Música

Alugo Minha Língua

Alugo Minha Língua

Será que o incontrolável desejo de possuir e ser possuído se alimenta de um arraigado pudor existente em nossos princípios morais? Ou ainda: qual a relação fincada entre os termos perversão e religião? E mais: pensamentos libidinosos são de alguma forma antagônicos a preconceitos enraizados, ou se complementam como tais? Essas e outras várias questões servem de alicerce para a interessante construção narrativa do espetáculo Alugo Minha Língua, em cartaz já há algumas semanas no Teatro Vila Velha e que chega ao fim de sua temporada neste domingo, dia 16 de outubro, mas que antes apresentará sessões na sexta-feira, com convidados, e no sábado.

Encenado pelos atores (do Núcleo Supernova Teatro) Ciro Sales, Luisa Proserpio, Marinho Gonçalves, Vanessa Melo e Will Brandão, Alugo Minha Língua é uma ode à sexualidade humana, na sua acepção mais primata, diria assim, já que tal termo nos é preenchido aqui por elementos de devassidão, carnalidade, pornografia, erotismo, dentre outros. O ser humano pensa e sente-se desta forma. Entretanto assim não o age, pois nossa conservadora sociedade construiu (de modo bastante eficaz) ao longo dos séculos diversos mecanismos que censuram e controlam incansavelmente estes desejos. A religião talvez seja o mais representativo destes mecanismos de controle e Alugo Minha Língua é bastante competente na abordagem feita desta perspectiva.

O espetáculo, um musical propriamente dito, já se inicia de forma pungente, com uma canção que diz, lá pela sua metade: Se o sexo é puro, e a mente é suja, misture e não fuja. Se esconda no escuro. E mais pro fim, indica: Nosso Cabaré, que mais que erótico, que mais que irônico, é erotragicômico. Pois bem, é exatamente desta forma que a peça deve ser vista e sentida pelo público: como uma interessante comédia, com elementos de poder reflexivo, dramático, mas que certamente alguns diriam possuir partes repulsivas. Uma das sequências que finalizam o espetáculo ilustra muito bem esta ambiguidade de pensamentos sobre: quando vimos esses personagens em nossa frente, nos encarando com suas sexualidades integralmente expostas, não sabemos de exato como reagir, se com natural repulsão ou automática identificação; ambas as possibilidades são passíveis de veracidade pessoal, pois nós, homens (e mulheres) fomos criados com essa dicotomia construída entre a vocação à libertinagem e o pudorismo comportamental.

O espetáculo, ao longo de pouco mais de uma hora, constrói e apresenta situações bem corriqueiras do cotidiano, pelo menos em nosso imaginário: vemos uma reprodução muito bem elaborada das páginas adultas dos classificados de jornais e também observamos os personagens em pleno processo de sedução, muito próximo do que presenciamos nas mais diversas baladas em cidades grandes.

Para não me acometer do erro de contar mais do que realmente devia, interrompo por aqui esta pequena divagação, mas antes não posso deixar de registrar algumas observações mais pessoais sobre o espetáculo:

Para começar, é digno de elogios o trabalho realizado por Gil Vicente Tavares, que construiu um texto que alia, de forma bastante perspicaz, poder cômico com capacidade reflexiva, elementos bem incomuns na cena teatral mais comercial da Bahia. Já a direção de Fernando Guerreiro se mostra competente, tornando-se visível que a escolha dele para dirigir este espetáculo foi bem sucedida em todos os aspectos. Fernando agrega qualidades, primeiro por ser talentoso, mas também por já possuir um nome respeitado na cena cultural local. E para terminar, deve-se destacar o papel que Jarbas Bittencourt exerce como diretor musical e criador da trilha sonora original. A trilha é crua, insana, se é que podemos definir uma música com esse termo. Ela interage de modo bastante orgânico com o que os nossos olhos vêem, com o que nossos ouvidos ouvem, e, sobretudo, com o que é sentido no decorrer do espetáculo.

Como ponto negativo, menciono a estrutura do Teatro Vila Velha. Por mais que seja prazeroso visitar tal espaço, tão simbólico para nós, soteropolitanos, é inegável que o lugar carece de uma reforma interna, que vise principalmente proporcionar um pouco mais de conforto ao público, além de oferecer uma estrutura mais adequada para os artistas desta arte tão nobre, que é o teatro. Tornou-se percebível na encenação de Alugo Minha Língua que, caso o espetáculo tivesse sido produzido em um teatro maior e com mais adequação técnica, ele teria agregado ainda mais qualidades no seu resultado final. Sua acústica, neste caso específico, acabou por abafar as músicas, dificultando para o público o entendimento delas, o que acabou prejudicando a fruição da peça, já que as músicas são elementos de fundamental importância em um espetáculo que se denomina… Musical.

De resto, fica a sugestão de que caso desejem assistir um espetáculo que una risos e reflexões, escolham Alugo Minha Língua. Mas adentrem no teatro de mente aberta, pois esse pequeno detalhe fará uma diferença brutal na experiência vivida.

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