Filme Kardec
Baseada na biografia do seu principal teórico, Kardec traz uma dicotomia entre fé e razão, mas também permite analisar o Cinema como meio de doutrinação
Por João Paulo Barreto
É curioso observar o cinema como veículo de evangelização. Os exemplos são diversos. Ao divulgar sua sádica e visceral abordagem dos últimos passos de Jesus em A Paixão de Cristo, por exemplo, o cineasta Mel Gibson disse, em entrevista concedida em 2004, que sua intenção com o filme era justamente a de espalhar o evangelho católico.
Corta para 2018 e Nada a Perder, cinebiografia de Edir Macedo, pastor evangélico e dono da Igreja Universal do Reino de Deus, chega aos cinemas em uma estratégia de lançamento até então inédita de manter-se em cartaz através da compra de ingressos em sua totalidade para que os cinemas mantivessem o longa disponível independente de haver público presente ou não nas salas. O filme contava até com uma pregação evangélica real feita pelo próprio pastor durante a sua projeção.
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Entre uma abordagem religiosa e outra, nos casos citados, a católica e a evangélica, o espiritismo, que já havia tido, nos anos 1990, sua inserção midiática na TV através da Rede Globo e a novela A Viagem, trouxe em 2008 uma de suas primeiras incursões cinematográficas com a biografia do médico brasileiro Adolfo Bezerra de Menezes, um dos expoentes da doutrina. Seguiu-se com outra cinebiografia, a de Chico Xavier, maior símbolo da doutrina no país, passando por uma continuação intitulada As Mães de Chico Xavier e, finalmente, chegando a Nosso Lar, obra que abordava a ideia do paraíso pós- morte dentro da doutrina codificada pelo professor francês Hippolyte Léon Denizard Rivail, também conhecido como Allan Kardec, durante o século XIX, na França. Dirigida por Wagner de Assis, a produção trazia os preceitos espíritas acerca da vida após o desencarnar (para usar um termo específico da doutrina) na trajetória de seu protagonista, André Luiz, um homem que, ao falecer, acorda ainda experimentando sensações atreladas à vida. Sucesso de público, a obra viria a popularizar os ensinamentos da doutrina espírita através do cinema, o que nos traz à Kardec, novo filme do mesmo Wagner de Assis que, baseado na biografia escrita por Marcel Souto Maior, foca na origem do espiritismo através da história do seu maior teórico.
EMBATE RELIGIOSO
Apenas no inicio deste texto, foi possível citar cinco filmes nacionais e um estrangeiro deste século com um recorte religioso no sentido de oferecer, a seguidores ou não, uma visão dos preceitos que defendem através de uma mídia de amplo alcance, como é o caso do cinema. Convém observar que todas as religiões citadas são de fundação judaico-cristã, preconizadas em sua maioria por uma classe que, hoje em dia e no Brasil principalmente, representa um domínio político e social em constante ascensão. Por essa razão, é pertinente observar que são bem raros exemplos de filmes que abordem a religião como símbolo de resistência, seja contra a influência cristã e eurocêntrica ou contra formas com origens colonizadoras em meios de criação de dogmas. Vale citar apenas duas, no caso Jardim das Folhas Sagradas, de Pola Ribeiro, ou filmes dirigidos por Nelson Pereira dos Santos, como O Amuleto de Ogum, ambas abordando a religião de matriz africana como uma resistência a séculos de influência catequizadora.
Sendo assim, foi com curiosidade que observei em determinado momento de Kardec – o filme um embate entre o professor francês e um padre católico dentro de uma cela de prisão como um denotar exato da principal premissa de análise tanto do filme quanto dessa abordagem crítica. Na cena em questão, o representante católico afirma que os dogmas de sua religião hão de prevalecer fazendo cair no esquecimento a doutrina estudada por Léon Denizard. Em sua réplica, o professor aposentado diz que encontrará o padre no pós morte, argumento ironizado pelo católico. Tal discussão simboliza de forma eficiente a ideia da religião como uma busca do domínio do pensamento das massas, uma vez que ambos crêem em suas verdades e não querem testemunhar a perda de força que estas verdades venham a possuir perante seus seguidores. Trata-se de um embate pelo o que eles acreditam como sendo definitivo no pensamento civilizado e perder fiéis não é um bom caminho para nenhum dos dois casos.
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