“Nós escritores escrevemos…
enquanto não beijamos na boca,
enquanto não trepamos loucamente,
enquanto o sol foge pela janela,
enquanto a noite escorre pela lapela,
enquanto a chuva ainda teima em não chegar.”
(trecho de um poema de Elenilson Nascimento em uma faixa colocada num casarão em plena Flipelô, Pelourinho, Salvador – BA)
Alguma vez você já leu algo que lhe matou lá por dentro? Tipo uma mensagem na rede social, um livro arrebatador, uma matéria de jornal impactante ou algo que alguém disse? Tudo estava bem até que você acidentalmente ouviu sobre algo que você não queria saber e era melhor não saber mesmo. Aí você não consegue parar de pensar naquilo e se tortura. Sala de uma UTI do Hospital Roberto Santos, Salvador (BA), segunda quinzena de abril de 2005. Fui fazer uma matéria sobre a violência dos capitães do mato contra a população negra e pobre soteropolitana e acabei encontrando um menino de rua que agonizava num leito sujo daquele hospital – uma visão aterradora que jamais sairia da minha mente. No impacto com o pathos de fim de jogo desse cara eternamente inconformado que se engendrou em mim eclode uma culpa acachapante decorrente daquela situação. É preciso, é imperioso, que eu lhe conte um segredo – e eu conto – meu tempo de cidadão passivo acabara. Fiz um escândalo tão grande dentro do hospital que apareceu polícia ameaçado me levar em cana e os cambau, e, enfim, algum médico surgiu como mágica com explicações estapafúrdias, mobilizei alguns conhecidos e conseguimos trasferência do garoto para outra unidade.
Estamos agora no mês de agosto de 2018, em plena 2ª Festa Literária Internacional do Pelourinho – FLIPELÔ – e volto a encontrar aquele garoto lá do primeiro parágrafo, já imerso no revolto mar tropicalista e questionador da literatura. Saliente, a sua antena de satélite conseguiu me captar no meio da multidão saltitante em busca de autógrafos de escritores e celebridades famosas presentes na festa. Depois dos longos abraços, me contou que terminou o curso secundário – onde sempre foi aluno aplicado a ponto de ser tachado de c.d.a.i. (cu de aço inoxidável), um ou dois graus acima do c.d.f. (cu de ferro). E por ser louco por cinema, literatura, revistas em quadrinhos, publicações jornalísticas e livros, desde o berçário, mesmo sendo pobre (me disse ainda que aprendeu a ler manuseando o decadente jornal A Tarde e teclando uma velha máquina de escrever Remington). Resultado: caiu em tentação – juntando os poucos trocados no fim de todos os dias de trabalho – nada vultoso – e comprava livros, muitos livros por sinal, inclusive os meus. Acabou entrando numa faculdade através do sistema de cotas sociais. Ia por ir, ninguém o obrigava, mesmo não gostando do fraco curso de Letras, mas gostava mesmo do movimento, dos afazeres acadêmicos, das pesquisas, dos livros… Agora, estavámos novamente ali… celebrando a nossa literatura!
COMEÇO – Ao contrário da Flipelô2017 que privilegiou as escolhas de autores das famosas panelinhas literárias e chatas da Bahia – clique aqui e leia a matéria da primeira edição, a abertura da 2ª Edição da Flipelô, segundo ano consecutivo em que o SESC foi o correalizador, foi marcada por longas filas no Pelourinho, no Centro Histórico de Salvador, com debates super lotados, vários lançamentos de livros, vários assuntos polêmicos como liberdade (ou a falta dela), preconceito, desemprego, política, polícia racista, feminismo, religião, censura, gastronomia e, é claro, livros, muitos livros, num cenário mais do que especial: Terreiro de Jesus, Igreja do Rosário dos Pretos, Primeira Faculdade de Medicina do Brasil, Galeria Solar Ferrão, Fundação Casa de Jorge Amado, dentre outros espaços culturais. O evento começou no dia 08 de agosto com uma mesa de debate concorridíssima sobre escravidão e liberdade, além do Concerto Afro Barroco, com Mateus Aleluia, Bonde Musica e a talentosa Juliana Ribeiro.
Como sempre, nunca dava para ver tudo ao mesmo tempo agora. Mas no segundo dia, a Flipelô já mostrou para o que veio. Teve teatro infantil, oficina para contação de histórias, várias mesas de debates, exposições, rodas de conversas com o ator Jackson Costa (e o seu pijama listrado) e outros, saraus de poesias e até lançamento do CD “Amor & Loucura”, do excelente Grupo A Roda. Contudo, o Coral Ecumênico do Estado da Bahia proporcionou um dos momentos mais emocionantes do dia na famosa Igreja do Rosário dos Pretos, além do excelente show “Divino e Ateu” do cantor e compositor Achiles, em pleno Largo do Pelourinho. Mas para a sempre competente Denny Fingergut, a Flipelô vem para ocupar um espaço por muito tempo vago em Salvador: “Para mim foi uma honra participar. Me impressionou inicialmente o público sedento pela participação em uma festa literária como esta, revitalizando de fato o Centro Histórico e os benefícios que trouxe para a população em geral e também para o comércio local. As atrações na Flipelô contemplaram diversas gerações sempre com temas instigantes e convidados maravilhosos. Desejo ao Flipelô vida longa e muito sucesso”, disse a sempre educada e inteligente jornalista e apresentadora da TVE.
Flipelô – Foto de Elenilson Nascimento
MOMENTO TIETE – No terceiro dia, o mais concorrido de todos, teve uma oficina gastronômica, curiosamente chamada de “A Comida de Jorge”, com professores do Senac ensinando a fazer alguns quitutes que o nobre autor baiano divulgou nos seus livros. No Museu Eugênio Teixeira Leal aconteceu a apresentação teatral “Carolina Maria de Jesus – Diário de Bitita”, com a performance da artista carioca Andreia Ribeiro. Já no Teatro Sesc, o burburinho ficou com o tão aguardado debate com os escritores Raphael Montes, carioca, especialista em literatura policial e suspense, autor famosão e de sucessos das estantes como “Dias Perfeitos”, “Jantar Secreto”, “O Vilarejo” e o tenso e o meu favorito “Suicidas”, além de um excelente apresentador do programa Trilha de Letras da TV Brasil; e do escritor pernambucano, contista dos melhores da Geração 90 e autor do livro “Contos Negreiros” que recebeu o Prêmio Jabuti de Literatura em 2006, o língua afiada do Marcelino Freire.
Os dois autores foram de uma sintônia cúmplice com o público presente. Enquanto o simpaticão do Raphael falava que, para ele, a literatura é quase um grito, sobre cotistas nas universidades, da periferia do Rio de Janeiro, que o medo e o desconhecido lhe atrai, que teve recentemente um roteiro aprovado para virar filme, ainda disse que “a literatura policial parte do princípio de que existe um crime, devolvendo a ordem social, mas que aqui no Brasil um corpo é mais um corpo”; Marcelino, por outro lado, mostrou o seu lado piadista, falou sobre Bolsonaro, defendeu apaixonadamente Lula, ao ponto de até jogar vários exemplares do livro “Lula Livre Lula Livro” para uma plateia de cães fiéis demais para o meu gosto. Momento chato, pernóstico e de pura alienação! Tirando esse minuto de apredizado lambe botas petista, gostei muito do pernambucano. “Confortável é a cama, não o livro!”, disse Marcelino.
PAGANDO MICO – Um dos meus muitos momentos tiete, foi quando fui pedir o autógrafo do Raphael. Na fila, estressado no meio daqueles adolescentes “zuadentos” fazendo coraçõeszinhos com as mãos, fiquei pensando: “Eu não vou fazer isso! É muito mico!”. Mas assim que cheguei perto do “homi”, puta que pariu, que cara grande! Agarrei e deu até vontade… de levá-lo para casa junto com o livro já autografado. Raphael é um caso raro na nossa atual literatura BR cheia de autores “fabricados”, “subcelebridades”, “panelinhas” e afins. “Em Amsterdã não acreditaram que no Brasil um motorista bêbado podia se livrar de uma blitz apenas pagando um valor ao policial. O que é nossa realidade, para outros parece fantasioso”, disse o autor. Interessado em livros desde pequeno, escreveu o incômodo “Suicidas” na adolescência e, logo aos 16 anos, conseguiu um espaço no mercado editorial, mesmo ele tendo dito no debate que se sente um privilegiado. Pode até ser, mas quantos privilegiados têm realmente talento? Gosto muito da qualidade literária e da maturidade do seu estilo. Confesso aqui que demorei um pouco para que o Raphael tirasse o “meu cabaço” na literatura policial e suspense, coisa que nunca me interessei, sempre achei exagerada demais, mas agora f… Estou curtindo e, o melhor, comendo com muito gosto!
Me identifiquei total com o Raphael quando ele confessou no debate que ainda no início da sua carreira literária mostrou “Suicidas” para várias editoras e todas negaram a publicação, me enxerguei refletido no palco. “Fui muito paciente e esperei. Nesse meio tempo, comecei a escrever ‘Dias Perfeitos’. Até que, um dia, por causa de um prêmio literário, uma editora se interessou e publicou o ‘Suicidas’”, disse o jovem autor. Só queria saber se, nos dias de hoje, ele teria tanta paciência assim com essa quantidade de padres, BBBs, feministas, evangélicos, os auto-ajuda, ex-drogados e todos os tipos de antas domésticadas publicando livros, mas me encolhi na minha insignificância para arrepio dos literários e foquinhas amestradas mais conservadoras.
Flipelô – Foto de Elenilson Nascimento
TURISTANDO – E enquanto na Faculdade de Medicina acontecia uma performance teatral “Sargento Getúlio”, com o Grupo TPC, no Museu Eugênio Teixeira Leal, ali ao lado, acontecia outro debate necessário e urgente sobre literatura como ato de liberdade com “autores privados de liberdade”. Já cheguei meio avoado, perdido que estava dentro do Pelourinho, mas quando, enfim, me acomodei no chão, e o autor começou a falar sobre processo de padronização de custódia, da perda da liberdade, da descoberta da poesia, da escola da fome, vi que ali se encontrava mais um ser humano que eu devia todo o meu respeito, pois a leitura de mundo nunca esteve tão viva e não está desconectada com a escrita.
Depois disso, hora de turistar naquelas ladeias íngremes, tomar sorvete, comer alguma coisa, paquerar, bulinar alguém, digo, beijar alguém e conferir uma contação de histórias para as crianças e as não tão crianças assim. Apaixonei! E segundo o artista daquelas contações de histórias, Rafahel Ramos: “Eu, como escritor e poeta, sei o quanto é difícil ganhar a atenção de leitores, principalmente porque a maioria das pessoas de Salvador são pessoas videotas, e não costumam abraçar a leitura no seu dia-a-dia. Um vento como este que é a Flipelô, é de suma importância para a cidade pois traz para a população, cultura e arte de qualidade e de forma acessível a todos”. E ainda complementou: “A cultura nos ensina quem somos, a arte nos motiva a ser cidadãos mais ativos na nossa sociedade. Participar da Flipelô é, sem dúvidas, receber água limpa para eliminar as sujeiras sonoras e visuais que costumamos ter como destaque em nossa cidade. Oferecer aos soteropolitanos um evento como este, de forma linda e fascinante, é sem dúvidas um ganho para nossa cidade”, disse Rafahel.
MOMENTO POP FAVELA – Um pouco mais tarde, enquanto outros eventos aconteciam, teve a mesa de debate mais pop do envento sobre prosa urbana, literatura e cidade com o carioca Geovani Martins, autor de 26 anos que estreiou com “O Sol na Cabeça”, um conjunto de 13 contos, e calou a boca da turminha do contra publicando pela Cia. das Letras, e o baiano Evanilton Gonçalves, revisor de textos, crítico literário, formado em Letras, editor do blog Diários Incendiários e autor de “Pensamentos Supérfluos: Coisas que desaprendi com o mundo”. Apesar de toda aquela timidez de ambos no início do debate, falaram um pouco sobre suas obras, preconceitos, prosa urbana e literatura boa e periférica. Já conhecia o Geovani de outros carnavais, como as suas andanças recentes na Flip e na Bienal de São Paulo, e gosto muito da maneira como ele escreve, além de respeitar muito a sua tragetória.
Este autor carioca, com uma cara de um Jesus sacana e da favela, até pouco tempo atrás, não tinha nem casa. No debate, com o Teatro do SESC lotado, disse que sua mãe, a cozinheira Dona Neide, lhe estendeu as mãos e abriu o coração quando o filho pediu para ser sustentado até escrever um livro. Coragem dela. Coragem dele. E deu certo. Mas de onde vem tamanha autoconfiança? “Do desespero”, disse o autor mas com um jeitão de quem é gente fina, dessas pessoas que você quer por perto o resto da vida. Nascido em Bangu, Zona Oeste do Rio de Janeiro, Geovani ainda vive no Morro do Vidigal, Zona Sul, até hoje. O gosto pelas palavras nasceu graças a uma avó que lia para ele gibis da Turma da Mônica. Até ter um “papo reto” com a mãe sobre viver de literatura: “Transei zilhões de trampos, desde atendente de lanchonete a garçom de bufê infantil, zanzando pelas ruas do Rio como homem-placa”, disse sem nenhum constrangimento. Quando falou que cursara até a oitava série, uma professora atrás de mim deu um muxoxo. Mas o choque de realidade sentido na carne pelos lugares que passou expõe o aviltante drama da desigualdade no Rio de Janeiro. A experiência brutal serviu de fonte para os incisivos 13 contos do livro. E talvez por isso ele esteja sendo tão consumido e comentado tão avidamente.
Poetisa Michele Saimon – Foto Elenilson Nascimento
Geovani já colhe os louros da boa recepção da crítica, do público, da mídia que não leu mas já gostou e dos zilhões de seguidores na rede. Na Flipelô, o autor foi um oceano de timidez, mas de uma generosidade contagiante, falou ainda de como produziu o livro, da sua (não) rotina quando escreve, que vendia (não lembro o quê) não praia e leu ainda um trecho favorito do livro. E escolheu o primeiro conto, “Rolézim” e justificou: “É uma boa apresentação do livro, do que vem adiante, principalmente por ele orbitar em torno do sol”. O seu livro fala sobre o cotidiano de jovens na periferia do Rio de Janeiro, não muito diferente de Salvador, com essa polícia racista e medíocre, mas a obra já foi vendida para nove países e também para adaptação no cinema. Pois é, esse cara tem o phoder! Fora que é um doce de pessoa! Geovani dá novo olhar à temática saturada e envolta em clichês, não tratando os personagens como coitadinhos. Uma bela estreia literária!
O PRATO BOM DA CASA – Mas o Evanilton foi a minha grata surpresa. Um cara educado, delicado, inteligente, elegante, centrado e todo jogado naquela poltrona me arrebatou prontamente assim que abriu a boca. Compartilho da sua sagacidade e me identifiquei totalmente quando ele falou da violência que os negros sofrem em Salvador. Assunto, por sinal, do meu livro que já foi reprovado em várias editoras baianas por causa do conteúdo: o extermínio de negros por essa polícia racista, especificamente a morte dos doze jovens no Cabula. Gosto muito da angustiante fala deste jovem autor baiano, a tensão psicológica, no melhor estilo Rubem Fonseca, e também que me lembrou muito o livro “Cine Privê”, de Antonio Carlos Viana. E eu gosto muito de gente que dá a cara nessa relação tensa e estranha de gato e rato entre poderes públicos que serve a classe média e mete tiro no cidadão já excluído. Uma quase pirraça social. E o desfecho não poderia ser mais do que exemplar nessa forma consciente do tamanho da desigualdade entre a acadêmia e a periferia. Engraçado que já tinha o livro dele aqui em casa, já tinha feito algum comentário com o querido autor Paulo Lins, mas não estava ligando o nome ao homem.
“Para mim, a Flipelô é um evento importantíssimo. E aqui faço uso do superlativo absoluto tão caro ao homenageado: João Ubaldo Ribeiro. A importância está no fomento à leitura, no estímulo para o povo viver a própria cidade, fazer o centro histórico pulsar com o coração de sua gente, não só os “made in” qualquer outro lugar. Vivi dias intensos, virei a madrugada bebendo e conversando amenidades com amigos, me diverti e fiquei emocionado em muitas mesas, mas gente incorrigivelmente chata sempre há de pintar por aí. Juntei as moedas e, com muito esforço, comprei alguns livros e também fui presenteado com livros”, disse o jovem e talentoso autor baiano. E ainda provocou: “Na verdade, seria interessante se muitos jornalistas, escritores e leitores mais atentos comentassem suas impressões sobre a festa, assim, acredito, teríamos a possibilidade de captarmos diferentes focos do evento. Sei que a crítica está fora de moda, no entanto, apesar dos bons encontros e reencontros, dos muitos motivos para festejar, me arrisco: percebo que, infelizmente, as festas literárias, lugares de suposta celebração da liberdade em seu sentido pleno, perdem cada vez mais para o deus mercado, de modo que a bibliodiversidade, tão importante para a democracia e para o circuito literário, fica sufocada. Afinal, quantas editoras baianas temos mesmo na lista de mais vendidos da Flipelô?”, complementou. Pois é, essa é outra criatura brilhante que eu vou inferninar para tê-la como meu amigo!
CAROLINA, PEDRO BALA E ACARAJÉ – Neste mesmo dia, por acaso, encontro no Elevador Lacerda, o curador da Flipelô, o poeta alagoano-baiano José Inácio Vieria de Melo, que me presenteou com seu livro “Entre a Estrada e a Estrela”, ao lado do seu filho com cara de Pedro Bala, além dos escritores Salgado Maranhão e Tom Farias. O simpaticão Maranhão foi o mediador da mesa de debate sobre o livro “Carolina, Uma Biografia”, de Tom Farias, sobre a autora Carolina Maria de Jesus. Livro que, por sinal, tem recebido críticas muito boas e que o autor felizmente parece ter tentado afastá-la do estereótipo de “escritora de favela” – termo que eu sempre detestei. Carolina, muito antes de estourar para o público em uma histórica reportagem da revista “O Cruzeiro” no fim dos anos 1950, já frequentava redações de jornais em busca de divulgação para seus poemas. Apesar de ter cursado apenas dois anos letivos, aquilo foi o suficiente para não largar mais o hábito da escrita e da leitura. A história desta autora é muito interessante e o livro do Tom parece uma obra fundamental para entendê-la mais um pouco.
Flipelô 2018 Salvador
DJAMILA, FEMINISTAS DE ESTAÇÃO E Q ÓDIO! – E no penútimo dia da Flipelô, naquele sábado que eu gostaria muito de evoluir mais um pouquinho, contudo, deu m… por total falta de comunicação e competência dos organizadores. Sair de casa todo preparado, todo me sentindo, com meu gravador portátil só para gravar o debate com a escritora paulista Djamila Ribeiro, fênomeno entre 10 entre 11 feministas negras. Pego engarrafamento da p…, me estresso no trânsito caótico da província, chego no horário (*no programa O-FI-CI-AL impresso e no site um dia antes estava lá: debate 11h) e, pasmem, a inteligência artificial fake do evento antecipa o debate uma hora, sem aviso algum. Resultado: uma gorda arrogante que estava na portaria do teatro não queria me deixar entrar, mesmo eu com a credencial destinada a imprensa. Ameaçei chamar alguém da organização, só não perguntei se ela sabia com quem estava falando pois provávelmente não sabia, nem eu às vezes sei, mesmo porque acho essa frase de uma escrotidão medonha. Então, entrei no evento, pisquei e acabou! Que ódio! Para completar a autora não autografou meu livro porque estava com dor nas costas. Que ódio 2!
E vendo a quatidade de meninas se engajando no tal “empoderamento negro” fico me perguntando se isso tudo não é mais um modismo… Quantas autoras brasileiras e negras você já leu? Aposto que não muitas, mas elas existem! Sempre existiram… E são feministas, mães, da periferia, trabalhadoras, questionadoras e pesquisadoras que sabem colocar em palavras o ponto de vista da mulher negra que sente tudo na pele. Tratam de diversos temas de uma maneira emocionante, mas, infelizmente, são pouco divulgadas e publicadas – é quase impossível encontrar obras em livrarias. Em obras sobre feminismo no Brasil é muito comum não encontrarmos nada falando sobre feminismo negro e isso é sintomático, feminismo para quem mesmo? É mais do que necessário de uma vez por todas entender que existem várias mulheres contidas nesse ser mulher e romper com essa tentação de universalidade que só exclui. Há grandes estudiosas, pensadoras interessantes, além da agora famosa Djamila, como Maria Firmina dos Reis, Carolina Maria de Jesus, Elizandra Souza, Ana Maria Gonçalves, Sueli Caneiro, Jurema Werneck, Núbia Moreira, Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Luiza Bairros Cristiano Rodrigues, Audre Lorde, Patricia Hill Collins, Bell Hooks e Elisa Lucinda que produziram e produzem grandes obras e reflexões. Mas enfim… modismo ou não, espero que surjam outras Djamilas.
Na sequência do dia, fui bater perna, almoçar no Iguatemi (*comida cara do Pelourinho é uma facada no bolso!), botar crédito no cartão, volto achando que iria encontrar a Elisa Lucinda na performance teatral “Leituras Pretas – Elisa Lucinda: Versos e Cenas na Cor-respondência da Vida!”, com a Cia. Beluna de Arte, mas além de ter ficado num canto do Café Teatro Zélia Gattai (que não deu pra ver nada direito), nem sobra de um fiapo de cabelo de alguém, a tal performance foi feita pelo já citado grupo lendo os textos da Elisa. Mas, neste caso, a falta de atenção foi toda minha! Que ódio 3!
PUXA, ACABOU – No domingo, último dia, teve missa de agradecimento na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, apresentação da Filarmônica 25 de Fevereiro do Grupo TPC, mais lançamentos de livros, apresentação literomusical infantil, Cortejo Afro, o excelente Grupo PUMM, Anderson Souza com o seu “DNA Samba Reggae”, Orquestra de Xequerês, mais bate papos sobre literatura e a Flipelô 2018 terminou com a Orquestra Afrosinfônica da Bahia. Contudo, gostaria de destacar ainda os belíssimos hologramas que foram projetados com imagens de Jorge Amado e amigos em frente a Fundação Casa de Jorge Amado, e do povo lá em baixo extasiado; o autor independente que colocou o banner “Festa que não sou convidado, meto isopor na porta”, bem em frente a Fundação, para vender seu livro “Rebeca Não Perdeu a Chance”, direto do isopor. Sensacional! Bem a letra da música de Roberto Mendes: “Gente que tira alegria da dor/Do batecum do batente…” Além da Exposição “Zélia Gattai – Talentosa, Graças a Deus”, que ficava bem ao lado direito na Fundação, onde você poderia sair de lá com cartões postais do ilustre “casal 20” da Bahia. Você retirava um cartão do varal ou de uma bacia e leva para casa! Exposição linda e com vários pertences particulares da Zélia! Show de bola!
Flipelô – Foto de Elenilson Nascimento
Outra grata descoberta nessa Flipelô foi a dupla DUO com a linda Livia Nestrovski (que tem a cara, o jeito e a voz da Adriana Calcanhoto) e Fred Ferreira. Meu Deus, que show massa! A dupla vem sendo apontada de forma proeminente dentre a nova geração de artistas do Brasil, buscando um certo distanciamento das maneiras tradicionais de interpretação e da rasa produção musical atual, utiliza-se somente de guitarra, voz e efeitos eletrônicos para traçar narrativas sutis e inusitadas entre as canções de Kurt Weill, Zé Miguel Wisnik, Milton Nascimento e compositores da nova geração, além de intersecções destas com peças de música erudita, como as de Britten e Debussy. Portanto, jamais veremos a dupla DUO com jeitão de Eurythmics e sotaque brazuca no Só Toca Top, programa de músicas medíocres comandado por Luan Santana e Fernanda Souza. Chupa Rede Globo!
Impossível não comentar também os vários artistas que tocaram música boa e de qualidade em plena Praça do Terreiro de Jesus; a poetisa gata Michele Saimon recitando suas poesias durante o Sarau Avozedita, no Café Teatro Zélia Gattai; a apresentação massa da Orquestra Baiana de Capoeira, na Igreja do Rosário dos Pretos; o som elegante de Thiago Amud com o seu “O Cinema Que o Sol Não Apaga”; e muito mais. Que venham outras Flipelôs, pois viver a literatura vai muito além dos livros… É se inspirar e compartilhar uma nova visão de mundo com as pessoas, através das mais diversas manifestações de ARTE…
Muito do sucesso desta festa tem a ver com o perfil, trajetória e realidade vivida pelos escritores, muitas vezes menosprezados, mas, sobretudo, pelo talento, resiliência e habilidade em retratar essas experiências com sensibilidade sem igual, mesmo, muitas vezes, não estando em listas encomendadas de revistas semanais. E eu, como escritor e cidadão, acredito que a literatura tem o poder de alcançar, dentro dos leitores, a inspiração para expressar o que cada um tem de melhor. É por isso que, nesta Flipelô, o papel dos livros foi o de abrir as portas da imaginação com uma série de atrações para mostrar que podemos viver a leitura de várias maneiras. E, no geral, a Flipelô teve vários momentos (sutis, mas aprovados) de política, empoderamento, pornografia, afetação de certos autores e professores, e muita poesia, como era de se esperar num tributo ao itaparicano João Ubaldo Ribeiro (1941-2013), em alusão à ligação entre João e o colega de escrita Jorge, onde tema do evento foi “A amizade é o sal da vida”, mas que eu não vi ninguém falando sobre isso.
E enquanto você ler essa matéria, você também está se empoderando (*palavrinha da moda!), se instruindo, trocando ideias, compartilhando nas redes, pois o comportamento é, como ensinou os nossos autores já mortos: “Mantenha a postura ereta e se possível sã o juízo, pois o ambiente em que está pode ser teu paraíso”. E fica ainda mais bonito tendo na mão um bom livro. Saldo da Flipelô: lindos debates, (uma pilha de) livros bacanas e muito caros, alguns reencontros interessantes, muita gente chata, alguns deslumbrados e (muito) cansaço. Mas o melhor de tudo: o quentinho no coração por ter feito parte de um evento tão incrível. P.S. Nota ZERO para os distribuidores que estavam vendo livros caríssimos. E muita gente indo comprar em outros lugares para depois voltar para a festa e pedir autógrafos dos autores favoritos.