Literatura

Entrevista com a cantora Márcia Short

Marcia Short

Confira entrevista com a cantora baiana: “Mulher, negra, pobre e artista… Infelizmente um prato cheio para os abutres!” (M.S)

Por Elenilson Nascimento

Muito ainda se fala que a Bahia é um celeiro exportador de talentos musicais, desde ícones como Caymmi, João Gilberto, Gil, Caetano, Gal, Bethânia até fenômenos de massa como Ivete, la Mercury, Virgínia Rodrigues e afins, o Estado ainda pauta muitos produtos comercializáveis para todo o Brasil. Mas assim como existem critérios de noticiabilidade para alimentar a fome jornalística, que nem sempre estão coadunadas com os princípios desta profissão, existem também, às vezes e de modo ainda mais perverso e dissonante com o estar co-existencial dos indivíduos, os critérios que agendam vozes, rostos, corpos, os possíveis “talentos” que nos são vendidos cotidianamente.

Mas existe uma coisa nesta província cheia de bajuladores que está bem longe de ser saudosismo. É vivacidade, luz criativa, simpatia e talento de uma das poucas artistas que tem uma história bacana e que conta dividi isso como poucos. E seu nome é Márcia Short. A voz surgida do movimento Axé Music, mas que muito ainda se faz presente. Márcia é um daqueles adjetivos que a gente não consegue simplificar no meio de tanta baianidade emporcalhada pelos ditames das músicas pra tocar no rádio.

Com mais de 25 anos de carreira, a trajetória de Márcia no axé se confunde com a história da Bandamel, uma das precursoras do gênero. Com voz forte e marcante, a sua carreira começou literalmente no Engenho Velho de Brotas, quando começou a interpretar músicas de ninguém menos do que Elis Regina em roda de amigos. Logo começaram os shows com voz e violão no Bar do Vandinho. No ano de 1984 promoveu o primeiro show no Cine-teatro Solar Boa Vista, o mais importante espaço cultural do bairro, e daí em diante, por conta de sua versatilidade musical e coragem passou a integrar as bandas “Os Monges” e “Papa-Léguas”. De 1989 a 1993 integrou a segunda formação da já citada Bandamel, ao lado de Robson e Alobened. E, tempos depois, também participou da Bandabah.

A carreira solo tem dois CDs gravados. O primeiro, “Márcia Short” – como a cantora diz, é seu “cartão de visitas” -, gravado em 1999, traz interpretações de músicas de Caetano, Gil e, até mesmo, Chico Anísio. O segundo é do ano de 2004 e produzido por Elba Ramalho, chama-se “Iluminada” e contém músicas de Fagner, Lenine, Angela Rorô e Araketu. Em 2013, Márcia deu um salto inacreditável para calar a boca dos puritanos com o projeto “Sapoti”, em homenagem a uma das grandes cantoras da Música Popular Brasileira, Ângela Maria (confira matéria aqui). No repertório, sem meias verdades, apresentou alguns dos clássicos que ficaram eternizados na voz de Ângela, como: “A noite do meu bem”, “Vá, mas volte” e “Um tango para Teresa”, mostrando, com sua voz potente, versátil e dona de uma rouquidão inconfundível, que seus graves e agudos entoa tanto no samba-reggae, axé ou na MPB. E artistas desse calibre são cada vez mais raros!

Marcia Short

Elenilson – Não são todos os artistas da Bahia que podem comemorar os 30 anos de axé com integridade, talento e carisma – mesmo não aparecendo toda hora na TV Bahia. Como você avalia o seu percurso?

Márcia Short – Eu… (risos) sempre fui guerreira e graças a Deus sou bem recebida nas TVs de minha cidade. Em geral, sempre tive apoio da mídia local para meus projetos. Infelizmente homenagens não pagam contas. Ainda temos muito o que rever sobre esses 30 anos.

Elenilson – Depois de tanto tempo de estrada, está feliz vendo aonde conseguiu chegar?

Márcia Short – Me sinto disposta a continuar, me sinto feliz pelo espaço conquistado.

Elenilson – Você tem uma história muito íntima e rica com a Bahia. Nesses anos de carreira, como avalia a participação do público soteropolitano na sua trajetória?

Márcia Short – Este é um povo maravilhoso! Me sinto abraçada, acolhida e respeitada pelo público. Este é o meu sucesso: sair pelas ruas e receber palavras e gestos de carinho por todos os lugares onde ando.

Elenilson – Alguma lembrança muito marcante?

Márcia Short – Muitas! Dias desses, ouvi uma menina cantando uma música que gravei há muitos anos e ao final ela falou do significado da minha presença ali ouvindo-a e foi emocionante perceber o efeito de uma referência. Me senti lisonjeada.

Elenilson – Tem uma coisa que me incomoda muito com relação aos artista da Bahia: a maioria não tem um pingo de engajamento com nada em relação aos nossos problemas diários, sempre cruzam os braços ou não têm opinião formada sobre nada. Já deixei de fala com alguns por ter percebido que só estão precocupados com as suas carreiras, com os seus cachês e o fã, admirador e sei lá mais o quê que se f… Basta de mediocridade musical. A trilha sonora do país hoje não pode continuar sendo o lixo que atinge o cérebro, polui o coração e atrai as moscas varejeiras lambedoras de jabá. Como você avalia esse aspecto ou também acha que artista não pode ter uma opinião sobre uam greve de 115 dias dos professores, ou sobre o extermínio que a polícia preta está fazendo nas periferias com os igualmente pretos?

Márcia Short – Veja bem… (risos) lá vem você me botar no fogo! A coragem tem um custo alto, nem todo mundo pode ou quer pagar. Vai ver que o pessoal tem medo de se colocar. Não estamos numa democracia de fato. Se falar muito fica de fora e querer isto de alguém é muita coisa. Eu falo o que penso, sempre falei! Quanto ao lixo cultural, enquanto houver quem consuma ele estará aí. Independente de jabá e outros… A mudança é mais delicada, é cultural!

Elenilson – Você, ao lado de Will Carvalho e Margareth, você é uma das poucas vozes na Bahia que vale a pena escutar e divulgar. Você é de uma geração que, na década de 80, começava a cantar em barzinhos e depois se destacava em cima de trios. Hoje um monte de meninas saídas de academias estão mais preocupadas em malhar os glúteos, fazer sites cheios de fotos, aparecer em programas espirra sangue e twuitar besteiras para ter seguidores do que cantar de verdade. Essa é a tal evolução do axé?

Márcia Short – Isto não é nada, meu caro… nem quero dar ibope… Sou uma cantora de verdade e só gosto das minhas iguais. Meia boca não é comigo! (risos)

Elenilson – Em que momento da sua carreira percebeu que havia se tornado famosa?

Márcia Short – Não sou famosa!

Elenilson – Em algum momento se deslumbrou com a fama?

Márcia Short – Não sou famosa!

Marcia Short

Elenilson – Em 2012, você desabafou na rede dizendo que queria ir embora de Salvador. Ainda pensa assim?

Márcia Short – Penso. Amo este lugar, sou daqui, porém a nossa Bahia (Ba = Pai) e (hia que soa Yá = Mãe), na língua Iorubá. Mas algumas ações nos fazem enteados, criados por uma madrasta que não gosta da gente! Aí a vontade de ir embora vem forte!
Elenilson – O axé é considerado uma música menor pela crítica, apesar de popular. O que acha disso?

Márcia Short – Despeito.

Elenilson – Esse tipo de mesquinharia te incomoda?

Márcia Short – Não. Tenho meu f***-se ligado.

Elenilson – Nos anos 90, você foi uma das vozes marcantes à frente da Bandamel, colecionou discos de ouro e emplacou sucessos do grupo que até hoje são tocados por artistas da nova geração. O que fez você ter abandonado a banda?

Márcia Short – O ciclo se encerrou, era hora de mudar. E mudei!

Elenilson – Já sofreu algum tipo de preconceito?

Márcia Short – Sim. Mulher, negra, pobre e artista… Infelizmente um prato cheio para os abutres! Mas sou maior que tudo isto, levanto o nariz e vou embora. E no meu pescoço ninguém pisa! (risos)

Elenilson – Quem é a maior cantora do Brasil?

Márcia Short – Tenho algumas referências: Angela Maria, Elis Regina. Maria Bethânia, Gal Costa, D. Coleta de Omolú, Ebome Delza, estas são minhas estrelas!

Elenilson – Existe mesmo amizade entre os cantores baianos ou querem mesmo ver os colegas pelas costas?

Márcia Short – Existem amizades sim. Claro!

Elenilson – O que você achou da minissérie “O Canto da Sereia” (Globo), baseada no livro de Nelson Motta. Achou que aquilo contribuiu em alguma coisa para a cultura baiana?

Márcia Short – Eu não assisti não… mas confesso que andei assustada com a ideia de alguém dar um tiro na cantora em cima do trio… rolou um sacizinho… (risos)

Elenilson – A Isis Valverde foi uma boa escolha, mesmo com excelentes atrizes-cantoras na Bahia?

Márcia Short – Rapaz… nunca vi a moça cantando…

Elenilson – Na época da minissérie o clima não foi dos melhores nas redes sociais do demônio, pois algumas cantoras de axé parece que não gostaram nada da forma como foram, segundo elas, retratadas. Num dos capítulos, um personagem chegou a dizer que as estrelas baianas só fingem se amar diante das câmeras, mas se comem nos bastidores. Coisa que a gente sabe muito bem que rola. Nas redes sociais pipocaram montagens com os rostos de Daniela, Ivete e Claudia Leitte, apontadas como possíveis “assassinas” da personagem, morta por um tiro no alto do trio elétrico em pleno Carnaval da Bahia. Como você encara essas notícias?

Márcia Short – Morro de rir dessas coisas e acho que elas também. Odeio fofoca… não me meto nisso.

Marcia Short e Ivete Sangalo

Elenilson – O seu show em homenagem a Angela Maria foi uma das melhores coisas que eu assisti nos últimos tempos. Como surgiu a ideia de produzir um espetáculo com essa qualidade e totalmente diferente do que os baianos estão acostumados?

Márcia Short – Adoro Angela Maria, já falei isto. Então, me cerquei de parceiros como Gerson Silva, Andrezão Simões e uma equipe de músicos e técnicos geniais que abraçaram a ideia. Agora, busco apoio para retomar o projeto e pagar as pessoas. Temos o projeto aprovado em leis de incentivo, mas não conseguimos apoio, infelizmente, continuamos tentando e vamos conseguir!

Elenilson – Eu tenho os CDs “Acústico Bahia”, da Patrícia Costa, com versões desplugadas do axé, algo parecido você também fez em 2011. Como foi essa experiência?

Márcia Short – Fiz em 2009… e foi maravilhoso. Neste projeto, conto com grandes músicos, na fase inicial a direção foi de Adson Santana e nos dias de hoje tenho Clodoaldo Lima e uma equipe brilhante! E eu não despluguei do axé, apenas mexi nos arranjo e sonoridade.

Elenilson – Ainda tem algo que não tenha conseguido conquistar?

Márcia Short – Muitas coisas meu caro… Muitas coisas… (risos)

Elenilson – O governador do Ceará, Cid Gomes, foi investigado por ter pago 650.000 reais à Ivete por um showzinho na inauguração de um hospital. Muito dinheiro, não? Mesmo sendo a média do cachê dela, ainda assim, é bastante dinheiro. As pessoas questionam se o governo não deveria ter gasto com melhorias para a população. O que pensa a respeito?

Márcia Short – Como você mesmo disse é a média dela. E ele pagou porque quis! Cabe ao povo questioná-lo. A artista nada tem haver com isso.

Márcia Short num trecho da temporada do show Sapoti, no TCA

Elenilson – Isso é um elogio, mas o que você toma? Pois você tem a mesma cara de 20 anos atrás. Já fez plástica?

Márcia Short – O que eu tomo? (risos) Nem te conto… (risos) Fiz uma pequena correção no abdômen. E no rosto, nada por enquanto.

Elenilson – O que ainda podemos esperar da Márcia Short?

Márcia Short – Tudo, meu bem! Estou viva e em movimento! Vou seguir com minha arte, minha arma é musical e sempre será!

Elenilson Nascimento – dentre outras coisas – é escritor, colunista do Cabine Cultural e possui o excelente blog Literatura Clandestina

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