Gabriele Rosa
Conversei com a dramaturga e contista Gabriele Rosa sobre o livro Fendas extraordinárias, de 2019, e sobre questões que a obra provoca. Seguem abaixo minhas perguntas, e as palavras da autora.
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Na seção biográfica de seu livro Fendas extraordinárias (Patuá, 2019) fala-se de uma resposta a um chamamento literário: “Numa manhã de Agosto de 2014 Gabriele acordou e decidiu ser ela mesma […] Parou de fugir de sua própria escrita e se refabulou.” Comente mais sobre esse abraçar súbito de um tempo literário – que você chama de “fenda” – em sua trajetória. Como foi esse processo?
De travessias complexas. Investiguei os meus desejos, resgatei sonhos, acolhi fragilidades e refabulei a vida. Processo fruto de um movimento imersivo, marcado por rupturas pessoais. Em 2014, fiz uma grande reflexão sobre a minha vida. Vivia uma estabilidade profissional, estudava uma área correlata ao meu trabalho, me sentia feliz. E ainda assim, me engasgava querer atuar em outros sonhos, nos desejos que me atravessavam desde muito cedo. A escrita como centralidade das minhas vivências virou pulso. Cresci entre o maravilhamento da leitura (iniciada na primeira infância, aos cinco anos) e o hábito da escrita diária (cartas, poemas, diários e ‘sonhários’). Um privilégio dentro das desigualdades cotidianas dos subúrbios carioca. Nunca deixei de escrever, mas desacreditei da minha escrita durante anos. Comecei o planejamento da minha mudança de trajetória em agosto do mesmo ano. Desloquei sonhos-planos. Troquei Automação Industrial por História, pedi demissão. Iniciei a graduação na UFRRJ em março de 2015. Mas só em 2017, aceitei a literatura como expressividade. Abracei a minha escrita.
Alexander Martins Vianna, no prefácio a Fendas extraordinárias, define a sua obra como um exercício de “contos regressivos”. Fale sobre essa possível classificação.
Os contos presentes no livro foram escritos como exercícios de marginação literária durante as disciplinas optativas sobre letramento histórico crítico-genético e escrita criativa, ministradas no curso de História da UFRRJ pelo docente Dr. Alexander Martins Vianna. Durante a criação dos contos percebi a necessidade de pensar uma classificação (possível) do experimento narrativo criado. Apenas necessitava nomear a narratividade tecida em camadas temporais múltiplas, que não se aproximavam dos artifícios do flashback e viagem no tempo. Desde então, passei a adotar a classificação de ‘contos regressivos’, a fim de mapear dentro do gênero como a construção de desentendimento do que se narra ocorre no tempo regressivo da consciência de quem conta, considerando um narrador em primeira pessoa que se desentende enquanto avança (regride) e o exercício constante de criar códigos de plausibilidade. A classificação não me incomoda, mas está aberta, assim como as fendas cavadas no livro.
Ao lado de diversas influências e referências que se revelam em sua obra (Kafka, Machado de Assis), destacam-se contos com subversões da e provocações à obra de Shakespeare. Pode-se dizer que o intertexto com este autor prepondera sobre os demais intertextos, na concepção de seu livro?
Sim. O intertexto com Shakespeare se deu a partir da investigação e estudo de dez peças do autor, ao longo de um ano e meio, durante as disciplinas optativas de letramento histórico crítico-genético e escrita criativa, sendo as marginações literárias presentes no livro (contos) um dos desdobramentos dessas investigações.
A imagem do rizoma atravessa o conto Orquídea, por exemplo. Fale um pouco sobre o processo de escrita dessa narrativa e sobre a simbologia do rizoma em sua obra.
Orquídea é a marginação sobre Jéssica, da peça O mercador de Veneza, de Shakespeare. O rizoma nesse conto aparece como imagem-ação nas figuras de condensação narrativa. Foi o sentido botânico que me mobilizou: pensar um caule que cresce quase sempre horizontalmente, de forma subterrânea (no todo ou em partes), mas no caso das orquídeas parcialmente aéreo. Metaforizar com os silêncios deixados por Shakespeare para a personagem foi quase instantâneo, no meu entendimento. Dar voz e um destino para Jéssica era expor as estruturas patriarcais de poder e seus femininos-sintoma em suas filigranas de horror. A simbologia do rizoma deslocado da botânica, proposta por Deleuze e Guattari, está muito presente na minha obra. Em alguma medida, é o fio condutor das minhas tecituras narrativas. A forma como penso imagens que mobilizam a escrita está diretamente relacionada à criação de linhas de intensidades poéticas. Os meus contos não se fecham sobre si, expandem outros silêncios, outras fendas. O que parece estrutura se rompe a cada regressão narrativa. Me interessa o diálogo com o leitor, proponho pactos de cumplicidade e empatia, abertos às refabulações.
A narrativa Maria Sem-Peçonha diz “São os filhos de preta…, para que reservas? Me sinto decompor em cicatrizes profundas. Não tenho raízes. Tenho fissuras”. Comente a respeito da elaboração desse conto e a respeito da carga simbólica de fissuras, nele.
Maria-sem-peçonha é a marginação do poema Pedro-Espelho de Otton Bellucco. Foi o primeiro poema em que cavei fendas de sentido, ao trabalhar as zonas de silêncio, que virou conto. Para essa narrativa criei um código temporal fluido, algo entre as temporalidades expressas nos contos Esboço e A inumana e o sádico, e pensei numa voz feminina inexistente no poema. Um dos contos que mais me exigiu enquanto estrutura narrativa e poética. O desafio foi inserir dentro do poema uma mulher negra, mãe de um filho socialmente lido como bastardo, que experimenta a velhice, cativa do patrão-provedor, Pedro, normatizada dentro das violências de gênero e de raça cotidianas, para depois retirá-la e expandi-la no conto a partir de uma plausibilidade possível com o poema de Belluco. As fissuras que Maria narra a partir de seu corpo envelhecido transbordam nas suas palavras de reflexo opaco, já que Pedro é pedra, mas também espelho. Funções que lhe foram atribuídas a contrapelo jorram pela narrativa. Deslocada de sua juventude, desenraizada, com os seus ancestros negados, subjugada por um masculino provedor, suas fissuras carregam todas as mulheres que vieram antes dela e que, assim como Maria, precisaram negociar formas de sobrevivência com a estrutura patriarcal branca heteronormativa, que se impõe via violências cotidianas de raça, gênero e classe.
De que maneira suas pesquisas como historiadora atravessam seu processo de criação? Por exemplo, de forma distanciada ou excessivamente próxima?
De forma muito próxima. Não considero excessiva. Entendo os ofícios como distintos, nos quais trabalho dissociadamente, mas que transpassam de forma muito orgânica meus processos de criação. A minha escrita, seja a literária ou a dramatúrgica, é atravessada pela pesquisa. O tempo da pesquisa é maior que o da escrita, na maioria das vezes nos meus processos criativos. Criar estofo, embasamento teórico, investigar códigos de plausibilidade (para deslocá-los) e pensar nos vínculos implicativos entre passado e presente, são frutos de pesquisa e formam as teias nas quais construo histórias. A pesquisa historiográfica me possibilita ampliar narrativas. E uma lição muito preciosa que aprendi com o Professor Alexander Vianna, pesquisador que admiro, e um querido amigo, é que o historiador deve se autorizar a propor e perspectivar linguagens.
A mulher assassina é um dos pontos de força, uma evocação recorrente, em suas redes narrativas. Você concorda com essa afirmação?
Não concordo. Percebo o feminino como motor da minha narrativa, dar voz e visibilidade aos femininos, expandindo o entendimento de gênero ao entendê-lo como um campo de força, move as minhas criações. Mas especificamente os contos presentes no Fendas estão num lugar de expor a estrutura patriarcal, falocêntrica e heteronormativa e seus masculinos viciosos. Penso que o recorte de mulher assassina estigmatiza dentro das narrativas propostas no livro o que entendo como mulheres-sintoma de uma estrutura violenta. Considerando os períodos históricos diversos retratados e os seus códigos de plausibilidade (e verossimilhança, nos casos das personagens Shakespearianas) o recurso que cada feminino desloca está relacionado ao seu próprio tempo, a morte como mecanismo de libertação é desmontada ao longo de cada narrativa em que ela é tida como “solução”. Os femininos que matam nos contos já estão mortos enquanto femininos. Há contos em que homens operam o feminino e são violentados igualmente pela estrutura patriarcal. O que proponho são jogos de espelhos, quais reflexos mobilizam, atravessam e afetam dependem da empatia e do pacto de cumplicidade aceito (ou não) pelo leitor.
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Gabriele Rosa é carioca, atua como dramaturga e dramaturgista na Bonecas Quebradas Teatro (RJ). Autora do livro de contos Fendas extraordinárias (editora Patuá, 2019). Graduada em História pela UFRRJ.
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Link para o livro
Capa Fendas