Cinema

“A Mulher Canhota” – Uma só história

A Mulher Canhota

“Maio. Não perceberam que só há lugar …Para quem traz consigo o seu próprio espaço”. (Peter Handke)

No filme, dirigido pelo escritor germânico Peter Handke,  “uma só história”, ou se preferir, a história de ser só. A protagonista Edtih Clever tem um sonho, uma visão, uma iluminação em que se vê sozinha…E se sente super bem

Por Adolfo Gomes

Não é por milagre que o insólito se torna cotidiano, familiar…Ou que o estranhamento, que antes distanciava, agora aproxima, humaniza. A sutil alquimia empreendida por Peter Handke em “A Mulher Canhota” (Die Linkshändige Frau, ALE, 1978) tem a ver com certo estilo, cunhado como transcendental por Paul Schrader, por meio do qual o opaco se ilumina e o vazio (sobretudo de significados) reelabora objetos e seres sob uma nova perspectiva. Talvez a palavra mais justa seja epifania. Como justo também é lembrar das reservas que fazia Godard a “Asas do Desejo”, o mais célebre resultado da parceria entre Wenders e Handke: “São muitas histórias, muitos personagens”, afirmara JLG.

Em “A Mulher Canhota” uma só história, ou se preferir, a história de ser só. A protagonista Edtih Clever tem um sonho, uma visão, uma iluminação em que se vê sozinha…E se sente super bem. Apesar das ameaças, resolve transpor o real com a sua utopia. Abandona o marido e se dedica a solidão. Nem rejuvenesce, nem definha, simplesmente se encontra. E o mais importante: encontra seu espaço, senão no mundo, dentro de si,após um longo e incerto percurso.

Edith Clever em A Mulher canhota

Mais uma vez, convém observar: não se trata de misantropia, mas de subverter a relação de dependência que nos liga às pessoas. Neste sentido, Handke está nas antípodas de Fassbinder, por exemplo, para quem as relações pessoais, principalmente as afetivo-amorosas, escravizam, reproduzem na esfera íntima e pessoal as relações de poder na sociedade.

A mulher canhota ousa trafegar etérea e, ao mesmo tempo, carnal na pista contrária. Tem uma independência que a situa numa nova dimensão moral, em que o outro, dissociado do conceito cristão de semelhante, é sempre diferente e só, em seus conceitos e sentimentos. Respeitar isso, sem impor nada, e aceitar a solidão, como algo intrínseco e inevitável à condição humana, mirando a companhia plácida e minimalista do mestre Yasujiro Ozu – cujas evocações perpassam todo o filme – estão entre os méritos dessa pequena obra-prima que, pelo seu caráter atemporal e idiossincrático, parece ainda não ter encontrado o seu espaço no cinema contemporâneo. Pior para quem ainda não a descobriu.

Adolfo Gomes é cineclubista e crítico de cinema filiado à Abraccine. Curador de mostras e retrospectivas, entre as quais “Nicholas Philibert, a emoção do real”, “Bresson, olhos para o impossível” e “O Mito de Dom Sebastião no Cinema”. Coordenou as três edições do prêmio de estímulo a jovens críticos “Walter da Silveira”, promovido pela Diretoria de Audiovisual, da Fundação Cultural da Bahia.

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