Literatura

A crise da novela Em Família diante de uma realidade e seu complexo de Raicai

Beijo gay na novela Em Família

“Eis o meu segredo: só se vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos. Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas.” (Antoine De Saint- Exupèry, in ‘O Pequeno Príncipe’)

Por Elenilson Nascimento e Anna Carvalho

O desgaste das telenovelas globais representa bem esse estado de inanição cultural e da falta de qualidade nas programações – um retrato cruel – que passa bem longe da forma como a classe C, principal fatia de telespectadores da TV aberta atualmente, quer se ver espelhada. De rei do horário nobre, o novelista Manoel Carlos, por exemplo, penou nos últimos meses para manter audiência da sua novela tosca, “Em Família”, na faixa das nove – que sempre começava depois das dez – por levar ao ar uma sociedade brasileira que já não existe na vida real. Uma trama fraca, cheia de erros de continuidade e repleta de personagens nada carismáticos, enfim, acabou na semana passada sem construir grandes ganchos. Uma trama que só se tornou respirável pelas personagens gays e a sua aparição feminina sem pretensões de divagações romanescas entre Clara e Marina (vividas pelas atrizes Giovanna Antonellie Tainá Müller), com cenas que convenceram tanto os universos GLBT, heteros ou, para ser mais preciso, da natureza humana em sua sexualidade indevassável.

Assim, como na literatura, na atual teledramaturgia brasileira também há poucas certezas de sucesso garantido. E, poucas vezes, pudemos conferir um roteiro tão fraco, pernóstico, atrelado de clichês, com personagens tão chatos quanto desnecessários que envergonharia qualquer aluninho de cinema da UFBA. E a trama tosca assinada por Manoel Carlos, alardeada como uma despedida do autor do horário nobre, foi um fracasso total. Estão por lá o modo de vida da classe média carioca (falida, mentirosa e deslumbrada), os romances complicados, os diálogos triviais travados sobre a mesa do café da manhã e/ou uma ou outra história tirada das páginas policiais dos jornalecos cada vez mais medíocres, que deixaria Nelson Rodrigues envergonhado.

Contudo, no meio de todo esse mais do mesmo, os créditos total para que alguma alma se prontificasse para conferir o enredo desconexo em uma trama subjetiva em sua conotação mais real ou realizável pela comoção pública, onde a aparição dramática-real de Tainá Muller, uma exuberância de atriz, uma mulher que mesmo criado numa espécie de ilha dramática (estúdio) se apresenta diante de uma trama em que a sedução fica confiscada em seu batom vermelho, em sua Canon, onde soube cometer a gafe de ser maior do que a sua câmera. E, no meio do caminho, a fórmula “consagrada” por Maneco penou para manter constrangedores 30 pontos no Ibope, meta de audiência de novela das sete. A questão é saber se mudou o espectador brasileiro – ou se a falta de mudança no universo do autor se tornou um problema. Mas, ali, em poucos momentos, a trama se apresentou em sua função real, embora catártica, hedonista, ficcional, convincente para as realidades de alguns poucos, mérito somente da Tainá Muller – uma gaúcha meio faca na bota, mas que, na verdade, é uma apoteose de um boeing subindo sereno ao céu de brigadeiro sob a voz metalinguística de Lana Del Rey, apaixonada por Hilda Hilst e que traz consagrada nessa atuação a verve subsequente da poeta em questão.

Personagens de Laerte e Luiza (Gabriel Braga Nunes e Bruna Marquezine)

Há quase três meses no ar, “Em Família”, uma das novelas mais curtas da Globo, pareceu bem distante de superar o trauma de ter estreado com o pior Ibope de todos os tempos para um primeiro capítulo de novela das nove da emissora. A relevância de “Em Família” ficou quase inexistente também nas redes sociais, um importante termômetro que ajudou a consolidar o sucesso de “Avenida Brasil” e, mais recentemente, de “Amor à Vida”, com a criação sem fim de memes inspirados nas pérolas ditas pelo adorável vilão gay Félix (Mateus Solano). Mas como agora virou moda colocar em todas as novelas beijos gays como se isso por si quebrasse tabus, em teoria, novela não precisa imitar a vida real. Aliás, essas últimas tramas globais passam bem longe disso. Representante da crônica social no horário nobre, Manoel Carlos, em outros tempos, sempre buscou o realismo e povoou suas tramas com representantes de todas as classes. Só que muitos desses personagens são definidos única e exclusivamente por sua condição social; são tipos, e não indivíduos.

Uma novela que se preze, não mata um personagem e não leva dois meses, no mínimo, para fazer a pergunta fatídica: QUEM MATOU LAERTE? Não havia na trama o maniqueísmo necessário, mas, sim, uma estruturação de clichês romanescos que didatizaram o enredo em sua função catártica: Laerte, um vilão pouco terno, embora colocado numa natureza pouco acadêmica do passionalismo; Helena, muito revestida de um ódio que a levava para lugar algum; Virgílio, uma espécie de neutralidade, tipo um Dalai Lama; Luiza, uma espécie de alma e aparência de mãe numa espécie de rito de passagem com o passado. O resto dos elementos da trama e das personagens gravitavam em poucos ganchos, exceto quando a história de Clara e Marina entrava em cena. Numa cena de uma dança sensual, por exemplo, ali estavam as personagens se tornam endêmicas da trama. A protagonista e a sua história de clichês shakespeariano é sucumbida pela paixão gay, de beleza estética avassaladora e um certo quê de limbo reeditado do estúdio de Marina, aos olhos de Sophie Calle, onde a história não convencional entre uma dona de casa e uma fotógrafa cosmopolita surrupia a trama diante delas.

Num debate acalorado, pelas redes sociais, soubemos tratar como redenção os relacionamentos homoafetivos, sem subjetividades, pois as pessoas nos cobrando posicionamentos sobre o que achávamos sobre o tal “beijo gay” das meninas, mas justificamos que primeiro não cabem adjetivos, pois foi um beijo apenas que duas pessoas que se amam se deram. Num plano sociológico, esse beijo abriu a clausura secular em que as mulheres foram calcinadas. E, na novela, duas mulheres lindas, sérias, sem afetação, consumaram seu amor. Como falar em redenção, sem se posicionar subjetivamente?

Somado a isso tudo, um empecilho foi a inversão de papéis da heroína romântica da história, que deu um nó na cabeça dos telespectadores. A vida amorosa da fraca protagonista Helena (vivida por Júlia Lemmertz) foi um marasmo absoluto se comparada à de sua mãe Chica (vivida por uma apagada Natália do Vale). Essa confusão tornou ainda difícil para o público se engajar na trama. Avaliar o texto e a crônica de lugar algum do Manoel Carlos sem avaliar o interlocutor de hoje que, entende novela sob clichês, sob uma didática enfadonha, é sepultar uma história que vive no hiato emocional de sua própria sombra. O drama não necessitava de heróis palpáveis, vilões papáveis, maniqueísmos em rodos, ali, personagens gravitaram em suas órbitas humanas, e talvez seja assim que a tramas funcionem, mas o povo brasileiro, bastante chegado às rudezas de sua realidade medíocre, necessita de mais Félixs, de loucas Carminhas, de corruptas Odetes, de maldades que, ao final, quando são extirpadas, dá-se a impressão que extirparam as maldades sumárias de uma realidade muito pouco política. É como se a li, naquela chacina moral, o brasileiro se aposentasse de seu drama real em ser apolítico, acrítica, vulnerável.

Cena de Cadu (Reynaldo Gianecchini)

Há, no entanto, um outro lado dessa história: uma estratégia clara da emissora de revezamento no horário. O bairro do Leblon embalado por canções da bossa nova, tão familiar ao público, foi estrategicamente levado ao ar pela TV Globo após uma esteira de inovações importantes em sua teledramaturgia. Na dialética entre Manoel Carlos e Aguinaldo Silva, por exemplo, autor vendido como o deus de mais um possível sucesso com “Império” para um país burro em sua didática pouco visceral. Mas, Aguinaldo, em sua arrogância costumeira, faz novela para esse público clichê, pouco intuitivo, com tramas didáticas, onde vilões são maus, heróis transitam em seus fios da navalhas, e se há gays, esses são catatônicos em suas ilhas de sexualidade clichês. Se há ricos, são apenas ricos. Se há maus, são apenas maus. As novelas do Aguinaldo seguem em seus limites dramáticos com as mesmas atrizes, seguindo os mesmos estereótipos. Num debate na sua Fanpage do Facebook, questionamos o autor Aguinaldo Silva sobre a possibilidade de ele manter os mesmos personagens de sempre:

Aguinaldo Silva – No escurinho do cinema. Morram de inveja queridos: sabem o que eu, meus colaboradores e mais o diretor-geral Rogério Gomes estamos vendo aí na foto, no escurinho da sala de edição? Os quatro primeiros capítulos de “Império”, a próxima novela das 9!

Elenilson Nascimento – Minha vida mudou depois de saber disso! De um tempo pra cá, TODAS as novelas da Globo são anunciadas como uma coisa bacana, o início pode até ser e depois de algum tempo f… O que esperar dessa? Homens sem camisa pra lá e pra cá, diálogos sem sentido, mas enfim… A opinião dos outros não conta. Então boa sorte na sua empreitada ,mas não espero mais nada desses programas da TV.

Aguinaldo Silva – Elenílson querido, como você é pessimista! Homem descamisado tem na rua o tempo todo: descamisado, de bermudão, sandália de dedo com o calcanhar sujo… Pelo menos os descamisados da novela são limpinhos… E quanto aos gays da novela, até o Papa os aceita, porque você não os quer na novela? Está com medo do quê? Sossega, rapaz, e vê “Império”… Ou então vai ver os seriados bíblicos da Record…

Meme da novela Em Familia

Elenilson Nascimento – Querido Aguinaldo Silva, não questiono a presença de gays nas novelas. O problema é a maneira sempre caricata que vocês retratam os relacionamentos homoafetivos. Quem deveria andar mais nas ruas, com todo o respeito, é o senhor! Talvez assim veja que a vida real não é feita de modismos e bombados.

Mas o tradicionalismo de Manoel Carlos contrasta propositalmente com a maior de todos os marketings, o primeiro beijo gay (que parece não ter sido o primeiro) levado ao ar pela emissora, protagonizado por Félix (Mateus Solano) e Niko (Thiago Fragoso) no último capítulo da antecessora “Amor à Vida”. E no rodízio de estilos adotado pela emissora desde sempre, serve justamente para atender aos múltiplos gostos e perfis dos telespectadores. Uma análise sobre a luta meio maniqueísta entre Nina e Carminha, nos exageros hiperbólicos de uma luta travada num plano ideal, o exagero de um certo Tufão (exilado em sua cafonice), enfim ali, nas trams e tretas globais, a arrogância entre as mazelas são maiores, como é maior a ignorância de um público sedento por ter a novela como uma espécie de comiseração íntima das vidas calcinadas diariamente por bombardeios de catástrofes nacionais.

Não dá para pensar em inovação o tempo todo, cada autor tem um estilo próprio e essa pluralidade é importante, mas “Em Família” foi demasiadamente frágil por incompetência ou por uma espécie de proposição anormal diante de uma locução bem elaborada? A tal falada crise de texto, do diálogo, do tempo. E assistindo uma trama da década de 90, novela de Ivani Ribeiro, a gente percebe que os diálogos são mais elaborados, as cenas mais trabalhadas, hoje o que vence é o corte, a rapidez para uma população em seu complexo de haicai. Vence a didática,as gavetas, as fórmulas diante das supressões subliminares das metáforas. E o coração trazido pela paráfrase do autor do “O Pequeno Príncipe”, não pode ser requisitado por histórias em um país que se acostumou a fenecer diante de sua própria obsessão pela maldade, vamos explicar: o brasileiro que se acostumou com suas tragédias populares, calcina dramas que são amoroso, que propõem hiatos, pausas. As tramas de Manoel Carlos devassam o gênero humano em suas convulsões subjetivas, portanto, não plausíveis.

Elenilson Nascimento – dentre outras coisas – é escritor, colaborador do Cabine Culturale possui o excelente blog Literatura Clandestina

*Anna Carvalho é professora e escritora.

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