Música

Há três anos, “Despacito” tornava-se o vídeo mais reproduzido da história

Despacito

I

Em agosto de 2017, num passado já remoto, ‘Despacito’ tornava-se o vídeo mais visto do Youtube.

Durante a quarentena de 2020, o clipe segue inabalável na primeira colocação, ribombando seu imperativo categórico: ‘tengo que bailar contigo hoy’.

Se aproxima de sete bilhões de visualizações.

A minha revisualização, para escrever este texto, é a de número 6.861.892.543.

‘Despacito’ segue.

Segue proclamando suas ironias mais politizáveis: ‘déjame sobrepasar tus zonas de peligro’.

E afirmando seu ato pedagógico, talvez sem violência simbólica: ‘que le enseñes a mi boca, tus lugares favoritos’.

E segue pregando sua teleologia, seu fim-em-si-mesmo: ‘hasta provocar tus gritos’.

Esse fenômeno cultural, espécie de negativo da tragédia latino-americana, espécie de anti-‘2666’ em quatro minutos e quarenta segundos, merece uma revisitação.

Com malícia e delicadeza, à sua maneira. Vamos a ela.

Mas antes, um preâmbulo, devagarzinho.

II

Quando ‘Gangnam Style’ foi analisada por Slavoj Zizek (em ‘Problemas no paraíso’, 2015) a atenção se deteve principalmente nos seguintes pontos, para a sondagem da indústria cultural:

1-a música obteve sucesso por propor uma espécie de ritual de transe coletivo (como a Black Friday o propõe);

2-Psy captou o espírito do tempo ao operar sempre e sobretudo na autoironia: a todo momento, o clipe zomba de si mesmo, através da retórica do escracho, e por isso se torna mais sério e mais convincente (como o paradoxo Trump, guardadas todas as proporções);

3-os ambientes que surgiam no clipe eram artificiais e homogêneos não-lugares (shoppings, vagões de metrô hi-tech, estacionamentos elevados, mundos envidraçados, tubos de plástico, filtros de imagem entre o efeito-vinheta clareada e o metálico, parques de concreto limpo, campos de golfe etc); as expressões dos dançarinos eram, igualmente, padronizadas e pausteurizadas;

tudo, logo, seria o reflexo de uma espécie de Coreia do Sul pós-histórica, varrida de toda tradição, de toda a ligação com o passado, de toda alteridade e dialética. Nos âmbitos e nos sujeitos.

Por esses fatores a canção era ideológica.

Oito anos depois do apocalipse maia (12/12/12, quando ‘Gangnam Style’ se tornou o conteúdo audiovisual mais visto da história, com 1 bilhão de visualizações, conforme lembra o filósofo) estamos num ponto diferente.

É engraçado que ‘Despacito’ parece propor justamente os discursos contrários a ‘Gangnam Style’; busca o choque do público através de opostas opções de consumo musical.

1-Embora também pasteurizado e fantasmagórico, o sonho coletivo de ‘Despacito’ é um mundo histórico, tradicional: anciões de boina jogando dominó, danças típicas, crianças tendo o cabelinho cortado por vizinhos atenciosos, labirintos de casinhas solares e coloridas, às quebradas das ondas, à beira-mar.

2-O clipe não opera no frenesi; antes, opera na cadência, conforme anunciada pela letra (‘lento, después salvaje’, por exemplo);

3-O clipe não é a todo momento auto-irônico. Do contrário, simula o denotativo: a alegria sincera, a simplicidade sincera, o sorrisão sincero e gostoso da musona com suas sandálias de gladiadora, a confraternização sincera e expansiva entre idosos, crianças e jovens dançantes do bairro, a amizade telúrica entre os machos-alfas Fonsi e Daddy Yankee.

A Virgem Maria num nicho da escadaria da comunidade. A aura poética. Até ela!

Talvez a conclusão seja: o mundo de 2017 (quando ‘Despacito’ desbancou seus competidores), cinco anos mais próximo do apocalipse, preferia opções de consumo musicais nostálgicas e que resgatassem um clima família, um clima de comunidade e simplicidade.

Um clima das coisas ‘autênticas’. Já ouviste essa promessa, em teus sonhos?

O mundo está mais cansado do que há cinco anos. Já dizia Nietzsche: por falta de descanso, a barbárie se aproxima.

‘Despacito’, entre outras leituras possíveis, é também o espectro negativo de ‘Gangnam Style’, ou vice-versa.

É revelador que continue forte na época pandêmica, entre desesperos, lives e trabalhos remotos, quando existem trabalhos.

Se o clipe coreano era o paraíso do consumidor ultra-excitado que se ritualiza durante a Black Friday, ‘Despacito’ é o sonho idílico de um gringo ou de um não-gringo, por exemplo, que busquem raízes ao invés de nutellas.

Os clipes se irmanam em sua fantasmagoria.

E apesar de tudo, ‘Despacito’ não insiste em projetar-se, ao fim e ao cabo, como uma utopia do pós-quarentena?

Alguém está vendo em julho de 2020?

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