Cena de Pacto Sinistro
Coluna de Gabriella Tomasi sobre a sétima arte; uma análise mais aprofundada do cinema
Alfred Hitchcock se consolidou na história do cinema como o Mestre do Suspense. Na época em que viveu fazendo suas produções cinematográficas, infelizmente, foi um diretor por vezes subestimado, tendo jamais sequer ganhado um Óscar. Embora reconhecer que foi unicamente premiado em 1941 na categoria de Melhor Filme pelo seu longa Rebecca – A Mulher Inesquecível, Hitchcock certa vez declarou que o prêmio não ficou com ele e, portanto, não se considera como vencedor da noite.
No início de sua jornada profissional, o cineasta fez muitos filmes em seu país de origem, na Inglaterra, e, posteriormente, dedicou boa parte de sua filmografia nos Estados Unidos, onde realizou Pacto Sinistro no ano de 1951. Uma curiosidade sobre sua carreira é que os temas de seus filmes eram considerados muito fortes para a época, o que dificultava muito fazer com que fossem produzidos, como na parte contratação de atores para interpretar os vilões. Assim, durante muito tempo, Hitchcock utilizava atores desconhecidos ou pouco valorizados pelos estúdios para que pudesse filmar, já que as estrelas do cinema de então não ousavam arriscar suas reputações profissionais em histórias de crime e terror. Poucos rostos conhecidos, como Cary Grant e James Stewart embarcaram na empreitada. Neste contexto, o longa adaptado do livro homônimo de Patricia Highsmith também encontrou em problemas iniciais em seu roteiro, já que Hitchcock declarou em sua entrevista com o diretor francês Truffaut que ninguém em particular inicialmente tinha gostado da história. Com muita insistência deu-se vida a Pacto Sinistro.
Vale ressaltar que o título em português não foi muito feliz neste caso. O seu original “Strangers on a Train” ou em tradução livre “Estranhos no Trem” é bem mais eficaz aqui.
A trama dá início com uma montagem paralela maravilhosa realizada a partir de dois planos que simultaneamente acompanha dois homens que chegam à estação de trem, e são filmados pelos planos-detalhes de seus sapatos em ângulos 3/4 que indicam oposição: enquanto um sapato preto caminha da esquerda para direta; outro sapato preto com manchas brancas caminha da direita para esquerda. Já na sequencia, o diretor projeta trilhos de trem que percorre um travelling como se fosse uma câmera subjetiva da perspectiva do transporte: vários trilhos entrelaçados se cruzam, mas se distanciam no caminho. Em entrevista, o cineasta declarou inclusive que tal efeito foi proposital para dar continuidade lógica ao movimento dos pés e certamente conferiu simbolismo a toda trama. Uma espécie de foreshadowing narrativo que nos prepara para o confronto dos dois personagens principais.
Após um encontro incidental, mas não coincidente dos sapatos no trem, Bruno Antony (Robert Walker) reconhece prontamente Guy Haines (Farley Granger) um tenista profissional e famoso. Declarado um admirador, Bruno se demonstra carismático, falastrão e tão interessado na vida de Guy que sentimos o desconforto deste pelo temperamento evasivo de Bruno. Há uma certa colisão de personalidades feita por diálogos, quando, por exemplo, um declara que não fuma o outro não consegue deixar de fumar; um bebe mais que outro, entre outros pontos. Ainda assim, não julgamos completamente Bruno nos instantes iniciais, ao contrário, até podemos nos identificar quando confessa ser um leitor fiel da coluna de fofocas sobre suas celebridades favoritas, mas há sim algo de errado e perturbador na sua personalidade excêntrica. Apenas pela forma em que Bruno é aqui retratado pelos elementos visuais já nos passa a sensação de que ele é um potencial vilão: o terno listrado que não combina com a gravata florida com seu nome gravado que ele diz somente usar para agradar sua mãe, ao contrário do terno liso de Guy. Ademais, a fotografia sempre utiliza de contrastes de sombras que tomam conta do plano iluminado no rosto de Bruno.
Durante este encontro, vale salientar a existência de um importante objeto em toda a trama sempre visto em close para que possamos gravá-lo na memória, já que possui grande importância narrativa conforme veremos adiante: um isqueiro que Anne presenteou a Guy com duas raquetes de tênis no canto e que Guy acaba dando para Bruno ao final.
Mas o que seria apenas uma conversa casual de fã com um famoso profissional acaba se tornando cada vez mais “mórbida”, conforme vemos nas expressões faciais de Guy. Com uma vivacidade extrema, Bruno demonstra repudia por seu pai e como deseja “matá-lo”, ao mesmo tempo em que confessa sua vontade de fazer todas as loucuras possíveis antes de morrer, tais como, ir de foguete para a lua e dirigir de olhos vendados um carro ou um jato em alta velocidade. Utilizando o plano em conjunto, Hitchcock transmite distância entre os dois personagens mais uma vez ao posicionar ambos em lados opostos da janela e, quando isolados no plano, coloca Bruno em um enquadramento mais aproximado que Guy, ressaltando a intenção deste em permanecer longe do rumo extremamente pessoal dessa conversa com um perfeito estranho. Dessa forma, sabendo que Guy tem uma amante Anne Morton (Ruth Roman), é filha do Senador Morton (Leo Carroll) e que sua esposa Miriam (Laura Elliott) o traiu e agora pretende se divorciar, Bruno propõe “linhas cruzadas” – assim como o trem. Ou seja, cada um executa o assassinato da pessoa que deseja se livrar: Bruno de seu pai; Guy de Miriam. Por óbvio, Guy rejeita a proposta, ou melhor, trata a situação com sarcasmo, como se aceitar aquele absurdo como uma brincadeira seria melhor do que acreditar na possibilidade de ser real.
Ao chegar à estação de Metcalf, sua cidade natal, Guy se depara com o próprio Hitchcock em mais uma de suas cameos famosas. Nela, o diretor carrega um violoncelo para dentro do trem. Não somente para conferir humor, mas o referido instrumento não é ao acaso, já que descobrimos que Guy encontra Miriam em seu local de trabalho: uma loja de música. Lá, ele exige um encontro de advogados para acertar o divórcio. Porém, definitivamente, os vilões desta trama são os mais interessantes personagens: Elliott faz um papel perfeito como uma mulher egoísta, interesseira e maldosa ao enganar Guy afirmando que não irá conceder-lhe divórcio para maliciosamente atrapalhar o romance entre ele e Anne. Mesmo grávida de outra pessoa, insiste em aproveitar o sucesso profissional do marido para manter o padrão de vida financeiramente confortável que ela deseja. Durante a discussão, é visível inclusive perceber uma barra de madeira na parede que separa o casal, indicando mais uma vez a maravilhosa oposição de personagens. Evidentemente, tal atitude irrita profundamente Guy, o qual atrai atenção dentro do estabelecimento pelo seu comportamento violento e, ao sair de lá por perceber o alarme das pessoas em volta que estava causando com a briga, Miriam aproveita a chance para se fazer de vítima.
Cena de Pacto Sinistro
Hitchcock brinca novamente com a tal frase que soltamos quando estamos cheios de cólera por alguém e que já foi dita anteriormente por Bruno, como mencionamos. Neste sentido, Guy é tomado pela raiva ao contar à Anne o acontecido pelo telefone na estação de trem. Prejudicado pelos ruídos altos do trem ao fundo que sobrepõem à sua fala, Guy grita ao final: “eu poderia estrangulá-la” fazendo referência à Miriam. Esta cena é repleta de simbolismo, visto que percebemos que o trem em si é um transporte que cruzou vidas pelo acaso e que agora as conecta.
Em seguida, a montagem dá continuidade à simbologia da referida frase ao trazer as mãos de Bruno isoladas no plano. Colocados em uma posição que nos remete ao ato do estrangulamento, a cena é logo desconstituída ao trazer a mãe de Bruno (Marion Lorne) fazendo a manicure no filho. A partir daí conhecemos um pouco sobre o personagem: mimado pela mãe, morando com os pais, sempre andando de roupão pelos aposentos de uma casa luxuosa. A conversa entre ambos inclusive é bastante perturbadora: a mãe vê com olhos completamente inocentes o filho quando diz que ele “é um garoto travesso” e “eu percebo que anda fazendo alguma besteira”, mas acredita cegamente em Bruno. Ao mesmo tempo, percebemos como o vilão tem um componente interessante que o faz tão louco, principalmente nos momentos em que ri histericamente, como quando vê a pintura que sua mãe fez de São Francisco, e que ele somente a interpreta como um retrato desfigurado de seu pai.
Esse gancho é o que permite mostrar Bruno chegando à cidade de Metcalf e até este ponto já sabemos o motivo da visita. Interessante notar é que no exato instante de sua chegada e portanto pelo caminho percorrido na estação de trem, os sinos e ruídos dominam os planos, como se literalmente a presença do personagem já acionasse um tipo de alarme. Então, dá-se início à uma perseguição assustadora de Bruno atrás de Miriam para colocar o “combinado” com Guy em ação.
O vilão que desde a sua casa a esperava, acaba chegando ao parque de diversões da cidade, onde Miriam e mais dois outros rapazes se dirigiriam para passear a noite. Lá, ela nota a presença de Bruno que no canto a vigia e a segue atentamente, mas interpreta-o como se fosse um flerte inocente, nem imaginando o perigo que o vilão significava. Então ela retorna o olhar com interesse. A tensão do espectador nesses momentos é despertada, não pelo fato de que nós sabemos que ela será assassinada, mas pelo suspense que é criado por meio do elastecimento dos atos narrativos subsequentes. O ritmo reflete o estado de ânimo de Bruno: calmo e concentrado. O diretor ainda brinca com o espectador quando Miriam olha para trás procurando Bruno na multidão e não o vê. A câmera que focava o fundo do campo então se volta novamente para a personagem apenas para descobrir que o homem estava ali ao seu lado o tempo todo.
Explorando a geografia do parque, Bruno segue os personagens até o carrossel onde pretendem fazer um passeio. Curiosamente, Miriam e Bruno se sentam em cavalos um atrás do outro, o que representa uma simbologia interessante, tendo em vista que em planos isolados e distintos, mas alternados pela montagem, reconstituem uma espécie perseguição de cavalgadas parecida com aquelas dos westerns. Logo depois, tal como sugerido por Miriam, todos se dirigem ao Túnel do Amor para uma volta no lago e, obviamente, o agressor também os acompanha sempre a um passo atrás de sua vítima.
Durante o passeio nesse brinquedo, por sua vez, é maravilhoso como aqui em barcos separados um atrás do outro, Hitchcock projeta primeira e isoladamente a sombra do barco dos três amigos rindo e fazendo brincadeiras uns com outros. O enquadramento que contém nada além da silhueta deles na parede, assim como o barulho da conversa e das risadas são então tomados pela sombra do barco de Bruno. Sobrepondo sua sombra sobre as demais com uma silhueta que cresce gradativamente, o clima de alegria é então interrompido pelo completo silêncio e imobilidade de Bruno, apenas para lembrarmos do que está por vir.
Antes de os barcos invadirem o enquadramento até uma das saídas que os leva a outro canto do parque, na Ilha Mágica, escutamos um grito que vem do contra-campo. Outro truque de Hitchcock para pegarmos de surpresa quando descobrimos que a origem do barulho não é de pânico, mas de cócegas que um dos amigos faz em Miriam. Ao chegarem à ilha, em meio à mais uma brincadeira entre eles, a moça se depara com Bruno. Sabemos de sua identidade, mesmo que apenas a mão do agressor apareça no canto do quadro, ascendendo o isqueiro de Guy para iluminar a face de Miriam. Em um trabalho extremamente cuidadoso Hitchcock elastece também a cena do crime para nos proporcionar alguns minutos de terror: Bruno se posiciona de costas para a quarta parede, como se estrangular Miriam também causa uma claustrofobia visual, já que inicialmente não a vemos muito bem no plano. Em um silêncio que somente é quebrado pela musica jovial e inocente do parque ao fundo, os óculos então caem no chão e uma de suas lentes é quebrada. Utilizando a câmera no ângulo em formato de íris, então testemunhamos a cena brutal do estrangulamento pela outra lente do objeto. Após alguns segundos a vítima cai no chão e desaparece do plano. Então, Bruno retira do gramado os óculos e o isqueiro e retorna para o parque. No contra-campo, ou seja, ao fundo, notamos os sons e ruídos de pessoas que descobrem a morte de Miriam, enquanto Bruno se afasta cada vez mais do local. O movimento contrário em relação às demais pessoas que se agregam para ver o acontecido desperta a atenção do funcionário que opera o brinquedo, pelo fato de que Bruno ter sido o único a voltar.
É impressionante, pois, como aquele lugar inofensivo e inocente é transformado rapidamente em um cenário de terror, subvertendo a própria natureza de “diversão” do ambiente. Podemos extrair esse sentimento inclusive pela linda fotografia do local visto do lago, no qual é repleto de contrastes que evoca escuridão e um ambiente sombrio e, portanto, contrasta com a iluminação brilhante do parque de diversões no fundo do campo.
Não tarda muito para que Guy descubra o acontecido. No exato momento em que flagramos o horário de 9:30 da noite em seu relógio, o personagem tem uma conversa descontraída e engraçada com um dos passageiros bêbado no trem a caminho de casa. Quando se aproxima da porta de sua residência, Guy é interrompido por uma voz que o chama e, no contra-campo, encontramos Bruno que não somente lhe conta do assassinato, mas também tenta persuadi-lo para fazer o mesmo ao seu pai. A conversa entre os dois é tratada tanto pelos diálogos, quanto visualmente como mais um confronto ao posicionar os personagens separados por um portão, como uma barreira que se forma entre ambos naquele instante. Além disso, os diálogos se tornam cada vez mais importantes e muito interessantes, como Bruno afirmando: “você é um homem livre agora”, entregando-lhe os óculos quebrados de Miriam. Frase esta que é repetida em outras ocasiões e que, contudo, nós sabemos que ela se torna uma grande ironia pelo fato de que Bruno agora mantém o isqueiro – que poderá colocá-lo na cena do crime – em sua posse como uma espécie garantia do trato.
Sem poder associar a autoria de Guy pelo crime e, tendo seu álibi desqualificado pela embriaguez da sua única testemunha, a polícia ainda assim trata Guy como o primeiro suspeito da lista. Haja vista a relação conturbada com Miriam e novo romance com Anne, nos convencemos de que o mocinho da trama corre perigo. Em outras palavras, mesmo sabendo de sua inocência, temos consciência de que ele teria todos os motivos para cometer o crime e este risco é plenamente crível. Dessa forma, o personagem é vigiado por dois investigadores.
Concomitantemente, Bruno não se dá por satisfeito com a recusa de Guy em matar o pai. Determinado a convencê-lo, Hitchcock usa a mera presença do vilão, assim como pequenas atitudes suas como fator ameaçador, afinal, nós sabemos até este ponto que ele é um completo psicopata. Enviando arma e plantas da própria casa pelo correio, nota-se também a presença fria e estática de Bruno ao posicioná-lo diante de um imenso imóvel em arquitetura grega e, enquanto o ambiente em sua volta é tomado por uma iluminação bastante clara, ele se mantém em um enquadramento distante em plano geral e totalmente escuro pelas suas vestimentas que fazem um contraste maravilhoso. Na sequencia, durante um campeonato de tênis que Guy está prestes a participar, presenciamos uma das cenas mais icônicas da obra quando todos acompanham as tacadas dos jogadores com a cabeça movimentando-a de um lado para o outro, salvo Bruno, que permanece com seu olhar fixo em Guy.
Apesar de se conservar em segundo plano na maioria das vezes, a personagem de Anne Morton, seu pai e sua irmã passam a ter, no decorrer da narrativa, papéis mais significativos na trama. Anne fica cada vez mais desconfiada, pois Bruno se aproxima de sua família e de seus amigos e, sem saber ainda da conexão entre ele e Guy, a câmera que acompanha o amado se alterar pela mera presença do sujeito, já nos transmite reações de suspeita por parte dela.
Logo após um jogo de tênis, Guy encontra Anne, Bruno e uma amiga que eles possuem em comum, a Sra. Cunningham (Norma Varden). Conversando sobre uma festa que Bruno também comparecerá, junta-se a eles a irmã de Anne, Barbara – aqui interpretada pela filha do diretor Patricia Hitchcock. Neste momento, executando por meio de planos e contra-planos posicionados de forma fixa vemos o rosto de Bruno que inegavelmente relembra de Miriam pela semelhança física desta com Barbara. Através de um olhar arrebatador por Robert Walker, o ator parece estar em um transe psicológico acreditando ver literalmente uma assombração. Assim, a imagem do fogo do isqueiro toma conta do reflexo na lente dos óculos da irmã e a o som do tema musical do parque de diversões surge, mas é logo trazido para a realidade da história.
Porém, esse não é o único momento em que vemos Bruno ser atormentado pela presença de Barbara. Com sua risada histérica, jeito charmoso e carismático, o personagem consegue extrair uma conversa desconcertante entre ele e a Sra. Cunningham durante a referida festa, na qual eles planejam de maneira descontraída, mas subversiva, o assassinato de seu marido. Interessantíssimo do ponto de vista narrativo, já pela experiência de Guy, Hitchcock nos faz duvidar se Bruno seria, de fato, um serial killer maníaco pelo tamanho da seriedade com que ele trata este tipo de assunto. Neste contexto, a tensão aumenta sua forma a partir do momento em que Bruno diz à senhora: “Se importa em emprestar seu pescoço por um instante?” a fim de testar a teoria do estrangulamento. Neste instante surge Barbara que testemunha a simulação. Em uma rima visual, portanto, o travelling executado e o plano/contra-plano fazem um novo confronto entre os dois personagens. A câmera foca em suas faces, com enquadramentos tão fechados e fixos que nem vemos mais a Sra. Cunningham. Dessa forma, Bruno concentra o olhar em Barbara até que a música do parque novamente surge. Quando se dá conta depois de outro transe, o agressor percebe que quase matou a senhora sufocada se não fosse interrompido pelos demais convidados em sua volta. E é claro que tal fato chama tanto a atenção, que Barbara informa à Anne que fora estrangulada por Bruno, muito embora suas mãos não estavam realmente no seu pescoço. Isso faz com que Anne consiga conectar os pontos e ao enfrentar Guy, este lhe conta tudo o que vem acontecendo entre ele e Bruno.
Guy, por sua vez, não agüenta as pressões, e tampouco deseja sucumbir à elas. Portanto, ele liga para Bruno e informa que comparecerá à sua residência, anunciando que irá executar o acordo entre eles firmado. Hitchcock, nesta oportunidade, aproveita para criar dois efeitos: um de suspense e outro de surpresa por meio do mesmo elastecimento narrativo que o diretor explora muito bem aqui. Ao anoitecer, Guy entra na casa de Bruno, já que este já lhe havia emprestado a chave. No seu interior, ele avista o cachorro da família no alto das escadas, por onde deve passar. Por meio de contrastes e sombras fortes, o suspense é sugerido pela possibilidade do comportamento do animal na presença de um estranho, o qual pode ser tanto agressivo quanto amigável. Lentamente, a câmera acompanha os passos do personagem em direção ao cachorro, enquanto este se mantém estático. Ao obter êxito em não alarmá-lo, Guy consegue passar por ele, o que gera alívio no espectador. Porém, ao chegar ao quarto do pai de Bruno, temos a surpresa de quem está realmente na cama é o próprio Bruno. Neste instante, a intenção de Guy que era a de alertar o pai acerca das atitudes de seu próprio filho, desagrada profundamente Bruno, o qual afirma já suspeitar das reais intenções do rapaz e demonstra sua insatisfação com sua suposta traição. Ele diz: “Você não deveria ter feito isso”, mas Guy sai de cena isolando o seu rival no quadro.
Posteriormente, Anne faz uma visita à Sra. Antony, mãe de Bruno, e tanta convencê-la de que ele havia assassinado uma moça e, portanto, precisava assumir a responsabilidade pelo crime. É evidente que Anne tentou persuadi-la para salvar o amado. Entretanto, percebemos que a mãe é tão louca quanto o filho, e o quanto os dois são apegados um ao outro. Hitchcock aprecia muito bem em subverter uma relação mãe-filho, algo que foi colocado mais evidencia em Psicose, anos depois. Assim, quando Bruno nota o encontro, sabendo muito bem de seu propósito, diz à Anne: “Não vou atirar em você, pode incomodar a mãe”.
Assim sendo, ele informa Anne seu plano de colocar o isqueiro no local do crime – o que faltava para polícia provar a sua autoria. O objeto visto em rima visual é imediatamente reconhecido por Anne e, acreditando ter piorado a situação, alerta Guy para que juntos elaborem um plano para deter Bruno. A partir de então, Hitchcock explora, por meio de seu trabalho na direção em conjunto com uma habilidosa montagem, o tempo narrativo pela corrida contra o tempo. Sabendo que Bruno irá comparecer ao parque para deixar o isqueiro incriminador durante a noite, Guy, por sua vez, se encontra em meio a um campeonato de tênis e precisa apressar o desfecho do jogo em três sets para chegar a tempo de impedir Bruno.
Cena de Pacto Sinistro
De maneira paralela e, portanto, com um ritmo mais acelerado dos planos, o suspense é trazido novamente pela intercalação dos atos dos dois personagens. Por meio da narração do radialista que faz a transmissão ao vivo do evento, somos informados das estratégias utilizadas por Guy para tentar terminar o jogo e também para que tenhamos noção do quanto lhe falta para sair do local. Enquanto isso, vemos Bruno saindo de sua casa até a estação de trem onde se dirige para Metcalf. Hitchcock emprega alguns pontos de humor com Bruno e o isqueiro, quando é abordado por outro passageiro para pedir fogo para ascender seu cigarro. Bruno olha, mas decide usar os fósforos que traz consigo. Os planos fixos do relógio que demonstram a passagem do tempo inquietam Guy e também o espectador, já que em um determinado momento, o rapaz não consegue vencer em três sets e tem de ficar por mais um. Em seguida, quando Bruno chega distraído na cidade, mais uma rima de sons maravilhosa é executada, na qual escutamos novamente o som alarmante dos sinos do trem. Porém, Bruno acidentalmente deixa cair o isqueiro no bueiro. Desesperado, ao mesmo tempo em que Guy tenta ao máximo vencer a última jogada, o que é nos mostrado de forma mais comprimida a fim de transmitir um frenesi, testemunhamos, em contrapartida, a lenta e torturante cena – que dura um minuto aproximadamente – de Bruno tentando recuperar o objeto. E neste caso, Hitchcock faz uma linda brincadeira com o espectador: ou seja, por mais que possa odiar Bruno e não torcer para que ele tenha sucesso em seu plano, também torcemos para que ele consiga fisgar o isqueiro – o que ele consegue.
Finalmente, Guy é vencedor da partida de tênis, mas a comemoração da vitória sequer é feita, já que por meio da ajuda de Barbara consegue distrair um pouco os investigadores, para que ele possa escapar. No entanto, ela não tem sucesso e ao ver Guy fugindo do local, eles partem atrás logo em seguida, fazendo uma cadeia interessante de perseguição: polícia vai atrás de Guy e Guy vai atrás de Bruno.
Já no trem, a imagem de Guy é quase ofuscada pelo sol brilhante e iluminado que transparece do lado de fora da janela, o que nos indica que o sol está se pondo e a noite está próxima. Elastecendo novamente a narrativa para retomar o suspense, Bruno se aproxima do Túnel do Amor, mas a fila gigantesca faz atrasá-lo outra vez. Tentando evitar a iluminação do parque e almejando permanecer na sombra para não ser reconhecido, Bruno mesmo assim desperta a atenção do funcionário do brinquedo que o viu sair do local após o assassinato de Miriam. Tendo conhecimento de sua autoria, o homem informa os policiais e, em consequência, Bruno recua e foge para se abrigar no carrossel. Guy o aborda neste momento e os dois começam uma briga que se transforma em um clímax infernal que dura quatro minutos aproximadamente.
Os dois investigadores que surgem na sequencia se encontram com a polícia local. Nesta oportunidade, o funcionário identifica Bruno e o reconhece como autor do crime, mas em um timing perfeito de humor – aproveitando a confusão da briga entre o vilão e o mocinho – os investigadores dizem: “nós sabemos” querendo se referir a Guy. Então, o disparo de uma das armas das autoridades acerta acidentalmente um funcionário que controla o carrossel e o mata. Ele cai no chão junto com o painel de controle que opera, fazendo o brinquedo girar freneticamente. Assim, Hitchcock transforma o passeio mais inocente e inofensivo do mundo em um cenário horrível. Com uma montagem acelerada, vemos todos se agrupando diante do carrossel, cuja movimentação a polícia tenta conter.
Simultaneamente, Guy e Bruno trocam socos e pontapés enquanto crianças e adolescentes gritam em pânico. Os planos se mantêm fixos e fechados para compreensão dos atos, com destaque para os chutes que Bruno dá em Guy para ele voar do brinquedo, assim como os close-ups dos cavalos que agora se tornam ameaçadores. Não bastasse a agonia do perigo de estar no meio desta loucura giratória, um homem ainda risca sua vida para adentrar por baixo do brinquedo e alcançar o painel de controle. Alternando mais lentamente e de forma estendida, Hitchcock inclusive confessou ter se arrependido de ter filmado esta parte desta forma, por ter sido tão cruel e tão real o risco do personagem.
Mesmo assim, o resultado de imprimir o terror nestas cenas é incrivelmente eficaz. Logra-se êxito em fazer parar o carrossel mais tarde, cujo plano mais aberto é executado para testemunharmos a destruição do brinquedo, feito em maquete. Ali, o funcionário do túnel do amor esclarece que nunca viu Guy no parque antes e, logo depois, em um último plano-detalhe, o investigador encontra o isqueiro nas mãos de Bruno, dando fim à trama.
Uma obra-prima e louvável em que é perceptível o cuidado e atenção aos detalhes para tornar todos os elementos em tela importantes para a narrativa, assim como imprimir o suspense e as surpresas por meio do jogo do tempo narrativo, ora prolongando-o, ora comprimindo-o.
Dessa forma, Hitchcock estuda o fato de que crimes imperfeitos não existem. Ao final, eles nunca compensam.
Eis o Mestre do Suspense.