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O colecionismo patrimonial e as faltas na relação intenção-realização

Patrimônio e Sociedade; memória social, identidade cultural, patrimônios, coleções e muito mais

“O colecionismo patrimonial e as faltas na relação intenção-realização”

 No Brasil, em nível federal, temos atualmente, segundo o Arquivo Noronha Santos que é a base de dados do IPHAN que registra e preserva as informações sobre os bens patrimonializados no país, 1362 bens com o status sócio-burocrático de patrimônio. Os bens estão divididos nos livros Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, Histórico, Belas Artes e Artes Aplicadas, que remetem à historicidade do tombamento que tem sua etimologia no termo “tombo” forjado ainda em Portugal, país que elencava documentos importantes que seriam de interesse público, os davam caráter de patrimônio e os conservavam na Torre do Tombo, atual Arquivo Nacional da Torre do Tombo que foi nomeado também Arquivo Geral do Reino ainda na Idade Média, no ano de 1387. O nome da Torre do Tombo é hoje simbólico: no início das atividades de seleção e guarda de documentos que teriam interesse sobretudo histórico, com fins de justificativa do poder dos governantes, os itens eram guardados numa torre chamada “do Tombo” no Castelo São Jorge, mas após o terremoto de 1755, por ameaça de desabamento, o material foi transferido para o Mosteiro de São Bento (atual Palácio São Bento) aonde ficaram até a finalização das obras da atual sede no ano de 1990.

Já o termo “tombo”, usado para designar o registro e a organização sistemática das informações sobre esse registro seletivo, tem origem no grego tomo que desde a Idade Clássica denominava partes, porções, pedaços de papiro que continham informações como as posteriores legislações romanas, vindo destas derivações a ideia de tomo tomada como sentido de volume, conjunto de páginas ou de registros. Neste desenvolvimento linguístico “tombar” adquiriu o sentido de inventariar, catalogar, organizar sistematicamente uma espécie de informação em comum. Todas as derivações romanas foram trazidas à língua oficial dos portugueses com algumas intervenções de outros povos menos numerosos, mas que conseguiram inserir suas marcas culturais de comunicação. Com a colonização o Brasil também adquiriu de forma impositiva o uso da língua e dos termos, recebendo aqui também algumas intervenções de outros povos como os nativos, os africanos escravizados e os imigrantes de diversos momentos.

Desde a criação da ideia de registro, proteção e uso de informações de caráter público podemos observar o trabalho seletivo de colecionismo: desde a Idade Média os documentos eram selecionados pelos conteúdos que, pelo olhar do governante, pudessem ter envergadura pública, mas que intrinsecamente traziam, como é comum em momentos de modos de governos transmitidos indiretamente (por sucessão familiar, no caso das monarquias, ou por indicações, no caso das repúblicas que foram em algum momento administradas em suspensão dos valores democráticos como a eleição direta) uma construção narrativa que ajudassem a justificar que aquela pessoa ou aquele grupo ocupem na prática o espaço de poder, decisão e administração do mundo público. Os reis, por exemplo, podiam se valer das crônicas escritas nos tempos já quase imemoriais a um povo que remetessem aos nomes de seus pais, avós, bisavós, tataravós e também gerações muito antes dessas criando uma genealogia da sua família aliada a ocupação do trono na tentativa de convencimento do povo sobre o estabelecimento do determinado status quo sem contestações. A explicação histórica, que na realidade sempre fora uma arbitração de um convencimento sobre uma narrativa, sendo esta, por sua vez, sobre a história da ocupação do trono aliada ao metafísico poder de Deus e as funções dos reis na terra com a vontade Divina no caso eurocêntrico, poderia se dar como uma ferramenta por meio dos documentos eleitos como potenciais suportes de partes de uma grande prosa.

A administração de modos culturais também pode ser vista como um colecionismo bastante seletivo para auxiliar a criação e na persuasão sobre uma narrativa. No Brasil houve diferentes cenários históricos que tentaram de diferentes maneiras a administração cultural com a tentativa de dirigir a formação subjetiva dos indivíduos visando uma unidade. A criação da Biblioteca, do Museu e do Arquivo Nacionais, respectivamente nos anos de 1810, 1818 e 1838, tem a possibilidade de ser entendida dessa forma: com a eleição de itens que pudessem representar uma imaginada nação brasileira. O ocupante do poder, nestes casos oficialmente D. Maria I (governo realizado em grande medida por D. João VI graças aos atribuídos problemas sobre o governo de si), D. João VI e D. Pedro II (neste período ainda sob a menoridade tendo a regência una se estabelecido no Brasil sob o nome, à época, de Pedro de Araújo Lima, o Marquês de Olinda), no exercício do próprio poder, por meio da estrutura burocrática e seus agentes, podia eleger quais itens seriam salvaguardados “para sempre” dentro das entidades que mostrariam publicamente a história, a memória e os espólios históricos daquele povo que se tentava criar. Lembremos aqui da neutralidade do caráter da existência do documento ou de qualquer outro bem, cabendo a eles a possibilidade de administração de seu uso, uma vez que os bens existem e são os valores simbólicos e os préstimos atribuídos e extraídos deles que são dirigidos partindo de predisposições e intenções de quem se serve deles.

Outro momento no qual podemos entender o funcionamento da coleção seletiva de modos é a proibição ou permissão das expressões populares oriundas dos escravizados durante o século XIX. Nas posturas municipais da cidade do Rio de Janeiro, mais particularmente na década de 1820, constam debates e decisões sobre a proibição dos batuques, encontros realizados pelos cativos em becos ou largos da cidade carioca nos quais eram tocados diferentes tambores, cantadas músicas e praticadas danças, que por conta da reclamação dos moradores livres dos entornos foi proibido porque incomodava portugueses e outros não-cativos. Na mesma década há especulações sobre a proibição da capoeira, que foi federalmente proibida em 1890 com duração até 1937, por conta da chance de que esta fosse usada contra as forças do Império. Não aprovada a proibição, foram sugeridas ações de refreamento como a vigilância constante e até mesmo a dissolução dos grupos praticantes quando a reunião tomasse proporções exageradas. Com tantas proibições imputadas às manifestações dos cativos, e também por outras relações de dominação, o ensejo para revoltas conseguiria se consolidar. Para tentar evitar a organização de insurreições algumas manifestações proibidas foram novamente assentidas para que os cativos não se sentissem tão tolhidos quanto de fato eram. Os batuques, novamente, foram permitidos desde que seguissem as diretrizes impostas de horários, dias e locais.

Dentro destes parâmetros podemos dar uma outra luz ao patrimonialismo aplicado na cultura há tantos séculos e que poderia, esta nova luz, tentar explicar alguns impasses atuais da estrutura do patrimônio. E qual é este impasse em voga? A percepção cada vez mais latente de que o caráter representativo dos patrimônios não funciona como se designou por muitos anos. A mentalidade incutida nas teorias mais genéricas do patrimônio, principalmente as mais distantes da atualidade temporalmente que estavam em contextos de poucas vozes tendo espaço e ressonância do todo público, demonstravam o patrimônio como a própria justificativa de si porque um prédio, um documento ou um objeto eleito patrimônio trazia em si a essência dessa potencialidade, como se a existência de um bem, tido como cultural após as agregações de valores simbólicos também eleitos, e a necessidade de preservação dele se justificasse pela própria existência. Um exemplar d’O Processo do Capitão Dreyfus de Ruy Barbosa, hipoteticamente, justificaria sua necessidade de preservação por si: por ter sido escrito por Ruy Barbosa, por ter disso escrito durante o período em que Barbosa esteve exilado na Inglaterra, ou ainda por ter pertencido a algum jurista notável do Brasil como Clóvis Bevilaqua.

A ideia que podemos articular sobre o patrimônio neste momento é a de acusar e sublinhar que a existência dos bens é neutra, portanto, não se justifica por si em nada acerca do descarte ou da preservação deles, ficando aos usos e valores atribuídos a eles como as ferramentas que baseiam o descarte ou a preservação. Quando instituições como o Museu Nacional são criadas, quando as expressões de um grupo são inibidas ou liberadas, quando Getúlio Vargas proíbe o ensino e a fala de outras línguas que não sejam o português no Brasil durante a Campanha de Nacionalização em 1930 – fechando escolas de imigrantes e obrigando o estudo da língua português, por exemplo – a efetivação da manutenção de uma cultura eleita visando uma comunidade forjada no imaginário não se dá pela existência dela, mas sim pela arbitrariedade com a qual esta é defendida e imposta ou não.

Mais recentemente, a partir da década de 1980, com a expressão mais fortemente articulada de perspectivas anteriormente silenciadas como a feminista, que acusa o machismo, e a sexual não-binária, que acusa a heteronormatividade nas sociedades e no poder institucional, pudemos observar o caráter essencialista que tentava colocar num bloco, ou numa caixa, todas as diferentes expressões taxando-as de, por exemplo, “A” brasileira, “A” melhor, “A” correta, como se a limitação sexual de “homem e/ou mulher” inflexível fosse a mais apropriada ou se a presença majoritariamente masculina nos espaços de poder fosse a mais ajustada, cada uma com as suas narrativas justificadoras como a vontade do Deus cristão para a heterossexualidade ou a adequação do homem ao trabalho público e à gestão enquanto a mulher estaria adaptada para os cuidados familiares e domésticos há “muito tempo”. Todas essas justificativas baseadas em defesas de narrativas construídas passaram a ser mais contestadas com a denúncia de ações que objetivavam e realizavam o controle, como a dominação de um indivíduo ou grupo por outro (a mulher dominada pelo homem, a heterossexualidade assertiva ditada pela vontade de Deus). Essa denúncia de sobreposição de vontades proporcionada pela ocupação de diferentes perspectivas em espaços de destaque social e político, como as universidades e também os museus e patrimônios, escancarou o jogo de poder no qual se inserem as tentativas de efetivação de determinadas vontades de grupos diferentes (o embate eleitoral ao qual se submetem partidos políticos e seus representantes é um exemplo).

Dentro desse panorama, a ideia que tenta ver com outra luz os patrimônios até aqui estabelecidos, como os 1362 do IPHAN, pensa neles não como ícones representativos de uma cultura brasileira (dado o caráter federal do IPHAN), primeiro porque pode essencializar as diferenças em um só bloco reducionista e segundo porque a função representativa entrou em colapso com a acusação de outras vozes da ineficiência dessa tentativa, e prevê, por sua vez, o entendimento de que a reunião dos patrimônios existentes, como os registrados no Arquivo Noronha Santos, são filhos de seu tempo e não uma produção constante de uma totalidade. No sentido de continuidade do trabalho pode, sim, serem uma produção de um todo, entretanto, pensar a produção deles sempre dentro de seu tempo, com seus contextos políticos, sociais, econômicos, geográficos e históricos nos permite considerar a complexidade de cada processo de tombamento ou registro de bens. Tentar entender a consolidação da atualidade como uma coleção de itens, cada qual com seus motivos e valores simbólicos e subjetivos, nos oferece a chance de entendermos melhor porque um gestor privilegia mais ou que outro patrimônio, espaço cultural ou sítio arquitetônico, por exemplo. Nessa visão se torna mais palpável a existência de predileções do poder e seus esforços para com os bens que tentem representar não a sociedade como um todo, mas a intenção de quem administra e os torna funcionais seguindo suas expectativas e vontades.

Os diversos dramas apresentados no Brasil, como o relegar dos museus a segundos, terceiros ou quartos planos da gestão, podem ser melhor compreendidos se pensamos que de fato cada gestor não irá articular os bens culturais em totalidade para a sociedade e, sim, irá veicular suas ideias por meio daqueles que lhes representem palcos mais afins com seus objetivos. Um prefeito que trabalhe a construção de uma sociedade a partir da reunião das culturas europeias será capaz de usar de locais que possam apresentar essa intenção como a promoção de mostras com grupos folclóricos poloneses, ucranianos e italianos (privilegiando as imigrações oitocentistas alocadas em colônias) em detrimento de outras expressões que destoem, não sendo surpresa, então, a exclusão de outros grupos. Nesse mesmo enredo, pode ser mais fácil pensarmos que um outro prefeito mais voltado para a sustentabilidade e o uso de energias limpas e outras formas de transporte dê maior visibilidade às conscientizações sobre o uso de bicicletas, queira construir vias especiais para elas e propagandeie ações nesse mote ao invés de, novamente, articular os patrimônios já existentes. Assim, cada gestão dá espaço, vez, voz e faz ecoar aquilo que melhor lhe represente vinculando os espaços e bens culturais a partir de suas pré-disposições. Os 1362 bens tombados pelo IPHAN são, com isso, uma coleção de filhos de tempos diferentes com intenções variadas que se inserem numa lógica estrutural: a do patrimonialismo, suas tentativas metafísico-teóricas e suas aplicações praticamente possíveis e efetivas, salientando a lacuna entre intenção e realização, entre vontade e aplicabilidade, entre elucubração atemporal sobre funções, suportes e potencialidades e funcionamento cotidiano e seus embates reais.

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