusters, inclusive. Mas isso é um filme, vá e assista. E, dentro da ideia da película, a história toda funciona amarradinha e competente. Deixemos a discussão real de lado por um momento e vamos curtir a pseudo-ciência da cultura pop.
O final de “Lucy” é um caso à parte. Enquanto o pau está comendo ao seu redor, Lucy consegue alcançar 100% de sua capacidade cerebral (igual quando baixamos um arquivo no computador) e… muito crazy, eis que Besson pira até não poder mais. A garota entra em uma verdadeira viagem de espaço-tempo, absolutamente não-linear, um mergulho quase que lisérgico, uma loucura total, num estudo de imagens que, num primeiro momento, podem parecer aleatórias. Mas fazem total sentido. Quando o filme acaba, tudo que você consegue pensar é: “Puta que pariu, mas que final maluco da porra foi este?”. Confesso que passei horas, depois da exibição, afundado em meus pensamentos sobre como minhas preocupações diárias, minhas dores de cabeça sobre contas a pagar, podem ser pequenas em comparação ao todo. Me fez pensar. Refletir. “Lucy” não é o filme fácil que você queria comprar por 9,90 no próximo Black Friday. Não é o filme que você imaginava assistir num sábado à noite. Mas talvez seja o filme que você precisava conferir o mais rápido possível.