Cinema

O vento nos levará – A despedida do crítico José Carlos Avellar

Um dos mais importantes críticos cinematográficos do Brasil, o recém falecido José Carlos Avellar se despede com documentário sobre os 50 anos da Mapa Filmes que transcende o registro institucional para penetrar em alguma coisa próxima da ressurreição

Por Adolfo Gomes

A palavra. Não, não se trata de Carlos Nader e sua tentativa algo artificiosa de revisitar a obra do dinamarquês Carl Th. Dreyer em “Um Homem Comum” (BRA, 2014). O documentário que melhor resgata a força miraculosa do verbo é assinado por José Carlos Avellar.

Crítico de cinema, curador e cineasta bissexto, Avellar nos deixou um registro sobre os 50 anos da hoje lendária produtora carioca Mapa Filmes, que está muito próximo da ressurreição. Tal como no filme de Dreyer: uma palavra faz restituir a vida.

José Carlos Avellar: figura marcante também nas históricas Jornadas de Cinema da Bahia e co-diretor de “Manhã Cinzenta”, do cineasta baiano Olney São Paulo

O documentário de Avellar é, na aparência, uma conversa filmada. Ao longo de 50 minutos, temos um plano fechado em Zelito Viana, também cineasta e um dos criadores da empresa cinematográfica. Apenas isso. A despeito da farta iconografia que suscita  a trajetória da Mapa, responsável por levar às telas clássicos do cinema brasileiro, como “Terra em Transe”, de Glauber Rocha, entre outros trabalhos fundamentais  das últimas décadas; não há sequer uma única imagem de arquivo.

Sem trechos de filmes ou cenas de bastidores, somente modestas legendas informando o título, diretor e o ano das obras mencionadas, tudo se concentra, num primeiro momento, na verve envolvente de Viana. Ele a contar estórias, descrever cenas e lembrar a consciência criativa e afetiva, que durante, pelo menos, meio século de vida deu o tom e o sabor dessa aventura (que outrora fora) de fazer cinema no Brasil.

Um elogio à entonação humana, sua capacidade de restituir memórias, sentimentos e sensações, bem que poderíamos resumir assim o projeto do documentário. Mas há também a natureza, o vento, o sol, as contingências da vida a se fazerem ouvir, presentes, mesmo que fora do plano. E é aí que Avellar atinge o sublime por meio da subversão do espaço.

Zelito Viana: produtor e cineasta em trecho do documentário de José Carlos Avellar, “Mapa 50 anos: 50 minutos de conversa com Zelito Viana”

Ora, se estamos aqui diante de uma conversa, num único cenário, praticamente sem variação de planos, era lícito autorizar o amplo controle dos objetos, do enquadramento, do entrevistado, do pequeno e ordenado mundo diante da câmera. O gesto de Avellar, a mise-en-scène que ele constrói, opera em sentido contrário, para além do que pode ser captado, esquadrinhado pelo quadro cinematográfico.

Ele deixa o real se impor, na sua imperfeição, com seus ruídos, luzes e eventuais sombras. O seu documentário nos faz lembrar as origens, quando o movimento da vida, dos homens, das coisas nos bastava para evocar imagens e narrativas. Precisávamos nos lembrar uma vez mais desse nascimento, do começo do cinema. Se era um réquiem, não dava pistas. Afinal, parece que nunca estamos preparados para a morte. Resta o consolo, para nós e para os filmes, de que, ao fim de tudo, o vento nos levará. E tal sopro, bem o sentimos, está nessa obra admirável com a qual Avellar se despediu…Por agora.

Adolfo Gomes é cineclubista e crítico de cinema filiado à Abraccine. Curador de mostras e retrospectivas, entre as quais “Nicholas Philibert, a emoção do real”, “Bresson, olhos para o impossível” e “O Mito de Dom Sebastião no Cinema”. Coordenou as três edições do prêmio de estímulo a jovens críticos “Walter da Silveira”, promovido pela Diretoria de Audiovisual, da Fundação Cultural da Bahia.

Shares: