Zainne
“A destruição da tristeza na poesia de Zainne Lima da Silva”
Nessa poesia, o ódio diante da injustiça e o dizer da resistência corroem a propensão ao suicídio, como um contra-câncer.
I
A vida como lamentação não é a fronteira da poesia de Zainne Lima da Silva. O testemunho da violência e do massacre mencionado no poema Infernópolis registra, num primeiro momento, a dor aparentemente paralisante [“o luto coletivo se renova/ainda mais insuportável”]; em Falar do ódio, entretanto, a poeta converte em propulsão o que poderia, fosse a literatura dela menos urgente e poderosa, parecer consternação, tautologia do trauma e desistência da luta social. Para Zainne o ódio é práxis: atravessa a lua morta da melancolia e torna-se fagulha para a reflexão, para a masturbação, para a contraposição ao estado genocida e para a contraposição à polícia-blitzkrieg, que dispara para encurralar, e espera os pisoteamentos.
Nessa poesia, o ódio diante da injustiça e o dizer da resistência corroem a propensão ao suicídio, como um contra-câncer. o luto dá lugar ao desejo de vingança, e por este é vencido, da mesma maneira que o “eros vence a depressão”, como diria Chul Han. Lorca, vítima dos fascistas, escreveu um verso, algo assim: “o metálico rumor de suicídio que nos anima a cada noite”. Não seria esse ânimo, na poesia de Zainne, a própria superação do céu dos suicidas, o céu das estrelas invisíveis, em prol do chamado à luta racial, na terra de hoje? Zainne não busca por Pasárgadas quando tem vontade de se matar. Sua poesia ampla, corajosa e angustiante não se desvia da cidade-inferno, da cidade das caveiras, da cidade dos dramas barrocos, em que a vida vazia esvazia-se no luto, no “não há nada a fazer”. Encara-a de frente, e o ódio a conduz pelo vale de sombras da morte.
Zainne nos relembra que devemos atravessá-la, à cidade das caveiras, e atravessando-a, e percorrendo o luto, se redescobrirá no tempo do agora, através do ódio (“humanizar o ódio”), a potência da revolta, do agir e da afirmação de vida: de uma outra vida, num outro mundo possível.
Seria necessário escrever muito mais sobre a obra de Zainne: sobre os espaços domésticos de masmorra, como tempos de encarceramento e de dilatação da loucura e da lembrança, por outro lado; [veja-se Pelo chão você não pode ficar ou Estou enxergando agora você, publicado na revista virtual Literatura&Fechadura em julho de 2019]; sobre o elemento masculino animalizado como sinalização da truculência e violação; sobre a beleza das poesias da autora a respeito do ato poético e muitos etcs. Mas neste momento não podemos dar vazão a esses desejos, no espaço desta coluna. Passemos então à palavra da poeta, que prepara seu segundo livro.
II
Infernópolis
queria escrever um poema
a calcular quanto pesa a menos
um corpo pisoteado dentro do caixão
o poema ficou intragável
e ao invés de terminá-lo
chorei as lágrimas do absurdo:
amargas, mudas e irrecuperáveis
diante do ser negro e favelado no Brasil
amanhã tampouco o poema
desceria goela abaixo
nem depois de amanhã –
no próximo dia de qualquer dia
o luto coletivo se renova
ainda mais insuportável.
…
Falar do ódio
este, que eu esquento com a comida
e ponho na língua a ponto de queimar
ódio que compõe meu corpo como água e sangue
falar do ódio como fala-se do amor
da filosofia, da religião, da transcendência
falar dos livros, poemas e teoremas
construídos essencialmente a partir do ódio
falar do ódio que cresce e lota a minha cabeça
que me dá o lampejo de vida após a crise suicida
falar do ódio que me molha para a masturbação
do que me leva ao sentido legítimo da vingança
falar do ódio, essa música muda
essa linda música muda
humanizar o ódio
usá-lo como ferramenta para a revolta
e para revolução.
…
Astral
meu signo trabalhador, exausto
escolhe a dramática-expressiva
a partir de ruínas
ergue alguma construção
monumental
apenas com as pontas dos dedos
a sua inimiga, embaciada
confabula com bulas e cartelas
reclusa-silenciosa
arranca as portas de toda a casa
convida o suicídio
toda vestida de amarelo
às tempestades dos copos
venceu o trabalhador
até quando mais um dia?
…
Borges
amo tua cama hasta o último pó
lembro do lodo preso nas paredes de teu alugado
líquen; musgo, verde como grama de desenho de criança
verde como a planta que eu crio para você
às escuras
sonho com teus vizinhos, arroz doce
não vejo teu rosto
lembro do lodo preso dentro de mim
falta de visitação
não me acomodo no tempo
desde que teu ser me adentrou
eu sou um velho alemão sentindo frio sentado na estação de trem sem saber que destino tomar nem o caminho de volta para casa.
…
[sem título]
lhe desejaria um cancro se ser amado por mim não fosse mais terrível que isso
este peso da minha caneta
que se não mata
rouba e destrói
eu não sou o diabo
ao contrário, te sou deus
e te faço barro de ânimo
com papel e tinta
quê pode ser pior a um homem
que a eternidade da palavra?
III
Zainne Lima da Silva (1994) é educadora, bonequeira, escritora e poeta. Moradora de Taboão da Serra, SP. Formada em Letras pela FFLCH-USP, é autora de Pequenas ficções de memória (2018) e Canções para desacordar os homens (no prelo), ambos pela Editora Patuá. Possui textos em Cadernos Negros vols. 41 e 42 e Jovem Afro (Quilombhoje); em Raízes vols. 1 e 2 (Ed. Venas Abiertas) e As coisas que as mulheres escrevem (Ed. Desdêmona), entre outras publicações em meio digital e impresso.
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