Cinema

Corpo gracioso e corpo obsceno em Nudez, de Agamben

ADAN Y EVA, DE LUCAS CRANACH, MUSEO SOUMAYA

Corpo gracioso e corpo obsceno em Nudez, de Agamben: Dez ensaios dos anos 2010: parte 2

Retomamos nossa seleção de dez ensaios da última década, e agora vamos em direção aos de autoria estrangeira. É sempre bom que os critérios sejam repetidos: 1-livros publicados no Brasil, em português, entre os anos 2010-2019; 2-cinco brasileiros [cf. coluna anterior] e cinco estrangeiros; 3-obras de extensão curta ou mediana, que sejam ou flertem com o gênero ensaio, em prosa; 4-legibilidade ao grande público: os tempos do apocalipse não exigem leveza ou ideias rasas, mas revisão da dicção de aparatos deleuzianos, derridianos e lacanianos etc, de expressão muitas vezes impenetrável; 5-o quinto critério, e o mais importante: minhas afinidades eletivas com cada um desses livros.

6-Nudez, de Giorgio Agamben. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.

O ensaio que dá título à coletânea centra-se na distinção entre o corpo pornográfico versus o corpo gracioso. O primeiro seria baseado na representação da carne em si, da carnalidade, da facticidade da carne, inapelável, intranscendente, obscena. Já o corpo gracioso, ainda que nu, está recoberto por signos que o afastam dessa gravidade visceral: “nada é menos ‘em carne’ que uma dançarina, ainda que nua”. Agamben redescobriu, entre muitas coisas, metodologias estranhas para se estudar os imagéticos contemporâneos: a pornografia,  os fragmentos e citações warburgianas, a reconceituação do sadismo. Tem sido, por isso, um pensador indispensável, que propõe um tipo de jogo que nem todos os aparatos e fiscais acadêmicos se dispõem a jogar.

“Por isso o sádico procura por todos os meios fazer com que a carne apareça, fazer com que sejam assumidos pela força exercida sobre o corpo do outro certos comportamentos  incongruentes e certas posições que revelem sua obscenidade, isto é, a perda irreparável de toda a graça”. [pág. 112]

7-Necropolítica, de Achille Mbembe. São Paulo: n-1, 2018.

Publicado em versão traduzida primeiro na Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais/EBA/UFRJ, em 2016, Necropolítica é um texto curto e incontornável, que discorre sobre as operações totalitárias nos espaços, identidades e corporalidades de quem pertence, para lembrarmos Baudrillard, ao Quarto Mundo dos excluídos. As ocupações israelenses na Palestina, nesse sentido, resumem o argumento:

“Viver sob ocupação contemporânea é experimentar uma condição permanente de “viver na dor”: estruturas fortificadas, postos militares e bloqueios de estradas em todo lugar; construções que trazem à tona memórias dolorosas de humilhação, interrogatórios e espancamentos; toques de recolher que aprisionam centenas de milhares de pessoas  em suas casas apertadas todas as noites do anoitecer ao amanhecer (…); crianças cegadas por balas de borracha; pais humilhados e espancados na frente de suas famílias; soldados urinando nas cercas, atirando nos tanques de água dos telhados só por diversão (…).” [págs. 68-9]

8-Cascas, de Didi-Huberman. São Paulo: 34, 2017.

A assustadora conversão das instalações/ruínas de Auschwitz-Birkenau numa fantasmagoria de selfies turísticas para gente que compõe caravanas de lazer, e que articula dizeres do tipo: “me impressionou muito, um lugar muito pesado” é criticada, em sua absurda espetacularização, pelo pensador francês. O campo de concentração, no entanto e tragicamente, atravessa também sua história familiar.

“Outras tabuletas continuam a surgir meio que por toda a parte: lápides memoriais, como dizem, ou textos escritos em branco – nos três idiomas, polonês, inglês e hebraico – destacam-se contra um fundo preto. Ou ainda, mais prosaicas, as sinalizações na forma tão familiar de “passagens proibidas”: silêncio, não circule em trajes de banho, não fume, não coma, não beba (a imagem, barrada por um traço vermelho, representando um hambúrguer ao lado de um grande copo de Coca Cola); não use o celular, não passeie com o rádio ligado.” [pág. 17].

9-Capitalismo tardio e os fins do sono , de Jonathan Crary. São Paulo: Cosac-Naify, 2014.

O tempo do capital é um tempo de constante homogeneização, em processo; o autor analisa como os tempos da noite, da dormência, da interrupção do trabalho, do sonho e do imaginário (e, por extensão, da morte – pensemos nas clínicas de criogenia e dentes de leite – para pensarmos nas picnolepsias de Virilio) vêm se precarizando e rarefazendo em prol de uma experiência de estímulo e consumo, 24h por dia, 7 dias por semana. Nessa direção, a exposição massiva a estímulos teletécnicos e ubíquos pode se relacionar, segundo estudos perturbadores, a uma explosão de casos de autismo nos últimos 30 anos, apenas para ficarmos em um exemplo.

“Uma das problemáticas centrais nos estudos de autismo das últimas décadas tem sido explicar o aumento extraordinário e anômalo em sua frequência a partir de meados até o final dos anos 1980. [pág. 95]”.

10-Sociedade do cansaço, de Byung-Chul Han. Petrópolis: Vozes, 2015.

A sociedade do desempenho, ou do rendimento, cujo paradigma supera o paradigma foucaultiano da sociedade de controle, é abordada aqui. Academias, clínicas de estética, bancos, alas gourmet etc são as heterotopias deste novo mundo, e funcionam como seu motor simbólico, ao invés da prisão, do quartel, do hospício. O sujeito de desempenho se auto-explora; o panóptico está em sua cabeça, internalizado, como um chip de coach instalado no córtex intra-têmporas (parodiando o exterminador do futuro, dos velhos anos noventa). Um dos diagnósticos desse modelo social pode ser dado, evidentemente, pelas doenças da época: o burnout e o TDAH assumem, na sociedade de desempenho, o aspecto de sintoma e de alegoria. Na década do 7 a 1, ainda são poucos os terapeutas, ao que parece, que relacionam o mal-estar generalizado às condições materiais do tempo presente. ‘Faça atividade física’, ‘medite’, ‘coma verduras’ são frases que se leem muito, no tocante a recomendações devido a crises dos sujeitos; todavia, pouco se recomenda esse ensaio essencial aos sôfregos pacientes. E ele é indispensável.

“ (…) a violência sistêmica inerente à sociedade do desempenho [é] que produz infartos psíquicos. O que causa a depressão do esgotamento não é o imperativo de obedecer apenas a si mesmo, mas a pressão de desempenho. Visto a partir daqui, a Síndrome de Burnout não expressa o si-mesmo esgotado, mas antes, a alma consumida.” [pág. 27].

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