Eramos Seis
“E o título do livro vem da situação de Lola ao fim da vida, sozinha num asilo: eram seis, agora só restava ela, sempre sozinha, tomando chá verde na falta de uma amiga para tomar chá do Santo Daime”
Por Elenilson Nascimento e Anna Carvalho
A vida é uma sucessão de esquecimentos. É feliz quem esquece mais. E se não tivéssemos eles a gente sucumbia, por certo. O ônus é que também esquecemos coisas boas, o bônus, o esquecimento das ruins. As vinganças premeditadas como as vilãs gilbertobraguianas: eu, uma escada e alguma criatura, vítima da vingança, deram lugar a uma mulher de meia idade que traz como mantra a frase simples: “Não vou dar conta” e/ou “Não é meu”, ouvindo ao som cânoro de temas de meditação, as benditas programações de PNL ou boleros chorosos dos anos 20. Se houvesse uma escola deveria ter matéria obrigatória de esquecimento dividido em três níveis: imediato, mais ou menos e o compulsório que vinha com um combo de uma amnésia enlatada para pequenos acidentes de percurso, tipo: foda-se, seguido de pqp. Uma pílula super pequena que daria conta das benditas sinapses. A pílula com sabores: hortelã, morango, tutti-fruti. Ou, no mais remoto pensamento, um cigarrinho proibido para fumar no casarão para relaxar!
A NOVELA – E a estreia da novela “Éramos Seis”, no último dia 30/09, tem deixado muita gente nostálgica. O remake assinado por Angela Chaves e com direção artística de Carlos Araújo tem recebido muitos elogios, tanto por parte da abertura, passando pela trilha sonora e até o show de atuação dos atores Gloria Pires e Antonio Calloni – que interpretam o casal protagonista, Lola e Júlio. Esta produção da Globo é uma livre adaptação inspirada em “Éramos Seis”, livro de Maria José Dupré, que também teve outras versões em novelas, feitas em 1958, na Record, e 1967 e 1977, na Tupi, além da versão de 1994, exibida no SBT. No livro, em uma São Paulo da década de 1920, a matriarca Lola só quer o bem de sua família. Mãe arquetípica, esposa submissa, para ela ser feliz é ver a família toda muito feliz e unida. A obra narra a história dessa família desde a infância dos filhos até a fase adulta.
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A maneira como a narrativa é contada faz com que possamos sentir como se estivéssemos realmente vivendo naquela época, em uma São Paulo que não existe mais, ao lado dos pais e dos seus quatro filhos: o estudioso Carlos, o baderneiro Alfredo, o ambicioso Julinho e a vaidosa Isabel; e até mesmo viver as dores, angústias e o sofrimento da própria Lola perante aos acontecimentos de sua vida – pois a pobrezinha tem o sofrimento no sobrenome. “Parecia que o relógio fazia de proposito, todas as vezes que eu estava lembrando ele começava a bater: dom-dom! Devagar e tristemente como se dissesse lembra-lembra-lembra! Esse mesmo som eu ouvi a minha vida inteira, nos dias alegres e nos dias de sofrimento, em todas as ocasiões principais da minha vida, esse badalar tocou meu coração”.
Júlio (Antonio Calloni) e Lola (Gloria Pires) com a família na primeira fase de Éramos Seis, de 2019 – Globo)
Mas, com o passar do tempo, as lembranças de Lola vêm cobrar a sua perseverança – como o diabo cobrando uma divida. Lágrimas, saudades, perdas, desencontros e, depois da morte do marido, a pobreza absoluta. E a tristeza com as escolhas de Alfredo, seu filho mais rebelde. E nas noites, como num trailer fúnebre, aquela modesta dona de casa lembra de coisas já esquecidas, adormecidas, desde quando seus filhos eram crianças dependentes de abraços. As dores daquelas vidas, desde sempre, haviam se enraizado naquela família, e não poupou ninguém. Por isso, Lola não tolerava brigas entre seus filhos. Sonha para eles a mesma harmonia que tinha com suas irmãs, Olga e Clotilde. E é esta humanidade de Lola, um tanto idealizada, muito romantizada, mas muito palatável, que imprime o estilo de “Éramos Seis”. “Sempre pensei que a gente já nascesse honesto e isso não se ensinasse”.
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O LIVRO – O livro “Éramos Seis” foi publicado em 1943, escrito pela autora Maria José Dupré, e desde então ganhou o prêmio Raul Pompeia da ABL (Academia Brasileira de Letras) e também já foi adaptado para o cinema. Mas o grande motivo do sucesso da obra é a simplicidade com que foi escrita, sobre uma família de classe média com seis integrantes, sendo que cada um com uma personalidade bem diferente e também fins diferentes, exeto pelo fato que todos se afastaram da mãe, a protagonista Lola, que narra toda a história. Dividido em três fases, o livro começa em 1920 e vai até 1940 para contar a luta de Lola para manter os integrantes do clã Lemos unidos frente às dificuldades econômicas que atravessa.
(Tarcísio Filho, Luciana Braga, Jandir Ferrari, Othon Bastos, Irene Ravache e Leonardo Brício – Éramos Seis, de 1994 – SBT)
A história, ambientada nos anos 20, fala sobre o afeto que se constrói entre familiares e amigos, os laços que estabelecemos com as pessoas ao longo da vida, e a força e o propósito de manter unidas as pessoas que amamos diante das diferenças e obstáculos da vida. Acompanhar aquelas vidas de gente tão pobre, cabendo num vão de caçamba, aquela mãe sempre austera, uma mulher forte, mas sempre com a imaginação sendo como o vento nas velas de uma vida muito sofriada.
Logo no primeiro capítulo da novela da Globo, a diretora Ângela Chaves conseguiu manter intacto o espírito original do livro. Frases intactas, argumentos, enredo e até os personagens foram apresentados de maneira harmônica, e vivendo situações bem simples. Enquanto o drama de Lola é unir a família e ajudar o machista marido Júlio, suas irmãs do interior vivem a expectativa de passarem férias na capital paulista. Paralelamente, as diferentes personalidades dos filhos são mostradas em picardias infantis. Lola também mostrada como uma mulher cheia de cicatrizes que sempre deu valor as moscas, sem riscos, as marcas e, além de tudo, nada de pintar com verniz os seus bordados. E digo mais, a gente aprende com Lola que não temos que esquecer absolutamente nada, não temos que levar por menos, não temos que concordar com nada, e não adianta esquecer e soltar lágrimas.
Para muita gente, não só os noveleiros de plantão, “Éramos Seis” é uma novela que deixou boas lembranças, assim como a primeira versão de “Escrava Isaura”, “Velho Mundo” e a excelente “Órfãos da Terra”. Contudo, a versão de “Éramos Seis” exibida no SBT é considerada, com todos os méritos, a melhor novela já exibida pelo canal de Silvio Santos. Na época, o canal tinha um plano de dramaturgia ambicioso. E o público respondeu bem e a trama foi um sucesso. Sendo assim, para quem viu a versão do SBT, a comparação é inevitável.
(Carlos Strazzer, Carlos Riccelli, Maria Lizandra, Ewerton de Castro, Nicette Bruno e Gianfrancesco Guarnieri – Éramos Seis, de 1977 – TV Tupi)
Obviamente, trata-se de uma nova montagem, com atualizações necessárias. Porém, aqui, a comparação não chega a prejudicar. Afinal, que atriz é mais indicada e competente do que Gloria Pires, com sua espantosa naturalidade, para fazer uma mulher tão simples e reconhecível? Assim como Irene Ravache brilhou no SBT, Gloria vem repetindo o sucesso na Globo. Aliás, poderia propor um decreto: pais como o Júlio que deixam a família na miséria, deveriam deixar de existir. Todos para a sala de castigo, viveriam de frente para uma parede branca passando as merdas que fizeram em slowmotion, todos se encontrando, fazendo sessões para verem o quanto foram sacanas. E todos mediados pela freira cadáver de um filme de terror.
Uma das principais diferenças entre a versão de 1994 do SBT e a de 2019 da Globo está na família formada por Afonso, Shirlei e Inês. Na versão original, até os nomes eram diferentes: Alonso, Pepa e Carmencita. Enquanto na versão do SBT tratava-se de uma família de origem espanhola, o remake aborda a questão racial, uma vez que Shirlei foi abandonada grávida por seu ex-namorado, João Aranha por conta do preconceito vindo de sua família. Contudo, no livro nada disso é citado. Essa nova versão de “Éramos Seis” chega numa hora mais do que oportuna. 25 anos separam a última versão da mais recente, dando a chance de uma nova geração conhecer este texto tão terno e delicado. Hoje, com a tecnologia, sabemos que tudo é melhor, e essas compensações que os artistas criam servem para nos levar para refletir sobre a vida, pra não pararmos num setor zero lá em cima diante de um ser de crachá, pistola rápida nas mãos, túnica indiana e caneta Bic, perguntando: Posso ajudar? Além disso, o know-how da Globo na produção de novelas de época deve dar à “Éramos Seis” uma embalagem ainda mais vistosa que a anterior. Isso sem falar na nova abertura, de um bom gosto que salta aos olhos. A novela promete.
Eramos Seis capa do livro
Uma curiosidade: no ano de 1977, autora do livro Maria José Dupré – que morreu no ano de 1984 – se irritou com traição sofrida por Lola: “É demais. Sempre me culpei por ter criado a dona Lola tão sofrida, agora o marido a desrespeita”, disse, desaprovando o fato inserido na trama por Silvio de Abreu e Rubens Ewald Filho. O caso foi relatado pelo pesquisador Ismael Fernandes (1945-1997) no livro “Memória da Telenovela Brasileira”, publicado em 1982. Mas, lembrar faz parte, ver quanta água rolou. E hoje podemos dar silêncio a quem não merece. E ponto sem terapia, divã, nada. “O fim da história é que todos somos diferentes. No físico, no moral, no gosto, no caráter, nas particularidades, nas tendências, na essência enfim”. E chega um dia que essa pequena frase redentora de dona Lola te liberta feito um polaramine, dorme, dorme e descongestiona, aquele muco sai e ponto final. A vida, aos 69, 59, 49, 39 não é igual aos 29. E óbvio que com as dores nosso levantar parece um ritual dos treze passos: eu levanto feito as senhorinhas, sento, sinto as dores todas, vejo que há partes do meu corpo que eu nem sequer sabia que existiam, doendo. Mas, continuamos piadistas e indo sem pressa dando todas as respostas que queríamos, estão vindo numa manhã sem anjos trompetes ou trilha sonora de Donna Sumner com o Fábio Jr. (ex da dona Lola) gritando “Brigadu”. “Grossas gotas de chuvas caem do céu sobre a terra, sobre as folhas das árvores e sobre os telhados. Cor de cinza. Solidão”.
Simples e cativante, essa nova versão de “Éramos Seis” mostra que a trama ainda é atemporal. A história de Lola e sua família, passando pela chegada dos filhos à fase adulta e de Lola à velhice é bem detalhista. E triste. Conforme os anos passam, vão se modificando as coisas na vida de Lola: a morte do marido; o sumiço de Alfredo pelo mundo; a união de Isabel com Felício, um homem casado; a ascensão de Julinho, que se casa com uma moça de família rica. E o título do livro vem da situação de Lola ao fim da vida, sozinha num asilo: eram seis, agora só restava ela, sempre sozinha, tomando chá verde na falta de uma amiga para tomar chá do Santo Daime ou uma bebida que tire os sentidos, desmaie, vomite com o saco plástico na cabeça, saltos e juras para ficarmos firmes. Ou, no mais remoto delírio, fumando um cachimbo da paz com uma erva proibida. Em suma, a novela tem sido apresentada de forma graciosa de novela das seis que tem na aparente despretensão um charme especial.