Ciladas do Amor – Mora Alves
“A autora questiona até que ponto o amor pode superar qualquer crise…”
Por Elenilson Nascimento
Muitos escritores já trabalharam com esta ideia de amor e ódio levados ao extremo. E também muitos deles fracassaram no devaneio exagerado de colocar suas personas que “amam demais” como vítimas e não como algozes. Fernanda Young, em “Aritmética”, escreveu que a geometria dos triângulos amorosos, o frio calculismo das traições, a matemática do sexo com seus problemas sem solução seriam as somas de desejos frustrados, a multiplicação das culpas. A escritora mexicana Laura Esquivel, no seu excelente “A Lei do Amor”, escreveu que a paixão é uma força arrebatadora que, superando todos os obstáculos, acabará se impondo, se formos capazes de aceitar sua lei. José Lins do Rego publicou o romance “Fogo Morto”, lá no ano de 1943, um romance em que todos os personagens estão em movimento, buscando veementemente alguma coisa que já passou ou que ainda não existe mais, exatamente como a escritora paulista Mora Alves no seu recém lançado “Ciladas do Amor”.
Mora é uma escritora bem interessante, apesar de se manter firme na sua obsessão de matar personagens que amam demais ou classificá-los como psicopatas confusos e doentes, assim como o maravilhoso Nelson Rodrigues já o fizera centenas de vezes. Em “Ciladas do Amor”, por exemplo, encontramos relações amorosas repletas de ciúmes, medos, tristezas, traições, solidões e até, pasmem, incesto – tema muito pouco abordado por nós escritores. Mas não desprezem o fato de que tal trânsito de desilusões se passe quase sempre diante de personagens aparentemente normais.
O livro começa com o envolvimento de Gabriel com Letícia, um casal bem jovem que tem na sua primeira transa o motivo da revolta do pai da garota. Depois de muitas tristezas, brigas, o casal enfim acabam driblando o rancor, conquista o velho cabriolé do coronel Geraldo, pai de Letícia, tilintando; e passam os tangerinos com seus bichos; os cegos dos castelos, os mensageiros secreto dos cangaceiros de pendengas familiares, e o que era para ser o começo de uma vida feliz de propaganda de margarina acaba virando um redemoinho de trocas de ofensas e falta de cuidado com o outro.
Mora Alves é uma autora que bebe da fonte dos romances de cavalaria, dos filmes de Almodóvar e dos livros beliscosos de Clarice Lispector, em especial “O Lustre”, contudo, talvez por querer descrever a problemática das relações, a autora ignorou o fato que o leitor sente falta de descrições mais detalhadas das personagens. O efeito desse processo – talvez proposital da autora – é o descentramento de nossa percepção cotidiana na vida dos variados personagens sobrepostos em toda a trama. Parece que a cada respiração ou piscada de olho aparecia um personagem novo na história, efeito da saga Game Of Thrones, gerando uma contaminação dos sentidos, na captação do real, borrando o enredo do quadro descritivo do qual nos restaria a “impressão das coisas”.
Mora Alves
Josefa, mãe de Gabriel, por exemplo, é descrita como a vigilante e acalentadora na vida do filho, mas não foi capaz de reverter todas as amarguras que viriam depois do casamento do jovem e consequentemente após o nascimento da querida neta Rosie, que gostava de ouvir músicas do Cartola, Paulinho da Viola e Silvio Caldas. Mas como amor familiar também é feito de mágoas profundas, ressentimentos e inveja, o seleiro desta família responde bem ao intensificado, perceptivo e incômoda lentidão da narrativa. Descobrimos que homem algum é escravo de homem nenhum, mesmo quando ama demais.
E Gabriel acaba se envolvendo com jogos de baralho, levando a própria família ao caos. E a amargura de Letícia tem razão de ser. O lembrete viria pela boca da morte, uma afilhada constante daquele família, ainda que pobre e moralmente rebelada… Mas a força do romance de Mora Alves ganha sua densidade maior, mesmo em tom inconstante, quando a falta de minúncia narrativa cria uma atmosfera sufocante para o mal-estar e a inadaptação das personagens no “teatro social”, nesses instantes em que os opostos se tocam, o amor e o ódio comungam e as diferenças se confundem, promovendo curiosamente o esclarecimento das relações (ou falta delas) em questão.
Letícia esbraveja contra o marido e é, ele próprio, catálogo do politicamente incorreto, sempre lembrando aos demais da sua condição de homem com problemas sérios, munido de sobrenome e de um peso de provedor do lar, mas que a morte solta no ar foi a solução para os problemas. Daí em diante, a narrativa se prende um pouco com o desafio da autora de criar tantos personagens quanto as páginas cabessem. Argumentos contemporâneos interessantes como violência contra a mulher, incesto de um pai contra a própria filha, ódio e inveja dentro do seio familiar, mentiras, desamor e muito rancor se sobrepõem ao amor idealizado do casalzinho lá no início da história. Aliás, num romance em que “tudo se fora na enchente do tempo”, o recurso à fragilidade esplêndida dos “aluados” e desprovidos de ternura, Osvaldo morto e Erick preso, restaura o nexo oracular que, em geral, atribuímos à sabedoria dos inocentes.
A traição do inocente marca a divisão entre vivos e mortos; entre o antes e o depois, entre os que amam demais e os que mendigam atenção. Tal transigência, tão onipresente neste romance, é motor do estilo de Mora Alves. A personagem Rosie, sozinha, torna-se a consciência-limite, enxerga a dependência entre opostos; torna visíveis os laços entre o bem e o mal mais afluente de todos; entre o seleiro e o seu espoliador moral, onde o morto Osvaldo torna-se o mais pobre de todos.
Sendo um romance inquietante, e sobre “tapas na cara”, “Ciladas do Amor” é, também, denúncia de uma situação muito comum dentro dos lares. Não o velho voto de cabresto no altar, em frente a um estranho travestido de padre, onde todos fazem votos de viverem felizes para sempre, nem o coronelismo clássico das novelas da Globo, mas a intransigência para com o companheiro, com o amor para toda a vida, bem como a corrupção instituída, de cátedra, altissonante, politicamente correta das famílias domesticadas. Ora, Mora Alves escreve sobre o bojo desses mundos misturados, em que, por exemplo, o amor modernizador das propagandas felizes para vendas de margarinas enfrenta o problema da centralização do afeto, da falta de dinheiro nestes tempos de desemprego. Este livro de Mora Alves me lembrou muito uma outra autora e cronista que tenho muito afeto, Carmen da Silva, que durante 22 anos foi colunista da Claudia, revista feminina que outrora ensinava mulheres a fazer bolos para segurar maridos, mas que hoje, na modernidade, ensina a arte de trepar para segurar seus machos.
Ciladas do Amor – Mora Alves
Talvez tenha faltado nesta obra do Mora Alves um pouco mais de picardia, ao invés de derramar sangue e frustrações, cujo principal alvo era a família domesticada. Com a leitura de “Ciladas do Amor”, passamos a fazer parte também da sociedade das sombras que agora nos abre suas portas e nos convoca ao silêncio e à verdade da leitura. O livro não dar respostas prontas para isso, mas colocar essas enigmáticas perguntas que incitarão a busca de cada um, o respeito mútuo, parece ser a finalidade da literatura. A imaginação da autora ainda nos serve de antídoto contra a perversa ingenuidade do falso quixotismo, presente nas bocas de escritores de lugar algum, de críticos de revistas semanais e de gestores da política dos editais das panelinhas; gente que alardeia o coro da certeza e a regra de mão única. Ao menos em literatura, nem sempre as opiniões mais corretas engendram os melhores frutos, ou os frutos mais críticos.
Alguém já disse: um bom romance é bem mais inteligente que seu próprio autor. E se há uma grandeza em Mora Alves, ela reside precisamente na imensa teia de relações e infidelidades que vão da incorporação do dado histórico às torções míticas do mesmo dado. “Ciladas do Amor” é painel de interesses vivos, mesmos incompletos, tornado atual e radicalmente político pela irônica denúncia que os “aluados” fazem de uma ruína doméstica compartilhada entre um seleiro e o seu senhor. P.S. E enquanto muitos perdem tempo lendo notícia que mudam as nossas existências (*celebridade instantânea e descartável queima a boca ao comer pastel), fico aqui pensando quando os mais cultos das celebridades vão instalar sensores térmicos para detectarem o momento exato que os famosos soltarem flatulências. Prefiro continuar lendo livros! (“CILADAS DO AMOR”, de Mora Alves, romance, 190 págs, Editora Polobooks – 2015)
Elenilson Nascimento – dentre outras coisas – é escritor, colaborador do Cabine Cultural e possui o excelente blog Literatura Clandestina