Uma História Da Cidade Da Bahia
“Para o Estado e a Igreja, ideias e livros era, em princípio, sinônimo de inquietude espiritual, de incitação ao questionamento da ordem estabelecida, de subversão…” (Antônio Risério)
Por Elenilson Nascimento
Como alguns amigos leitores já sabem, recentemente tive um projeto de livro (para a minha surpresa) aprovado num desses editais culturais. Editais que muitas vezes só privilegiam as antas, múmias e os lambe botas das panelinhas literárias. Um livro desaforado para contar uma história dessa contemporânea Cidade do Salvador da Bahia do século XXI, que parece não ter começado, sobre um jovem negro, da Liberdade, jornalista, desaforado, meio arruaceiro, atevido, obstinado, inteligente, mas morrendo de tristeza, o Tonico Ferreirinha, numa terra racista, preconceituosa e excludente.
Com eventos reais, mas sem citar nomes por causa de problemas judiciais, a história é narrada com elegância (ou nem tanto), cheia de acontecimentos recentes, com ironia e com um pouco de humor para esconder a minha vergonha. Vergonha de ser baiano nessa terra infeliz. Vergonha de ser escritor num país de poucos leitores. Uma história triste sobre esse colonialismo travestido de turismo e alegria, onde pretos e pobres estão na marginalidade, sendo mortos pela polícia, adotados pelo tráfico ou no subemprego. Um livro para debater um pouco a farsa da indústria da fé, o elitismo no carnaval, essa imprensa que não informa nada, sobre a Educação que deseduca desse (des)Governo assistencialista e mentiroso, sobre o povo de santo (*Caleb, o escombro espiritual do Ferreirinha, um espírito confuso que acha que é um demônio que quer fazer as pazes com Deus), mas também do desleixo, do “assim tá bom”, do qualquer jeito… Da falta de profissionalismo, do descompromisso, da malandragem descarada pro mal… meio agridoce… de muitos baianos.
Acontece que os organizadores do tal edital (que nada sabem e não querem saber) parecem que acreditam que na Bahia não existe pretos, pois exigiram que além de eu prestar homenagens a alguns gestores públicos (nem se me pagassem!) que eu deveria “embranquecer” o personagem. O resultado vocês já devem desconfirar! Tem uma frase do Tonico que é mais ou menos assim: “A gente já acorda fazendo escolha. E passa o dia inteiro escolhendo: que roupa vai colocar, que faculdade vai ter que fazer, com quem vai trepar, aonde ir… E são escolhas assim, aparentemente pequenas, banais, do dia-a-dia, que vão treinando o meu “escolhômetro”. Saber escolher não é mole não. É, no mínimo, uma tremenda responsabilidade. Mas trocaria tudo isso por um dia pra ser feliz!” É bem isso mesmo!
Mas, nas minhas pesquisas para o meu livro, seis obras foram fundamentais para eu continuar escrevendo sobre essa Bahia leprosa: “Candomblé – Tradição e Mudança”, de Julio Braga; “Suor”, de Jorge Amado; “Pátria Despedaçada”, de Valter Goulart; “Um Longo Sonho de Futuro”, de Lima Barreto, “Salvador dos Contos e Encantos”, de Geraldo da Costa Leal, além de “Uma História da Cidade da Bahia”, de Antonio Risério. E é justamente esse último livro que merece uma resenha matadora e todo o meu respeito, pois confesso que não gosto muito desses livros documentários, muito menos escritos por autores financiados pela Secretaria de Cultura do Governo, Fundação Casa de Jorge Amado e afins. Mas como esse livro do Risério me foi recomendado por várias pessoas confiáveis, resolvi arriscar e foi uma descoberta no meio de tantas coisas rasas lançadas por esses formadores de opiniões sem cores e sem letras. No prefácio, o autor explica que a obra foi lançada anteriormente, no ano de 2000, numa edição luxuosa, ricamente ilustrada e distribuida como brinde (para quem mesmo?). Agora, Risério afirma que essa nova edição é mais completa e acessível ao público, mesmo não tendo uma única foto. Só queria entender como o público tem acesso a obra ou de que público ele fala…
Para o antropólogo Roberto Da Matta, existem duas fórmulas indissociáveis para se compreender como são desenvolvidas as pesquisas antropológicas. De um lado, é preciso transformar o exótico em familiar e, de outro, o familiar em exótico. Mesmo indissociáveis, creio que é o segundo movimento que mais se aproxima ao que o Risério vem realizando com as suas inúmeras pesquisas e dezenas de trabalhos publicados sobre a Bahia – mesmo eu não tendo gostado muito do seu “Ensaio Sobre o Texto Poético em Contexto Digital”.
Ainda no prefácio, Risério, que não é bobo nem nada, avisa aos desavisados que o livro “não se destina aos que já sabem – e muito menos aos que julgam saber (…) Não se trata, portanto, de objeto enviado a reduzido e erudito grêmio de especilaistas” (*quero acreditar que ele mandou um recado para alguém da província!), além de ter citado o Isaac Asimov, autor do maravilhoso “Eu, Robô!”. Perfeito! Só não concordo quando ele classifica a sua obra como “superficial”. Queria eu que todos os arrogantes professores de História da rede pública e particular, os deslumbrados da Ufba e genéricas, o bostético do Jorge Portugal, os sociólogos de autoajuda, os políticos descomprometidos e demais parasitas do zoológico baiano tivessem acesso a esse “superficial” com tanta fome quanto eu!
“Uma História da Cidade da Bahia” parece uma enciclopédia cheirando a gasolina – riscou um fósforo… pegou fogo! Um tijolão com as suas 619 páginas que o leitor tem que ter muito fôlego para não querer sair por aí batendo em gente, ou melhor, em professores que nunca se prestaram ao trabalho de contar essas histórias sobre essa Bahia estuprada pelos portugueses e dilacerada pelas mentiras dos poderosos. “Compare-se a Bahia caymmiana com o que se passava no Brasil Meridional. Costumo dizer, a propósito, que enquanto o Centro-Sul ia a todo vapor, a Bahia era um barco a vela.” (p. 512)
DA ALDEIA AO ENGENHO – O livro é dividido em cinco capítulos que se você espremer é bem capaz de sair sangue. Logo na primeira parte, chamada pelo autor de “experimental”, sobre o século XVI, Risério escreveu que “ninguém sabia ao certo no que tudo aquilo poderia dar.” (p. 19). Contudo, quase abandono a leitura nas primeiras páginas. Achei o excesso de informações bem clichê, onde o autor me pareceu bem mais preocupado em citar suas referências do que falar sobre essa Salvador esquecida. E para que eu quero saber o que seriam sambaquis? Foi quando o autor começou a explanar sobre a chegada dos primeiros portugueses, franceses e espanhóis no litoral da Bahia, sobre as guerras entre os tapuias, tupinaés e tupinambás; sobre a Inquisição em Portugal; sobre os seres extranaturais (Curupira, Ipupiara e Boitatá – só faltou citar o afro-deficiente que fuma maconha(?) e adora dar sustos); sobre a nudez e a sexualidade dos índios que experimentavam muito cedo a iniciação sexual – “Os tupinambás praticavam uma espécie de adestramento, uma didática erótica que introduzia pré-adolescentes nos prazeres do sexo…” – p.42) e o homossexualismo foi praticado sem maiores problemas (“Aqueles grandes e temidos guerreiros tupinambás gostavam de acariciar indivíduos do mesmo sexo” – p.46); e quem iniciava os rapazitos e mocinhas das aldeias eram os mais velhos. E, finalmente, ainda no primeiro capítulo, Risério ministra um aulão sobre o Caramuru – um dos personagens mais interessantes da nossa província. Segundo o autor, Diogo Álvares Correia, o Caramuru = moréia, era um jovenzito, entre 14 e 18 anos, ordinário(?), que esbarrou por essas bandas (no Rio Vermelho) como náufrago, molhado e faminto, que depois de integrado aos tupinambás, acabou se casando com a índia Paraguaçu. Interessante como o autor afirma que os principais responsáveis pelo extermínio do índios foram os próprios português: “Os soldados do rei cuidaram da desestruturação política, social e econômica dos agrupamentos indígenas. Os soldados de Cristo, da desintegração espiritual…” (p.93) Maravilhoso a forma que a mestiçagem na Bahia é descrita: “A sociedade que se formou na Bahia, ao longo do século XVI, foi uma sociedade em processo contínuo de mestiçagem, apesar de todas as desigualdades existentes…” (p.103)
SÉCULO BARROCO – O capítulo 2 é sobre o século XVII, de mentalidade barroca, “um tempo de fortes contrastes, de fome, de peste e de riqueza”. E também o tempo de Antônio Vieira, então com 18 anos, muitos antes de ele virar um conselheiro real, diplomata, preceptor de príncipes, pregador da palavra, perseguido, condenado pela Inquisição e nome de colégio burgês, descrevendo a invasão holandesa com as suas “trombetas bastardas” e seus “escudos vermelhos publicando sangue” e pensando em Portugal como “instrumento de Deus” nas vitórias contra as nações bárbaras. Risério descreve o Tribunal do Santo Ofício que se estabeleceu em Portugal, em 1536, no reinado de D. João III, um fanático religioso, o mesmo monarca que ordenaria, muito mais tarde, a construção de Salvador; além do triste episódio das fogueiras para os hereges e cristãos nada novos, as primeiras implantações de engenhos de cana-de-açucar por Martim Afonso de Souza naquele tempo de ostentação e aparências. E nessa sociedade seiscentista baiana a presença de Gregório de Mattos – “Embora gostasse de cheirar flor, não era flor que se cheirasse…” (p.180) – com os seus poemas satirizando os pedófilos, digo, pseudofidalgos.
Outro assunto que chamou muito a atenção foi a introdução de instrumentos musicais lusitanos, sobretudo, a viola, flauta e cravos. Risério cita o violão como uma coisa de “negros e patifes”, como se pode conferir no livro de Lima Barreto – só esqueceu de citar o título do livro – além de se colocar contrário a opinião de FHC quando o sociólogo e ex-presidente diz que “os escravos foram testemunhas mudas da História…” (p.150). Curioso é a afirmação do Risério quando diz que os escravos eram mestres na mentira: “Fingir enfermidades e dores, disfarçar afetos, mascarar ações. O escravo era um expert em simulações…” (p.151). Gilberto Freyre também é citado quando Risério aborda o suicídio: “…o banzo foi a ante-sala do suicídio…” (p.152). Assuntos como o tráfico em massa de escravos, o culto do calundu, o catolicismo como instrumento de controle social, a música negra cruzando o Atlântico e a Ordem Terceira de São Francisco do Carmo que já nasceu rica são abordados de forma magistral. Mas, nesse capítulo, o que mais chamou a atenção é a parte sobre samba, sexo e preguiça. Risério afirma que o lundu e a umbigada eram convites explícitos ao sexo: “Lendo tais descrições, ficamos até sem entender porque, hoje, alguns se mostram espantados com as performances de grupos locais que fazem fortuna em torno do tchan…” (p.172); e que dois (só? tem certeza disso?) dos nossos governadores, Diogo Botelho e Câmara Coutinho, eram gays!
À MARGEM – O capítulo 3 é sobre o século XVII, momento de consolidação de Portugal em Salvador, onde os brasileiros começavam a querer por fim a dominação portuguesa, surgem também as primeiras revoluções populares contra a escravidão, os jesuítas são expulsos do Brasil, mas Salvador perderia o posto de capital colonial para o Rio de Janeiro. A parte mais interessante, nesse capítulo, é definitivamente quando Risério afirma que “os livros eram produtos perigosos”: “O livro não era visto como algo para ser lido, mas como objeto ornamental, enfeite com letras douradas na lombada – elemento importante, sim, mas da decoração doméstica…” (p.220). Não muito diferente dos dias de hoje, não é mesmo? Saber francês também era algo subversivo! “Apesar da repressão oficial, a muamba ideológica alcançava os principais pontos da colônia…” (p. 223) Mas nessa Bahia, por volta de 1764, os quilombos já eram uma realidade, onde os quilombolas passaram a raptar escravas, levando-as para viver com eles. Risério conta que o pau quebrava nas ruas com uma população amotinada e várias depredações em casas comerciais: “Coisas assim se passavam numa cidade que, além de suja e corrupta, cheia de mendigos e vadios, era muito violenta…” (p.262)
SANGUE, SUOR E CULTURA – O capítulo 4, já sobre o século XIX foi, sobretudo, o tempo de enfrentamentos armados. “A conquista da autonomia nacional significou mais de um ano de guerra, até que as forças do chamado Exército Libertador triunfassem…” (p.293) “Na Bahia houve guerra – cerco, emboscada, fuzilaria, baioneta calada. O preço da autonomia foi pago com sangue…” (p.314) A descrição sobre a derrota da Sabinada foi um dos pontos mais interessantes do livro e as informações sobre o seu líder, o médico Francisco Sabino, me fez querer uma passagem mediúnica de primeira classe para o passado: “Mulato sofisticado e subversivo, exibindo os seus grandes olhos azuis, era homossexual. Ou melhor, em matéria de sexo, nada lhe era estranho. (…) Surpreendido em plena prática homoerótica, investiu contra a sua mulher, empunhando uma faca…” (p.348) Gostei dele!
TERRA EM TRANSE – O último capítulo é sobre o século XX que, segundo Risério, parece partido ao meio, onde negromestiços se afirmam como tais. O texto sobre a “invenção da praia” é maravilhoso! “No caso do Brasil, podemos dizer que o Rio de Janeiro imitou a França e que a Bahia imitou o Rio…” (p.479) Risério descreve a Revolução de 30 na Bahia – “Formada pelos tenentes, que lutavam contra a oligarquia, e pelos oligarcas da Aliança Liberal…” (p.485) – além do imobilismo durante as primeiras décadas: “Seria uma cidade tosca, atrasada, perdida no tempo, à margem do movimento vivo do mundo. E, por isso mesmo, motivo de acanhamento, e até de vergonha, para os seus habitantes mais esclarecidos…” (p.491) Risério ainda conta que o comunismo chegou atrasado na Bahia. E foi assim que se deu o encontro do comunismo com o candomblé: “…nas feiras, nos mercados, nas festinhas juninas, nas pensões de raparigas, nos saveiros, nas moquecas da Rampa do Mercado, no sarapatel nas Sete Portas, nas casas-de-santo, nos pejis dos orixás e na luta antifascista, irredutível…” (p.501)
O texto sobre a construção da Fonte Nova e os primeiros jogos de futebol no Campo da Pólvora ficou realmente interessante (*foi na Bahia que se realizou a primeira partida de futebol que podia ser feita com qualquer coisa: pano, bucho, papel amarrado com barbante, de bexiga de boi,laranja ou até mesmo com uma meia feminina recheada de folhas de jornal), até mesmo para aquelas pessoas que não têm nenhuma paixão por esse esporte. O mais interessante foi o preconceito declarado pelos primeiros clubes de futebol: negros não jogavam! “Naquela época, jogador nenhum era tão evangélico assim. E a macumba corria solta. Gerando, aliás, a célebre frase de João Saldanha: se macumba ganhasse jogo, o campeonato baiano terminava empatado” (p.511) Risério ainda fez questão de lembrar que a Ufba já viveu tempos melhores, onde a inteligência prevalecia; da expulsão da Bahia da arquiteta Lina Bo Bardi, chamada de “puta” e “lésbica”; a importância da Petrobrás na configuração de uma nova realidade baiana; o progresso do Pólo Petroquímico; a destruição do Recôncavo; os tropicalistas invadindo o Brasil; ACM e a falência das oposições.
Achei o espaço dedicado ao carnaval com gosto de quero mais, mas recordar que um dia a Bahia já viveu isso tudo me remeteu a um tempo onde eu gostava de ir na Avenida Sete. “Note-se que as manifestações afrocarnavalescas do final do século XIX não eram vistas por igual pelos porta-vozes da cultura dominante – mas, sim hierarquizadas…” (p. 563) E vai além na ditadura do mamãe-sacode: “Cantoras de origem e formação diversas se transformam em clones umas das outras. (…) De qualquer modo, em meio à padronização mcdonaldiana da axé music, tivemos o salto mestiço criativo dos tamboresdo Olodum e das timbaladas do Carlinhos Brown” (p.568) Mas, segundo o autor, como sempre, “…a Bahia ficou de fora nos primórdios da industrialização do país, ainda quando o Estado brasileiro não possuía um projeto eficiente”.
Fiquei realmente fascinado com a história de Agripino Nazareth, o verdadeiro líder trabalhista dos anos 20; com a invenção da praia – que tem somente cerca de um século de existência – e o melhor, e que eu sempre soube: praia foi também, a princípio, coisa de pobre! Engraçado é quando Risério confessa não saber o significado da palavra “mazumbala”, no poema de Gregório de Mattos, ou quando cita um tal delegado Pedro Gordilho (o Pedrito), célebre perseguidor de terreiros de candomblé. Mas deve ter sido mesmo maravilhoso, na Bahia de outrora, um movimento de populares atacando o jornal A Tarde, o ainda sentinela do conservadorismo local e também a Secretaria da Segurança, tendo sido recebidos a bala, mas que levou o Pedrito a se esconder na casa do arcebispo. E o caso do Simões Filho sendo surrado no Corredor da Vitória a mando de Getúlio Vargas por fazer oposição ao então governador Juracy Magalhães. Outra história interessante diz respeito a Igreja que apoiava o Governo Vargas e que depois da Revolução de 1930, a relação entre Igreja e Estado se tornou especialmente íntima. Não por acaso que em 1931 inaugura-se a estátua do Cristo Redentor: símbolo de uma aliança.
O penúltimo texto é sobre o ser negro hoje na Bahia que, por sinal, achei muito demagogo. Um texto que tinha tudo para fechar o livro com um tapa na cara dessa sociedade fútil, preconceituosa e narcisista. É muito fácil chamar negros de preguiçosos, marginais e que vivem eternamente abaixo da linha da pobreza quando se olha de cima e com referências dos amigos intelectuais que nunca colocaram os pés na lama. Mas o Brasil nem de longe parece querer mudar essa situação. Como um livro desse não é estudado nas universidades? Como um livro desse sequer parece ter chamado a atenção dos jornalistas sem opinião dessa província? Como um livro desse não foi motivo de filas nas livrarias? Ainda existem livrarias em Salvador? O que significa mesmo ser negro numa cidade racista como Salvador? Viver discriminado? Sem oportunidades? Vivendo como ratos nas encostas que só agora o Governo diz que “faz mais”? Contudo, o racismo que existe em Salvador – não só contra as pessoas de pele negra – herdado do tempo do Império português constitui-se num crime contra a igualdade de todos. O estudo de Risério nesse “Uma História da Cidade da Bahia” parece querer gritar muito mais do que os negros cadastrados em listas de sindicatos. A história da África e dos africanos, a luta dos negros na Bahia, a cultura negra sendo vilipendiada, o negro na formação da sociedade nacional resgatando a sua verdadeira contribuição nas áreas social, econômica e política, tudo parece jogado ao esquecimento. O que representa o 20 de Novembro? Somente a morte do Zumbi, líder do Quilombo de Palmares, na Serra da Barriga, no atual estado de Alagoas, que virou estátua na Praça da Sé?
No ano de 2012, a presidenta que anda afundando o Brasil com a sua incompetência sancionou a Lei de Cotas no âmbito do ensino federal, e o que isso mudou com relação à reparação dos negros na nossa sociedade? Nada! É preciso estar sempre atento para o significado da palavra preconceito – referente ao campo da opinião pessoal ou ao pensamento e não de conduta – pois é diferente do significado de discriminação que se situa no campo da ação. O livro de Risério é demasiadamente fundamental, mas peca quando valoriza somente as referências já tanto usadas de autores como Jorge Amado, João Ubaldo (*dizer que o livro “Viva o Povo Brasileiro” é uma obra hibrida foi demais para a minha cabeça) e afins, como se outros menos conhecidos, mas tão fundamentais nesse processo não tivessem nenhuma importância. O preconceito também se manifesta do outro lado da corda. Um outro exemplo é quando o nosso admirável escritor paulista Monteiro Lobato, atualmente muito criticado por profissionais letrados e ativistas desenformados do Movimento Negro, notadamente por vislumbrarem (sem nenhum conhecimento de obras literárias) em livros infantis “Caçadas de Pedrinho ” e no conto “Negrinha” conotações racistas; eu, pessoalmente, não concordo com nenhuma das observações. Talvez por isso eu tenha demorado em descobrir “Uma História da Cidade da Bahia”, do Risério. O Brasil foi o último país das Américas a abolir a escravidão de pessoas, mas esse triste período da nossa História deixou marcas profundas em nossa cultura. Nós nem de longe vivemos ainda hoje numa real democracia racial. Essa é apenas uma ilusão de muitos, tal qual nossa tão lembrada cordialidade, palavra derivada de coração. Risério nesse capítulo poderia ter quebrado os ossos para falar mais desse preconceito racial que está inoculado nas mentes dos brasileiros: não o vemos, mas sentimos sua presença em nossa vida cotidiana, pelo menos eu, em casa, na mídia, no comércio, no trabalho, nos ambientes de lazer, nas escolas, nas igrejas, nos meios de transporte etc. Identificá-lo e denunciá-lo é dever diário que cabe a cada um de nós. E o livro, em parte, cumpriu esse papel.
Como bem registrou o polimata Gilberto Freire em “Casa Grande e Senzala” (não morro de amores por esse livro!), publicada em 1933, nossa miscigenação iniciou-se na base de brutal violência sexual cometida por homens europeus contra as mulheres indígenas e negras escravizadas. Até hoje, o racismo que mais pesa é sobre as mulheres, pois numa sociedade patriarcal/machista como a nossa, todas as mulheres são socialmente subestimadas, e no caso das mulheres negras, o preconceito e a discriminação pesam duplamente. Há um filme, “Quanto Vale Ou É Por Quilo?”, dirigido por Sérgio Bianchi, lançado em 2005, que é uma livre adaptação do conto “Pai contra mãe”, de Machado de Assis, entremeada com pequenas crônicas do pesquisador Nireu Cavalcanti sobre escravidão no Brasil, que revela as mazelas, dores, desrespeitos e contradições de um país em permanente crise de valores. Por tanto, o livro de Risério nos mostra que o povo negro já nos ensinou muito nos mais variados campos do saber: agricultura, culinária, música, dança, esportes, ciências diversas, Direito, Literatura etc. Mas senti muita falta de nomes como Machado de Assis, Luiza Mahin, Lima Barreto, Luiz Gama, Tobias Barreto, A.F. Cesarino Jr, Milton Santos, Maria Carolina de Jesus, Cruz e Sousa, Carlos Marighela, Pixinguinha, Ruth de Souza, Carmen Costa, Paulo Moura, Zezé Motta, Alaíde Costa, Nei Lopes e uma infinidade de gente. E antes de terminar, gostaria de mencionar uma música brasileira, a qual é bem pertinente ao tema. É de autoria do compositor brasileiro Billy Blanco e intitula-se “A banca do Distinto”. Ouça a gravação na voz da nossa genial Elza Soares. Quanto a mim, já que o exemplar usado para fazer essa resenhar foi de empréstimo de um amigo querido, acho que terei que me prostituir para ter dinheiro para comprar o meu “Uma História da Cidade da Bahia”. Em suma, para terminar, a minha reverência ao Antônio Risério, um trechinho do meu livro censurado, mas que vai se chamar “Tarja Preta”: “A Bahia do século XXI é uma espécie de desova de mortos sociais na frente de olhos perplexos, pois brasileiros são crédulos e céticos quando se trata das dores do Nordeste. E nessa caixa preta de sentidos e de um certo estigma sobre ser negro, liberdade ainda é uma palavrinha triste na estância da alma, uma espécie desvio moral.”
Elenilson Nascimento – dentre outras coisas – é escritor, colaborador do Cabine Cultural e possui o excelente blog Literatura Clandestina