No curta-metragem “Dançando mas tô andando” (BRA, 2012), o que importa é o gesto estético, a poesia da contrafação do real. De outra forma não poderia ser verdadeiro, não poderia ser um documentário
Por Adolfo Gomes
Não é ilusão de ótica. Gilberto andava para trás. Como se estivesse preso a uma fabulação slapstick, como se fosse um Buster Keaton no sertão baiano, sem o menor controle sobre a sua própria mise-en-scène. Era preciso que alguém ajustasse o mundo a esse movimento tão particular. Coube ao videoartista Marcondes Dourado operar esse pequeno milagre.
No curta-metragem “Dançando mas tô andando” (BRA, 2012), o que importa é o gesto estético, a poesia da contrafação do real. De outra forma não poderia ser verdadeiro, não poderia ser um documentário sobre tal personagem, inventado por algum distúrbio neurológico que impôs ao seu corpo a recusa a seguir o mesmo caminho que os demais da sua natureza.
Dançando mas tô andando
Esse cavaleiro solitário, o Gilberto, precisava de uma épica à altura de sua transgressão. Encontrou no registro de Marcondes Dourado. Há quem possa acreditar que, diante da realidade, só nos resta captá-la com maior ou menor grau de fidelidade, respeito ou reverência à vida, às coisas e pessoas que nos cercam. Mas isso não se consegue. Pelo menos, não conscientemente.
O nosso olhar pode ser isento? Talvez o dispositivo sim. A câmera, dizia Bresson, imprime imagens com a objetividade inescrupulosa de uma máquina. Mas pressupõe-se que não se faça um filme como se guia um drone. Aí é guerra, não é arte. É morte. E a morte ainda é um mistério insondável, não demanda psicografia audiovisual.
É do mundo dos vivos que estamos falando aqui. Gilberto, por exemplo, vivia por aí na contramão da luz. Quando para nós havia sol, ele tinha sombra. No longo travelling que emerge do filme, Marcondes Dourado encontra o lugar de Gilberto no mundo, e ele não está mais sozinho – estamos em sua companhia no percurso.
Então, o milagre está feito. Participamos dele por alguns minutos. E como que caídos do paraíso, nos rendemos ao eixo da terra, à força da gravidade e todas as outras exigências da matéria. Gilberto volta a andar para frente, como todos nós.
No seu corpo e caminhar, no entanto, repousam os vestígios daquela ascensão na forma de um gingado que evoca uma dança. É que, em Gilberto, a despeito da rendição terrena, resiste a poética. E não sejamos demasiados nostálgicos. Keats tinha razão: “As coisas são belas porque morrem”.
Adolfo Gomes é cineclubista e crítico de cinema filiado à Abraccine. Curador de mostras e retrospectivas, entre as quais “Nicholas Philibert, a emoção do real”, “Bresson, olhos para o impossível” e “O Mito de Dom Sebastião no Cinema”. Coordenou as três edições do prêmio de estímulo a jovens críticos “Walter da Silveira”, promovido pela Diretoria de Audiovisual, da Fundação Cultural da Bahia.