Dia do escritor
“Poder escrever e publicar um livro hoje é uma atividade inglória, afinal, é atestar sobre a podridão do mundo literário espetacularizado, que Chico Buarque deve ter experimentado quando procurou migrar da poesia cantada para a escrita romanceada.”
Por Elenilson Nascimento
Título bem inapropriado, alguns devem dizer, para um dia em que celebramos(?) o trabalho herculano de nós escritores. Trabalho árduo, solitário e, muitas, vezes, infrutífero. Mas o confronto é óbvio: enquanto um se constrói, outro se desfaz, pois escritores não são plenos, nem em suas formações, aliás, não existe nem formação de escritores. O universo de todo escritor é íntimo e também identicamente mofino, por isso, talvez, a carreira literária seja tão frágil e errática.
Contudo, por mais que as grandes editoras digam que não, que tudo é lindo e maravilhoso, que as bienais e feira literárias são como a Alice rodando a bolsinha e mostrando os peitinhos ainda durinhos na Avenida Paulista, nada está mais longe da realidade, pois a crise da leitura é mundial. Mesmo assim, penso que isso não deveria ser uma desculpa, como muitos adoram alardear. Crise, palavrinha medonha, escancarada no nosso país pela incompetência gritante da presidente “anta” e seus comparsas, mas deixemos este assunto com o Sérgio Moro. Cadeia em todos eles, painho!
A nossa crise bate todas as outras, a repelência à leitura vem de longe, da escola básica. Como esperar que alguém se disponha a ler, se não lhe ensinaram desde pequeno? Se, em geral, a criança cresce num lar sem livros e até sem jornais, onde o aparelho de televisão de 3000 polegadas como os seus programas medonhos é o centro da casa, de que maneira adquirir o hábito da leitura? A crise da leitura é tão funda que sequer os escritores lêem. E não lêem mesmo! Nem os livros dos amiguinhos das panelinhas vergonhosas dos editais de cultura.
Temos no Brasil cerca de 400 mil escritores na ativa, quase todos aprendizes de feiticeiro, a repetir fórmulas com aquele antigo artifício do papel-carbono e propagandas desesperadas em redes sociais. E só para pirraçar: escritores não leem o próprio companheiro de geração, de grupo, de patota literária porque não convém desviar as atenções de si mesmo, do próprio umbigo. E a necessidade de propaganda pessoal, na vã tentativa de imitar os ídolos de pés-de-barro fabricados em série pela mídia eletrônica, afasta o escritor das leituras.
E sem ler, escrevem muito mal, não têm argumentos e criam estórias dignas de todas as vergonhas do mundo. Ou melhor, não absorvem os princípios do bom gosto, que é o da escrita fina e contestadora. E quase todos se exprimem do mesmo jeito, com os mesmos vícios e com as mesmas bobagens para aqueles adolescentes bobocas desprovidos de opinião. E a literatura brasileira chegou a este nível de baixa qualidade, onde todos que se exprimem deste mesmo jeito raso de latidos de cachorros, buscando desesperadamente um reconhecimento estrodoso, e imediato.
E mais do que querer ser escritores reconhecidos até na plataforma de Marte, eles dizem ser leitores obsessivos, pelo menos vendem esta ideia nas redes sociais, mas o imenso repertório não se traduz em uma obra consistente. Autores de verdade deveriam escrever sem pensar em quantas curtidas vão receber nas redes sociais do Inferno do Mark Zuckerberg, na glória efêmera, exceto na glória de se conhecerem, de amadurecerem – e de passarem esta experiência transcendental (*com exagero e tudo) aos seus possíveis leitores. Poder escrever e publicar um livro hoje é uma atividade inglória, afinal, é atestar sobre a podridão do mundo literário espetacularizado, que Chico Buarque, por exemplo, sendo ídolo nacional e mito vivo, deve ter experimentado na pele quando procurou migrar da poesia cantada para a escrita romanceada. Poder escrever e publicar um livro é descrever os arrebatados ímpetos de ciúme e vanglória muito mau-canalizados, e que muitos escritores só não transformam em tragédias shakespearianas dignas de figurarem em Otelo pois têm muitas paixões pelo deboche e pelo hilário para que recaiam no melodramático de novelas da Globo. Mas poder escrever e publicar um livro é também, sobretudo, falar sobre amores trôpegos que tentam, muitas vezes em vão, vencer o abismo de desconhecimento causado pela solidão e por tudo que se perde nas traduções, nas leituras nos ônibus, curtindo fotos no Instagram.
Poder ser escritor é maravilhoso… é uma coisa única. Mesmo que os abutres e hienas de plantão cobrem que você tenha que vender a sua cueca e/ou a sua calcinha para poder publicar. Mas a vaidade e o ego radioativo de muitos escritores nos faz imaginar se realmente eles escrevem bem, se eles falam bem, se beijam bem, se iluminam bem os cabelos, se defloram, se deflagram, se cagam, se fodem. Acho que esse povo não fode nem com manteiga.. nem com quiabo! Mas uma coisa eu sempre tenho certeza… de alguma forma, um livro é sempre inteligível para quem só compra livros cifrados pela pessoa a quem o endereçamos. E qualquer tentativa de reformar o ensino, por exemplo, teria de incluir como prioridade a leitura desde o ensino básico até as nossas fracas universidades que cospem doutores de xérox e seminários. As escolas deveriam se transformar em frenéticos e ruidosos laboratórios de leitura, de debates, de exercícios de escrita. Não para formar escritores para tomar chá das cinco na ABL, mas para serem demônios de inquietação e do dom perverso de cultivar palavras. Palavras clandestinas…
Outro dia, uma dessas muitas “antas-literárias-baianas” chamou o espaço de umas das poucas livrarias em Salvador de “túmulo do livro”. Talvez a anta-escritora não esteja tão errada assim pois ali podem ser encontradas flores murchas, encomendação de almas, saudades eternas – menos o livro que se quer, o livro de fato bom. Tem livro de auto-ajuda, de putarias, para adolescentes sem cérebro, para pintar, para enfeitar estantes. Aliás, é o que se compra, é o que se lê nestes dias de altas curtições existenciais: auto-ajuda, best-seller enlatado e mais as panelas com tempero do mago imortal Paulo Coelho.
Penso assim e não vou pedir desculpas se as pessoas se contentam com pouca coisa. Sou de uma época (*me sentindo velho agora!) em que ser escritor e admirar escritores significava ser uma pessoa especial – alguém sentado à mão direita do supremo deus do Olímpo. Se um escritor consegue soprar no barro frio e criar gente viva de papel, mais viva do que muita gente de carne e osso, então merece subir ao Olímpo e beber chá – porra de chá! – chocolate quente com Tolstoi, Nelson Rodrigues, Kafka e todos os bacanões. E neste Dia dos Escritores, que possamos adestrar os nossos instáveis autores-narradores; e, do outro lado do espelho, libertar os personagens — que ultrapassem as metáforas deste título neste texto um pouco incomodo que os simplificam e o transformam caricaturas inconvenientes. Narradores, hoje em dia, quase inexistem como tal: eles buscam ser escritores e só, mas só o são de forma bissexta. Os vampiros já foram grandes escritores. Deus, apesar de ausente, é um grande escritor. Mas se continuarmos deixando os nossos egos maiores do que as nossas letras, aos poucos, tudo vai se diluir nas mimetizações que outros e nós mesmos fazemos de nossos textos.
Elenilson Nascimento – dentre outras coisas – é escritor, colaborador do Cabine Cultural e possui o excelente blog Literatura Clandestina