Será mesmo que plataformas como a Netflix são uma ameaça à indústria do cinema?
Ao contrário do que alguns esperavam, o aclamado Roma, do diretor mexicano Alfonso Cuarón, não levou o Oscar de melhor filme; no entanto, o longa sai mais do que vitorioso. Pela primeira vez, um filme de uma plataforma de streaming não só concorreu às principais categorias do cinema mundial, como também conquistou os prêmios de Direção, Fotografia e Filme Estrangeiro.
Conhecido pela transmissão de conteúdo pela internet – como filmes, séries e músicas – sem a necessidade de download, o serviço de streaming popularizou-se com a plataforma Netflix. Diante desse boom, houve até brincadeiras na internet que mostravam o famoso letreiro de Hollywood sendo substituído pelo da empresa de streaming.
Mas, será mesmo que a indústria do cinema está com os dias contados? Para o pesquisador e especialista em imagens, Prof. Dr. Jack Brandão, todas as transformações levam a duas reações: para os mais velhos causam “inquietação e desconfiança”; para os mais novos, “deslumbramento”. Assim, temos serviços diferentes; mas que, dificilmente, um substituirá o outro, mesmo com todo o sucesso dessas plataformas.
Roma
Vivemos naquilo que o pesquisador chama de arrogância do tempo presente, ou seja, “não enxergamos com clareza que tais mudanças são naturais. Quando a TV surgiu, dizia-se que seria o fim do cinema; anos mais tarde trouxemos o cinema para nossas casas com os reprodutores de VHS, de DVD e de Blu-ray, mas mesmo assim o cinema ainda continua firme e forte!” Brandão ainda afirma que “por estarmos inseridos no presente, muitas vezes não enxergamos, de forma clara, o que se passa a nosso redor. Pena daqueles que não puderam perceber isso, quando do fechamento de famosas salas de exibição no centro de nossas capitais: verdadeiros tesouros foram abandonados, à espera do cataclismo… que, no final das contas, não veio, conforme demonstram as diversas salas abertas nos shoppings, nos últimos anos.”
Um dos fatores que também podem explicar o sucesso vertiginoso da Netflix é, ainda segundo o Prof. Jack Brandão, “nossa iconotropia, ou seja, nosso anseio por consumir sempre mais e mais imagens, na hora que quisermos e no lugar que desejarmos, seja pela TV, pelo notebook ou pelo celular. Aliado a isso, tais plataformas nos dão a falsa sensação de que estamos no controle, que podemos selecionar o programa que desejarmos, algo impossível de fazer com os programas televisivos, por exemplo”.
Mas eis a grande questão: será mesmo que temos todo esse poder, ou nos deixamos enganar por essa falsa sensação? “Acabamos escolhendo filmes ou séries a partir de uma seleção já pré-definida pela plataforma; logo, nunca somos nós os verdadeiros detentores da escolha.” Para Brandão, isso fica claro quando da exibição, pela Netflix, de seu primeiro filme interativo, Bandersnatch. Caberia ao telespectador, assim como a um deus, guiar a tomada de decisões da personagem principal, no entanto havia momentos, a partir dessas escolhas, que a plataforma não dava outra opção: ou se escolhia o que eles queriam ou se encerrava o filme.
Quanto a Roma, alguns críticos consideraram um absurdo o fato de essa obra de arte não ter sido produzida para os cinemas. Para o Prof. Dr. Jack Brandão, porém, trata-se de um pensamento equivocado; afinal, acabam-se subestimando tais plataformas. “O fato de Roma estar na Netflix é, a meu ver, extremamente positivo, pois seu alcance é bem maior, além disso foi uma escolha do diretor. Outro ponto que merece atenção é o fato de a obra ter levado o Oscar de melhor fotografia, reforçando tal competência. Tal prêmio, por exemplo, é dado pela capacidade de a película contar uma história por meio das imagens. Nem sempre, aquilo que se consideram belas tomadas fotográficas são aquelas produzidas pelos melhores recursos cinematográficos.”
Há, em Roma, imagens da dura realidade mexicana da década de 70 e de sua desigualdade social, produzidas com esmero e que remetem às próprias memórias de infância do diretor. “Sem contar que o filme foi produzido em preto e branco, o que também exige um cuidado todo especial, para nossa época repleta de cor.”
Para concluir, Dr. Jack Brandão ressalta que, seja por meio do cinema ou pelas plataformas de streaming, aquilo que as pessoas realmente desejam é consumir imagens. “Os usuários da Netflix não se tornarão ‘inimigos’ do cinema. Muitos continuarão vendo filmes nos telões, mas como toda inovação, é preciso aprender a conviver com elas”.
Sobre o Prof. Dr. Jack Brandão
Doutor pela Universidade de São Paulo (USP), pesquisador sobre a questão imagética em diversos níveis, como nas artes pictográficas, escultóricas e fotográficas. Autor de diversos artigos e livros sobre o tema no Brasil e no exterior. Coordenador do Centro de Estudos Imagéticos CONDES-FOTÓS Imago Lab e editor da Lumen et Virtus, Revista interdisciplinar de Cultura e Imagem.
Mais informações: condesfotosimagolab.com.br