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As Coisas e os Museus III: a imaterialidade do material

Patrimônio e Sociedade; memória social, identidade cultural, patrimônios, coleções e muito mais

As Coisas e os Museus III: a imaterialidade do material

Já, tomemos como exemplo um museu de História numa cidade imaginária. Este museu tem, então, a responsabilidade, por meio da missão de sua fundação, preservar a cultura daquela cidade. Parte da cultura da população de nossa imaginada região é material, como as porcelanas do Barão do Café e as canecas de esmalte do Miro Lavrador, por exemplo, ou ainda como o Quarto em Arles, de Van Gogh, ou Super Mario / The LegendofZelda / Metroid, de Carlos Lerma, ou seja, este museu tem, como meio de cumprir seu papel, a função de guardar a materialidade da cultura regional.

Primeiro, por que a materialidade? Porque oferece um espaço físico onde serão guardadas, seguindo as regras técnicas apresentadas no texto anterior, para se guardar coisas físicas. As coisas não-físicas, ou o patrimônio imaterial como chamamos hoje, são atividades não palpáveis e simbólicas. Por exemplo: ao considerar o Ofício das Baianas de Acarajé um patrimônio imaterial, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) não está catalogando “A” mulher baiana, “O” acarajé ou “A” roupa típica como um patrimônio, mas sim todo o conjunto simbólico da tradição das mulheres baianas, que usam a típica roupa branca e vendem acarajés em tabuleiros nas ruas. Portanto, temos aqui uma questão de saberes e fazeres que em algum momento materializam-se na vida cotidiana, mas são eles o patrimônio e não seus produtos. Sendo assim, o museu enquanto seletor de cultura material não se ocupa destes eventos quando se fala em formação de acervos, pois trata da coisa materialmente física, salvo algumas exceções.

Todavia, a cultura material presente nos museus e por eles preservados e expostos também tem uma íntima relação com a imaterialidade. Complexo, não? Mas vamos analisar!

Um aparelho para café em porcelana do século XIX pode ser “coisa de museu” apenas por ele mesmo? Pode, claro! Se estamos falando em questões estéticas das peças, com certeza sim! E mesmo neste momento temos uma imaterialidade, que é a participação destas porcelanas num desenvolvimento, ou numa trajetória, da produção de aparelhos de café. Se temos um conjunto branco com flores azuis, nem sempre e nem todos os conjuntos foram assim, então, ele faz parte uma história da produção destes artefatos.

Todavia, nosso “museu-escola-imaginário” trata da história de uma região, não sendo sua função se ocupar da estética como nos museus de arte. Deste modo, voltamos para uma questão do primeiro texto da série: por que o jogo de louça austríaca do Barão está no museu e a caneca “da vovó” do Miro não?

O ocidente traz consigo, já há muitos séculos, talvez desde tempos imemoriais, uma tara pela originalidade. Esta é uma teoria do patrimônio típica do ocidente conservador, a manutenção de uma preocupação com a originalidade, coisa que não acontece em outros contextos como no Japão, onde se desmontar uma casa e montar em outro local não tira dela a importância sociocultural agregada. No ocidente temos pouquíssimos casos assim.

Dentro disso, a louça do Barão, para além da estética floreada e chamativa, pertenceu ao Barão. Óbvio, claro, mas aí está o intangível. Os líderes são, em muitas sociedades e reforçadamente no ocidente, ícones dentro das sociedades, tão logo, pessoas com a projeção social de um Barão cafeicultor oitocentista costumam atrair atenções até depois de sua morte. Um exemplo disso somos nós brasileiros estudarmos o ciclo da economia cafeeira e, vez por outra, nos atentarmos ao charme ou a politicagem do título glamoroso ou fútil destas pessoas, e deixarmos num segundo plano todos os Miros que trabalharam nestas fazendas. Assim, pertencer ao Barão deu ao aparelho de porcelana uma importância única, como se fosse um bônus em sua função. Não que uma caneca esmaltada do Miro não tenha essa importância de participar do ciclo do café, mas houve muito mais Miros que Barões, e a representatividade material dos primeiros é maior que os segundos, mesmo que os museus oficializem mais, tradicionalmente, os segundos que os primeiros.

Mona Lisa

Isso pode estar atrelado a outra tara, ou costume, ocidental: o de voltar atenções a esses bens histórico-culturais apenas quando eles saíram de moda, foram trocados por mais modernos e estão “sumindo” da vida costumeira. Por outro lado, este é um dos trabalhos dos museus, lembrar, trazer à tona, o que já foi e não é mais, logo, dar atenção a coisas que fazem parte do dia-a-dia não é importante para o nosso museu de história, porque estas coisas ainda são do hoje e não do ontem.

Com este pano de fundo, temos que, por ideal, as coisas dos museus não são oficializadas como cultura por elas mesmas, muitas vezes, e sim porque carregam um “sabor simbólico” de passado, uma memória intangível, uma importância imaterial, mesmo sendo matéria física. É comum, como trazido no texto O Contato com o Patrimônio: o paradoxo da relação desprezo-encantamento, ouvirmos idosos que apreciam uma reconstituição de uma cozinha de época, por exemplo, dizerem “eu tinha um desses em casa”, ou ouvir de pessoas mais jovens um “minha mãe/avó tinha um desses”. O material traz imaterialidade a quem aprecia. Ele é um exemplo de algo que foi, uma testemunha sobrevivente, que não necessariamente é importante por si, mas pelo enredo no qual se encaixa, pelo todo no qual viveu.

Noutro exemplo, podemos ter a Monalisa. A obra de Da Vinci construída de 1503 a 1506 provém de um homem italiano pertencente ao Renascimento italiano. Nesta visão simplória, ela e seu autor deveriam ter sentido para a história italiana e não para o mundo, mas fuçando no plano de fundo simbólico encontramos coisas não tão simplórias. O Renascimento italiano, e as obras de arte produzidas nele, têm uma importância para toda a História da Arte Mundial, em sentidos estéticos, e também para a História Humana Geral em sentidos sociais, científicos e outros. Leonardo Da Vinci não foi só mais um pintor que viveu nos séculos XV e XVI, foi também inventor, estudioso da anatomia, arquiteto, botânico, geógrafo e tantas outras coisas, contribuindo para o desenvolvimento de muitos setores da vida contemporânea, ou dos meios usados para chegarmos até aqui. Não bastasse isso, a Monalisa participou de eventos mundiais importantíssimos, como nos “sequestros” nos quais foi roubada, por Vincenzo Peruggia e Hitler, à exemplo, além de sobreviver a momentos de movimentos anarquistas que de alguma forma ameaçavam as obras do Museu do Louvre, onde está até hoje. Um de seus companheiros no ofício de ser contemplada, um quadro do pintor Jean-Auguste Dominique Ingres, sofreu um ataque de uma mulher anarquista em 1907 sendo cortado com um estilete. Isso poderia ter acontecido com qualquer outra obra, inclusive a famosa Monalisa. Toda essa trajetória, por vezes materiais por outras não, agrega valores intácteis a ela e a tantas outras coisas dentro de museus, e com isso dá sentido à permanência, à preservação e à função deles.

A coisa material dentro dos museus tem sempre um pano de fundo inesgotável e extremamente complexo de subjetividade.

Titulado em nível de graduação em Conservação e Restauro de Bens Culturais, graduado em História, especialista em Gestão, Preservação e Valorização de Patrimônios e Acervos e em Estudos em Memória, e mestre em Patrimônios, Acervos e Memória. Atualmente é Historiador e Conservador-Restaurador do Círculo de Estudos Bandeirantes, em Curitiba, entidade cultural agregada à PUCPR onde também ministra aulas e oficinas periódicas para graduandos em História

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