O Rebu
A telenovela O Rebu – e a partir daqui passo a me referir unicamente ao remake de 2014 – utiliza-se, basicamente, destas mesmas estratégias e elementos para tecer a sua trama de suspense, cujo roteiro trata, de forma muito bem conduzida, o famoso quem matou?
A primeira vez que ouvi (na verdade, li) o nome de Bráulio Pedroso foi na abertura de uma novela um tanto quanto diferente de todas as novelas que eu, nos meus sete anos (estamos falando de 1979), já havia assistido. Os créditos daquela novela eram escritos em placas de protesto. As pessoas, presentes na abertura, dançavam em torno de grandes panelas de feijão, enquanto levavam e levantavam placas de protesto. Nestas placas, o nome dos atores, autoria, direção, enfim… Uma abertura muito criativa e divertida! Tudo ao som da dançante música do grupo As Frenéticas – que tanto sucesso fez na década de 70 -, música esta composta por Gonzaguinha. Música e novela chamavam-se Feijão Maravilha.
Foi naquele momento, assistindo aquela trama que tinha, como cenário principal, um hotel cinco estrelas, da cidade do Rio de Janeiro, e as intrigas e crimes que aconteciam naquele local, que eu conheci o universo de Bráulio Pedroso, mesmo que só fosse entender, um pouco mais daquele universo – e o porquê daquele estilo de narrativa – anos depois, quando passei a me interessar ainda mais por telenovela, não só como um fã de novelas como também estudioso da teledramaturgia.
Soube da importância de Beto Rockfeller para a teledramaturgia nacional, o quanto Bráulio Pedroso inovou, ao escrever essa novela, e soube também da trama escrita por ele no ano de 1974, tempos depois do estrondoso sucesso de Beto Rockfeller. A trama chamava-se O Rebu e mais uma vez esse autor inovava, ao decidir escrever uma história que se passava em um único dia, numa festa dada por um milionário, e com três tempos diferentes: o tempo presente, momento em que um crime ocorre e passa a ser investigado; o tempo da festa (primeiro flashback) e o tempo que narrava a trajetória de alguns dos personagens (segundo flashback).
Evidentemente, assim como outras futuras tramas que tentaram inovar a arte de escrever novelas, a exemplo de O Casarão e Espelho Mágico (ambas de Lauro César Muniz), ainda nos anos 1970, e a mais recente Bang Bang (inicialmente escrita por Mário Prata), exibida entre 2005 e 2006, O Rebu não fez sucesso de público. A razão é simples: a grande maioria dos telespectadores não conseguia entender uma trama com tempos narrativos tão distintos, narrativa esta que se afastava quase que totalmente da tradicional forma de se contar uma história, já estabelecida pelos autores brasileiros e acostumada – e aceita – pelo telespectador.
O Rebu, evidentemente, não foi um sucesso de público. Porém, foi muito bem aceita pelos críticos de TV. Provavelmente por isso e pelo fato de já ter se passado exatos quarenta anos, a Rede Globo resolveu não só apostar no remake desta trama – mantendo os tempos narrativos exatamente iguais à narrativa do original de 1974 – como proporcionou ao O Rebu, de 2014, tratamento de super produção. Tem-se, na trama atual, uma fotografia esplendida, quase um preto e branco, assinada pelo sempre excelente Walter Carvalho, uma edição para lá de primorosa e eficaz, e um figurino e uma direção de arte raramente vistos nas telenovelas. Quase sempre em minisséries, mas em telenovelas, muito raro… Em O Rebu, temos tudo isso e algumas outras qualidades a mais, e estamos falando de uma novela. Sim, O Rebu, apesar de ser exibida às 23h, não é uma minissérie e, sim, uma telenovela com todas as mais básicas – e sempre bem vindas – características do gênero.
O Rebu – Divulgação
Como se não bastasse, temos um texto bastante cuidadoso, muito bem escrito por George Moura e Sérgio Goldenberg, ambos também autores da excelente minissérie Amores Roubados. O elenco é de peso, com óbvio destaque para a atuação de Patrícia Pillar, Tony Ramos, Cassia Kis Magro, Jesuíta Barbosa – do filme Praia do Futuro – e Vinícius de Oliveira – do filme Central do Brasil e Linha de Passe – além de Cyria Coentro, que, infelizmente, mesmo não tendo muitas cenas no roteiro, brilha, a cada participação ao lado de Jesuíta.
Após assistir o primeiro capítulo desta novela e, evidentemente, ter começado a desconfiar de que eu estava diante de um material muito bem produzido e escrito, percebi, com satisfação, o quanto O Rebu aproximava-se de um dos melhores trabalhos do cineasta americano Robert Altman, o ótimo filme Assassinato em Gosford Park, lançado em 2001.
Em Assassinato em Gosford Park, tem-se a história de um milionário britânico que, em 1932, chama para a sua imensa, magnífica e campestre propriedade – Gosford Park – um grupo de familiares e amigos mais próximos, com o intuito de passarem um final de semana bebendo, comendo, jogando, ouvindo música, fofocando e caçando. Cada um destes nobre chega à propriedade acompanhado do seu criado de confiança e, em muito pouco tempo, Gosford Park não só está cheia de nobres convidados como também, na parte de baixo da propriedade, de muitos serviçais, além dos que já moravam lá.
A partir de então, o que vai ser assistido é um dos melhores exemplos cinematográficos de como a relação nobreza/proletariado é retratada. E, o melhor de tudo, Altman mostra isso sem a necessidade dos chatíssimos discursos políticos.
Desde a maravilhosa primeira sequência – quando, debaixo de uma chuva torrencial, o motorista e a empregada da condessa de Trenthan se desdobram em cuidados para que uma única gota da chuva não molhe a patroa – percebemos como o filme será desenvolvido nos seus próximos 137 minutos: os ricos, em primeiríssimo lugar, e os pobres sendo, apenas, um espelho desses ricos, num patamar quase que infinitamente menor que o dos nobres. Aparentemente, os pobres não se incomodando nem um pouco com a posição que lhes fora reservada, servindo seus patrões com uma fidelidade canina. Inclusive, em Gosford Park, os criados não são chamados pelo nome e, sim, pelo nome de seu patrão, daí a razão da afirmação de eles serem meros espelhos, muitas vezes desprovidos – na visão dos seus patrões – de vontade própria.
Gosford Park
Só que todos – inclusive criados – têm vontade própria, tem desejos e sentimentos, mesmo que, no caso dos criados da mansão Gosford Park, os (verdadeiros) sentimentos tendem a correr bem mais para o lado da inveja e do ódio do que, propriamente, para o amor e devoção ao seu patrão. E essa imagem só vai se estabelecendo à proporção que a história avança.
Altman, mais uma vez, utiliza-se de estratégias narrativas já usadas em outros filmes, a exemplo da presença de múltiplos personagens (inclusive, muitas vezes, muitos personagens numa mesma cena), das tramas paralelas (e, no caso do filme questão, tramas importantíssimas para o desfecho da história), dos diálogos que se cruzam e dos cenários limitados.
A telenovela O Rebu – e a partir daqui passo a me referir unicamente ao remake de 2014 – utiliza-se, basicamente, destas mesmas estratégias e elementos para tecer a sua trama de suspense, cujo roteiro trata, de forma muito bem conduzida, o famoso “quem matou?”. O que pode ser dito, de diferente, entre o filme de Altman e a telenovela da Rede Globo, é o fato de que, no filme, o roteirista está bem mais interessado em retratar as pequenas intrigas e a forma como a alta sociedade vê e despreza aqueles que não fazem parte da sua classe social ou, até mesmo, do seu país (basta ver como os poucos convidados americanos são tratados: com imenso desdém), do que, propriamente, utilizar muito tempo na elucidação do crime. Tanto que, quando o crime acontece, tanto convidados quanto criados vêem, naquele episódio, algo enfadonho, até mesmo chato, uma vez que fora um acontecimento que mexera com a rotina da casa.
Não há lugar para sentimentos de tristeza, entre os personagens de Gosford Park, quando o milionário, dono da propriedade, é envenenado e morto. Sua viúva, por exemplo, horas depois do marido ter sido assassinado, recebe, em seu leito, o jovem ator Danton (que se disfarça de empregado, para compor um personagem) e, após rápidos segundos de hesitação, entrega-se ao rapaz, afirmando que “… a vida continua”. Já a polícia, presente na trama do filme, é quase que ridicularizada pelos outros personagens, tamanha a falta de atenção que lhe é dada, tanto pelos criados quanto – e, principalmente – pelos nobres.
Em O Rebu, no centro da narrativa, o mistério e as tentativas da polícia (cujo papel é de suma importância, na trama) em solucionar os crimes – sim… houve mais de um crime – e prender o culpado, ou culpados, pelas mortes.
Tanto o roteiro original do filme Gosford Park quanto o texto da telenovela O Rebu são, conforme já sinalizado por mim, obras impecáveis. Além da também já citada sequencia inicial, tem-se, no filme, outras sequencias dignas de nota, como o momento em que um artista americano toca o piano e começa a cantar uma música atrás da outra, enquanto os nobres, reunidos na sala, juntos ou bastante próximos do cantor, ora comentam ora expressam o seu desagrado e tédio em ouvir o artista, ao passo que, na ala da criadagem, todos, absolutamente todos, param o serviço e passam a ouvir, encantados, alguns, até, emocionados, aquela bela voz.
O Rebu – Divulgação
Entretanto, o que mais aproxima o filme de Altman do remake global, além dos pontos citados anteriormente, é o magnífico desenho dos empregados de ambas as mansões. São personagens muito bem construídos, pelos roteiristas, e desenvolvidos, de forma excelente, pelos seus interpretes. No caso de Gosford Park, um óbvio destaque para a sempre excelente Helen Mirren, como uma governanta, e para Emily Watson, como a empregada que tem um caso com o milionário dono da propriedade. Em O Rebu, o destaque fica para o chefe de cozinha, interpretado pelo argentino Jean Pierre Noher e, evidentemente, Cesar Ferrario, que já havia brilhado em Amores Roubados.
Contudo, enquanto em Assassinato em Gosford Park ponho, como uma das sequencias de destaque, as diferentes reações de patrões e empregados, diante da audição de belas músicas, em O Rebu tem-se, acertadamente, a sequencia em que a personagem Duda, interpretada por Sophie Charlotte, canta, de maneira devastadora, a arrasadora canção Sua Estupidez, de Roberto e Erasmo Carlos e, ao final, dedica a canção ao seu amor que, momentos depois, veremos que se trata de Bruno, o personagem que fora assassinado. E, logicamente, o já tão falado, e merecidamente bem comentado, plano sequencia do primeiro capítulo, quando a câmera apresenta os personagens, passeando por eles, pelos vários cômodos da mansão, enquanto eles bebem, fumam, dançam…
Assassinato em Gosford Park e O Rebu são, de fato, duas obras primorosas. A primeira, uma obra que fez sucesso de público e, principalmente, de crítica, concorrendo a vários prêmios no ano de 2002, ganhando, inclusive, o Oscar de Melhor Roteiro Original, um filme com um elenco imenso e, coisa rara, todo o elenco, inclusive o mediano Ryan Phillippe, muito bem em cena. A outra, uma obra da televisão brasileira – uma telenovela -, um gênero muitas vezes, injustamente, criticado, mas que, queiram os críticos ou não, se mantém na preferência do público há mais de quatro décadas, possuindo uma hegemonia não vista em nenhum outro gênero teledramatúrgico ou, até mesmo, dramatúrgico.
Duas obras audiovisuais, de linguagens diferentes, mas que possuem muitas semelhanças entre si, entre elas, o cuidado com que foram produzidas, proporcionado ao seu púbico, seja o da TV ou o do cinema, uma beleza visual, um cuidado técnico e um divertimento de primeira que, muitas vezes, ficamos no desejo de ver ou, pelo menos observar, um pouco que seja, em algumas outras produções dos gêneros aos quais Gosford Park e O Rebu pertencem.
Mauricio Amorim é Professor de Linguística e Produção Textual da Universidade do Estado da Bahia, Especialista em Linguagens e Mídias Audiovisuais, Cineasta e Colunista do Cabine Cultural.