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“Eu Sou Arquiteta!”: nome, poder e intransigência
Em 2014 teve grande repercussão o caso de um juiz que, ao ser autuado por uma agente de trânsito por então conduzir um carro sem placas ou documentos e sem estar munido de CNH, deu voz de prisão à profissional e posteriormente a processou. Ainda em 2014, um outro juiz deu voz de prisão a três funcionários de uma empresa de linhas aéreas por ser impedido de embarcar por estar atrasado. Já em 2015 nos foi possível ouvir “eu sou arquiteta, tenho empresa e estou fazendo obras com várias UPPs”, de uma motorista carioca ao ser abordada por agentes da polícia que solicitaram que ela parasse o carro. As três situações acima caracterizam a carteirada, que é o famoso fazer uso de condições financeiras, profissionais ou acadêmicas para se ter vantagens, preferências, favores, cortesias que comumente não estariam acessíveis a qualquer cidadão “comum”, e isso acontece também com patrimônios, usos e ocupações deles, e é sobre isso que falaremos hoje.
No Brasil, com uma tradição de “grandes nomes”, Professor Fulano de Tal, Deputado Cicrano de Tal, “aquele filho daquele que fez aquilo”, tem-se também uma tradição de permissibilidades a essas pessoas que não são permitidas a outras. O se provar alguém de nome, quase que da mesma maneira que os reis europeus se justificavam os porquês de assumirem o trono em detrimento de outros, parece fazer há bastante tempo sentido para alguns, e além de sentido faz maravilhas. Se este alguém de nome está de posse de poderes de qualquer natureza, os desdobramentos podem ser maiores. Nos casos acima citados dois juízes usaram seu poder de lei para se portarem como achavam correto, prendendo quem os confrontava, trazendo para o nível da pessoalidade. No caso da arquiteta, frases como “ele têm de ir atrás de bandido”, “eu não sou bandida” e “eu vou falar com o comandante” foram mais multiplicadas que os peixes na mão de Cristo. Notemos a capacidade de tomar para o eu-pessoa algo que é para o eu-cidadão. Pessoas que agem de forma intransigente, sem respeitar, pensar ou ao menos tolerar o próximo e as regras comuns costumam ter tudo o que acontece no mundo como se fosse para si, como “se tivessem o rei na barriga”, fazendo o possível para se manterem confortáveis em seus pedestais financeiros, profissionais, acadêmicos ou qualquer outro pedestal que o ego possa construir e colocar alguém nele.
Analisemos os casos apresentados: quem neste país pode dirigir um carro sem ter os documentos necessários tanto para o veículo quanto para o condutor? Quem neste país pode entrar para o embarque depois do horário, diga-se de passagem, previamente divulgado e tido em conhecimento? Quem pode não parar a uma abordagem policial ou se ofender quando acontece? A única resposta cabível é que pode fazer isso quem tem nome, ou “é alguém”, tem poder e é intransigente. A intransigência aqui não quero pôr no sentido do eu-pessoa, como fazem os aplicadores de carteirada por aí, mas sim no sentido de acreditar que a manutenção de um status (sabe-se lá qual) é mais importante que respeitar as normas sociais como as leis, que devem ser de aplicação democrática.
Em todos os casos acima, a agente de trânsito, os funcionários da companhia aérea e o policial não estavam enfrentando os Fulanos de Tal, mas sim fazendo o trabalho que lhes é cabido e regulado, seja por uma empresa ou pelo poder público. Nenhum policial, num mundo e em situações onde as profissões se exercem de maneira honesta, para um condutor porque está a fim. Ele para um condutor porque desconfia de alguma coisa, porque quer conferir alguma outra ou porque simplesmente é o trabalho dele estar de olho em tudo para manter a segurança. Segurança essa que ironicamente costuma ser defendida por pessoas que como a arquiteta se portam de forma indevida quando as medidas de precaução são aplicadas. Mais irônico que este exemplo lúdico é o do juiz que não embarcou por se atrasar e prendeu os funcionários: ele próprio negou uma indenização por perda de voo alegando que a culpa era única e exclusiva do cliente, segundo notícia do site da OAB/RJ.
E esse tipo de situação atinge o patrimônio? Sim, e muito!
Como já foi abordado noutros momentos, a cultura tem espaços de poder que validam ou não o poder de cultura de cada bem e julgam o que se salva, se lembra ou se esquece. Mas, no nível pessoal também há muita intransigência, entretanto, neste setor, como se dá pouca atenção a isso no Brasil, os casos ficam mais escondidos.
Palácio Garibaldi Curitiba
Usemos um exemplo hipotético baseado em fatos: durante quatro anos uma cidade com grande arrecadação, mas com não muita visibilidade nacional, teve a frente da Secretaria Municipal de Cultura uma pessoa da área do Esporte, que inclusive fora secretário da pasta no município anos antes. Na secretaria “de origem” o Fulano de Tal coordenava grandes festas no município, oportunizava grandes shows fazendo de tudo um grande evento, e foi isso que ele quis fazer quando assumiu a Cultura. Logo extinguiu um evento cultural famoso da cidade, formado por, hipoteticamente, desfiles de carrinhos de rolimã, que atraia muitas pessoas, mas “era muito caro” (por volta de R$ 1,2 mi para três dias de evento). Para suprir estes momentos, criou um evento itinerante que ia a vários bairros com shows, não idiotamente uma programação muito próxima dos gostos pessoais do tal gestor, desde música a dança, e que custava uma média de R$ 15 mi cada vez que acontecia, sendo que fora executado num número superior a dez vezes, contando inclusive, hipoteticamente, com carros blindados todos reformados para que atirassem confetes e serpentinas ao invés de mortais mísseis.
Outro exemplo, infelizmente nada hipotético, é o que acontece em Curitiba há dez dias e deverá se estender por mais uns dez. Uma certa deputada, filha de um certo ministro e de uma certa vice-governadora vai casar-se e escolheu um prédio tombado e esteticamente conhecido na cidade para realizar sua festa. Até aí, nada de espantoso. A questão é que uma espécie de redoma, que é mecanicamente muito bem formulada, mas também é de alguma forma provisória, foi erguida no entorno hiper-próximo do prédio para que se acomodem os mais de mil convidados. Quais são as questões aqui?
Positivamente, o Palácio Garibaldi, que é mantido sofridamente pela Sociedade Garibaldi, tem como gerar recursos próprios para sua manutenção, sem precisar esperar e concorrer as morosas verbas governamentais (e este tipo de uso pode ser um dos viabilizadores de uma vida útil maior aos patrimônios), além, claro, de dar vida e movimento ao espaço que passa a ser ainda mais ocupado. Entretanto, negativamente há o fato de que existe uma legislação estadual, de 1953, que em seu artigo 15 prevê que “sem prévia autorização da Divisão do Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural do Paraná, não se poderá, na vizinhança da coisa tombada, fazer construção que lhe impeça ou reduza a visibilidade […]”, que não foi respeitada! É um acontecimento tão grave usar o espaço para uma festa particular que altera as possibilidades visuais? Sim e não. Sim porque se desrespeitou uma lei que deve ser cumprida por todos, quiçá por uma deputada filha de uma família muito envolvida na política. Não porque pode ser que não traga danos ao prédio, pode ser que a lei esteja precisando de reformulações depois de quase 65 anos em vigor, mas que ainda é válida. Sim porque realmente não permite o acesso visual dos visitantes ao prédio que tem uma localização privilegiada para tal. Como disse o arquiteto José La Pastina para o jornal Gazeta do Povo, “está sendo negada aos visitantes a oportunidade de ver um belíssimo exemplar da arquitetura curitibana. Esse é o dano maior”. Ou ainda, como disse o arquiteto Key Imaguire Jr., “o problema é que a cidade fica sem um prédio importante por quase um mês. […] Esse palácio é fundamental para a paisagem urbana de Curitiba”.
Há muitos os pontos a serem levantados na discussão deste casamento acontecer no Palácio Garibaldi. Posso ressaltar por exemplo todas as formulações sobre paisagem cultural e a consideração do entorno do bem tombado como parte dele, não podendo fazer de um prédio um bibelô exótico no meio de uma selva de pedras. Mas, acredito que o ponto mais importante aqui é se pensar o interesse público. A quem realmente interessa que o casamento aconteça ali? Mais alguém além dos noivos, suas famílias e o mar de convidados terá proveito com isso? Existe, mesmo no modo simples do 50% + 1, uma ideia de como isso afeta a vida da cidade? Como ficam os visitantes do Largo da Ordem que ao olharem para além do Cavalo Babão enquanto sobem para a praça rodeada de prédios históricos irão ver uma grande estrutura de metal, plástico e madeira e não a fachada reformada pelo imigrante italiano João De Mio do prédio ícone da presença desta etnia na região?
Este parece mais um caso de nomes, poderes e intransigências baseado na amizade, no favor, no “conhece Fulana, filha da Cicrana? Sim, o pai dela é este mesmo!”, e no dinheiro, sublimando os interesses sociais e culturais da maioria esmagadora dos envolvidos com a vida naquela região.
Curitiba, 11 de julho de 2017.
Titulado em nível de graduação em Conservação e Restauro de Bens Culturais, graduado em História, especialista em Gestão, Preservação e Valorização de Patrimônios e Acervos e em Estudos em Memória, e mestre em Patrimônios, Acervos e Memória. Atualmente é Historiador e Conservador-Restaurador do Círculo de Estudos Bandeirantes, em Curitiba, entidade cultural agregada à PUCPR onde também ministra aulas e oficinas periódicas para graduandos em História