Cinema

A diferença entre pornografia e erotismo, para o filósofo Byung-Chul Han

Sylvie Fleury

A presença pornográfica duradoura aniquila o imaginário. De modo paradoxal, não há nada a ser visto.

De acordo com Byung-Chul Han, o capital e suas formas sociais contemporâneas são definidos por uma saturação de positividade. Tenta-se a todo instante eliminar o discurso da dor, da angústia, da fratura, da crise, da falha, do imprevisível, da contingência, do pavor etc em prol de um sistema de likes, sharing, palestras motivacionais de empresa, coaches, reality-shows de superação, brados de “resiliência” em amigos secretos da firma, entre outros. O resultado de constantes sedimentações desse tipo de cultura de massa na estrutura psicológica dos sujeitos de consumo é a implosão por excesso de positividade: sem alteridade, blindado contra a negatividade do outro e infenso a qualquer crise dialética, o sujeito fica fadado a se repetir eternamente, numa espécie de metástase de seu ego e de seus mitos pessoais. Logo, o discurso do filósofo coreano, radicado na Alemanha, está bastante próximo do de Jean Baudrillard, nesse sentido.

Para Han (como para Baudrillard, todos da falange de Benjamin) é nos fenômenos materiais, no fetiche da mercadoria e nas fantasmagorias de consumo que se pode flagrar a fenomenologia do social da melhor maneira. A saturação de positividade verifica-se, por exemplo, na pornografia.

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A pornografia é um fenômeno do despotismo de luz, da luz absoluta: ela se define pela ultra-iluminação, pela ultra-exposição de cada reentrância do corpo (até mesmo endoscopicamente ou radiograficamente).  Assim, ela se define pelo pôr-em-cena do obsceno (o que está fora-de-cena, etimologicamente). A pornografia é a expressão máxima de uma sociedade panóptica, do absoluto visível, ou do absolutismo da pulsão visual. Não existe negatividade ou interrupção do olhar para a escópica pornográfica. A pornografia, portanto, é uma questão de representação visual, e não um sondar metafísico ou abstrato. Ela se faz pornografia por não permitir ambiguidades a seus signos, e por ser, de certa maneira, pura denotação. Por isso, em sua positividade assustadora, em sua facticidade absoluta, a pornografia “arruína o olhar”, para citarmos Han.

Se a pornografia arruína o segredo, o mistério, a aura poética, a negatividade, a sedução, a representação, a ambiguidade natural à toda intimidade, alteridade e desejo, o dispositivo pornográfico também leva à falência da sexualidade, de acordo com o pensador. E nesse processo, o de causar a falência do erótico, conclui-se que a pornografia é muito mais efetiva do que a moral, a repressão ou a religiosidade.

A pornografia destrói o eros pelo excesso de sexo: pela hiper-visão, pelo empanturramento de informações, pela ultra-iluminação de tudo. Já o fenômeno erótico, frágil diante da máquina pornográfica, depende de um jogo de luzes, de claros e escuros, de contradições, de suspensões da visão completa, de gradações de ocultamento e revelação, de desacelerações do pôr-em-cena, de expectativas, atrasos, imprevisibilidades, de véus e mascaradas. Se formos forçar com Bakhtin, o erotismo é centrífugo e polifônico. A pornografia é o contrário.

Diz o filósofo coreano a esse respeito: “a visibilidade exaustiva do objeto também arruína o olhar.  Apenas a mudança rítmica de presença e ausência, encobrimento e desencobrimento, mantém o olhar desperto. O erótico também se deve à ‘encenação de um acender e apagar das luzes’, do ‘movimento oscilatório do imaginário’. A presença pornográfica duradoura aniquila o imaginário. De modo paradoxal, não há nada a ser visto.” A citação pode ser encontrada logo no início do livro A salvação do belo [tradução de Gabriel Salvi Philipson; Petrópolis: Vozes, 2019, p. 16].

Entretanto, a discussão do fenômeno pornográfico como um dos sintomas maiores da hiper-realidade e da sociedade de desempenho da contemporaneidade perpassa praticamente todas as obras recentes do autor. Pode-se encontrar discussões sobre efeitos e fenômenos sociais da ultra-luminosidade pornográfica em livros como Sociedade do cansaço [2015], Agonia do eros [2017] e Sociedade da transparência [2017], todos publicados no Brasil pela editora Vozes.

Outros fenômenos mercadológico-culturais dizem respeito a essa expressão de uma sociedade que tenta exorcizar seus fantasmas e temores através da hiper-informação e da ditadura da positividade. O sistema de dados é uma das facetas dessa pornografia totalizadora. Os dados e a informação não admitem ambiguidade, desvios, lapsos, esquecimentos. São a facticidade da linguagem, a linguagem desesperadamente em-si, incapaz de contradições, paradoxos,  desvios, re-interpretações, hermenêuticas ou dialéticas ou segredos. O sistema de dados é a informação-em-si, da mesma forma que a pornografia é a carne-em-si, a facticidade da carne, para retomarmos Sartre e Agamben.

E o corpo absolutamente desprovido de alterações em sua textura e/ou impedimentos e barreiras à visão panóptica são a encarnação desse fenômeno no nível de consumo estético-“higiênico”: não à toa, Han aborda questões como a depilação brasileira, viralizada como norma estética em boa parte do planeta, como exemplo. Ademais, as lisíssimas telas dos smartphones e o fetiche contemporâneo por superfícies a que nada se agrega, em que as marcas, atritos e memórias não permanecem, tampouco quaisquer negatividades (e se permanecem, exigem o descarte do aparelho) são também outros depósitos de imaginário pornográfico no sistema de objetos dos dias de hoje. Tudo está no sistema de objetos, e tem gente que se esquece disso.

O pensamento de Han é bastante instigante. E um de seus grandes méritos é de renovar a discussão a respeito de um tema paradoxalmente onipresente só que ainda pouco discutido como a pornografia online (o mais centralizador sistema cultural do século XXI). Em geral, os estudos sobre representação visual e pornografia ainda são dominados por argumentos binários e superficiais.

Por um lado, há quem pareça reproduzir o slogan de uma fábrica de salgadinhos cheios de sódio e corantes, ao falar de pornografia: “é gostoso e faz bem”. Por outro lado há cidadãos de bem cataclísmicos e apocalípticos, para quem a hiper-realidade pornográfica fará o mundo submergir numa era de pânico moral (expressão do teórico Naief Yehia) e ausência de lei e de ordem. Doce utopia diante do colapso climático que se anuncia para este século. Perecer pelo fantasma da imagem e não pela concretude do clima parece mesmo ser muito mais atraente. Antes o soco de um fantasma do que o incêndio dos desertos, do que os maremotos de petróleo.

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