Cinema

A Ditadura Militar no Cinema: de Lamarca a Marighella

O Ano em que meus Pais saíram de Férias – Divulgação

“A filmografia que contempla a temática da luta armada contra a ditadura militar, seja de forma direta ou indireta é ainda pequena”

Por Josival Nunes

Os frades dominicanos estão sob a luz do sol do Rio de Janeiro, operam na clandestinidade desde que a mão pesada do Governo Militar sufocou a democracia e passou a perseguir de forma violenta quem se opusesse ao novo regime. De repente surge um carro de onde descem alguns indivíduos vestidos a paisana, abordam os jovens revolucionários, empurram para dentro da viatura. O carro dispara em alta velocidade, entra e some em um túnel escuro. Esta cena está retratada em Batismo de Sangue (2006), filme dirigido por Helvécio Ratton e baseado no livro homônimo escrito por Frei Betto em que há um relato das experiências vividas pelo autor quando membro de uma organização que lutava contra a ditadura militar. Chama a atenção a forma como o diretor efetuou a decupagem deste momento do roteiro pois possibilitou uma metáfora visual contundente sobre o que estava acontecendo e o que iria ocorrer àqueles que se embrenhavam em se opor de forma mais ostensiva ao Governo. Da claridade de mais um encontro para troca de informações para o corte da prisão e entrada em um lugar sombrio, escuro, de consequências imprevisíveis.

A filmografia que contempla a temática da luta armada contra a ditadura militar (1964-1985), seja de forma direta ou indireta é ainda pequena. O primeiro filme a retratar de forma mais ostensiva o conflito armado entre a esquerda e os militares é Pra Frente Brasil (1983) de Roberto Farias, nele estão explicitados os mecanismos de repressão através de tortura que eram utilizados pela polícia política da época, tudo isso dentro do contexto da realização da Copa do Mundo de Futebol de 1970 em que o Brasil foi consagrado tricampeão. Seguiram-se outras obras que buscaram, a partir do cenário da falta de liberdades políticas, mostrar arcos dramáticos que refletissem os dilemas da época. Nessa linha uma das películas mais emblemáticas é o documentário Cabra Marcado para Morrer (1984) de Eduardo Coutinho. A obra teve suas filmagens iniciadas em 1964 e buscava retratar a vida de um líder camponês da Paraíba assassinado em 1962.

A obra retrata também a dinâmica da atuação das ligas camponesas mas as filmagens foram interrompidas, devido ao Golpe Militar, sendo retomadas dezessete anos depois, quando o diretor busca resgatar toda a história, principalmente através da memória da viúva do camponês. O aspecto inédito que o filme apresenta é este hiato forçado pelas circunstâncias políticas da época que geraram a necessidade da interrupção das filmagens, ao mesmo tempo em que atravessando quase vinte anos, conta de forma metalinguística e dramática os caminhos percorridos pelos protagonistas do filme.

A Ditadura Militar surge então como elemento desencadeador do processo, seja como poder autoritário que estabelece uma nova ordem ou como eminência parda que coage e inibe qualquer tentativa de expressão que soe minimamente contrária ao sistema. Pode-se estabelecer uma análise similar quando se assiste ao filme ficcional O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias (2006) de Cao Hamburger em que o pano de fundo é a situação de repressão à esquerda armada mas cujo elemento principal é o drama humano simbolizado na figura do menino que viu seus pais saírem de “férias”, que se tratavam na verdade de fuga, devido a perseguição dos órgãos de repressão política. Nestes dois filmes o eixo dramático está centrado nas consequências de um regime de exceção, onde as pessoas têm suas vidas radicalmente alteradas devido a força coercitiva do poder político.

Dossiê Jango – Divulgação

O filme Ação Entre Amigos (1998) de Beto Brant trás um elemento novo a estrutura dramática vista nos outros filmes analisados. Além de retratar a violência da repressão e suas consequências a película foca o olhar na relação entre os membros de uma organização armada de esquerda, estabelecendo um diálogo intertemporal entre eles ao mostrá-los atuando nas incursões clandestinas no passado e na atualidade novamente reunidos em busca de vingança contra um desafeto comum: um antigo membro da repressão e algoz dos protagonistas. O diretor estabelece uma rede de conflitos entre os amigos, cujos fios vão se adensando, ao mesmo tempo em que se aproximam do antigo caçador transformado em caça. Suspense, ação e drama se integram gerando um desfecho surpreendente.

O diretor Sérgio Rezende optou por fazer uma cinebiografia: Lamarca (1994), baseado no livro Lamarca, O Capitão da Guerrilha de Emiliano José e Oldack Miranda. O filme faz um recorte da vida do Capitão do Exército Carlos Lamarca a partir de sua atuação nas organizações armadas de esquerda, sua relação com os demais militantes, seus dramas existenciais e a perseguição implacável que sofreu quando na clandestinidade. Aqui temos a Ditadura Militar e as organizações de esquerda apresentadas de forma mais direta em seus embates e conflitos. Os métodos de ambos os lados são expostos através de uma figura que transitou da ordem estabelecida, mesmo que inicialmente lutando contra ela ainda em suas fileiras, até o rompimento, a deserção e o confronto direto contra o Regime Militar.

Este personagem, Carlos Lamarca, é apresentado como idealista e disposto a lutar incansavelmente para alcançar seus objetivos. O mesmo diretor Sérgio Rezende voltaria com uma marcante personalidade do período pós-golpe militar: Zuzu Angel (2006) com a história da estilista brasileira que, mãe de um militante político de esquerda, acabou se envolvendo com a repressão em uma luta que se tornou intensa pela busca ao filho que desapareceu nos porões da ditadura e cujo corpo nunca foi encontrado.

Outro filme que busca retratar o confronto direto entre repressão e organizações de esquerda é O Que é Isso Companheiro (1997) de Bruno Barreto. Baseado em livro homônimo de Fernando Gabeira o diretor recria o episódio real do sequestro do embaixador dos Estados Unidos na época, Charles Burke Elbrick, onde os chamados guerrilheiros fazem o mais surpreendente e ousado lance militar contra a ditadura, até então. Com ritmo ágil e sem maiores discursos ideológicos chegou a ficar entre os cinco candidatos ao Oscar de melhor filme estrangeiro. No documentário de Sílvio Da-rin: Hércules 56 (2007) temos os bastidores deste mesmo sequestro ao embaixador, através das lembranças dos próprios protagonistas do evento que discorrem sobre a idealização e operacionalização da ação, sendo expostos também depoimentos dos presos políticos trocados pela liberdade do diplomata americano.

O Dia Que Durou 21 Anos

Em Cabra-cega (2004) de Toni Ventura um militante da esquerda armada ferido é obrigado a passar um período recluso em um apartamento, no auge do período da repressão, 1971, enquanto se recupera vai tomando conhecimento das baixas e consequente esvaziamento das organizações. Ao mesmo tempo vai alimentando desconfianças em torno de um companheiro que lhe parece um possível traidor. Opressivo e de certa forma angustiante, o filme trás a tona a desigual força entre o Estado constituído que reprime com brutalidade e os grupos desarticulados e enfraquecidos que tentam combatê-lo. O próprio Toni Ventura, juntamente com Renato Tapajós, já havia feito um documentário sobre o tema: No Olho do Furacão (2003) onde se sucedem relatos de ex-guerrilheiros da luta armada em depoimentos que buscam estabelecer uma memória das experiências vivenciadas no período da Ditadura Militar.

Ainda no gênero documentário podemos assinalar o retrato do comunista baiano Carlos Marighella em pelo menos três olhares. Marighella – Retrato Falado do Guerrilheiro (2001) de Sílvio Tendler e Carlos Marighella, Quem Samba Fica, Quem Não Samba Vai Embora (2011) de Carlos Pronzato trazem um conjunto de depoimentos com a história do líder de esquerda que foi considerado pelos próprios militares da época como o inimigo número um do regime militar. O terceiro olhar tem um viés mais familiar e afetivo. Dirigido pela sobrinha do protagonista, Isa Grinspum Ferraz, Marighella (2012) além dos relatos que buscam informar e mostrar quem foi Carlos Marighella insere um tom mais próximo de quem naturalmente tinha uma ligação com toda a história narrada.

Também nesta mesma linha de proximidade e vivência familiar mas com uma inserção bem mais passional temos o documentário Diário de uma Busca (2011) em que a diretora Flavia Castro resgata a história do seu pai, Celso Afonso Gay de Castro militante da esquerda exilado e que na década de oitenta morreu em circunstâncias misteriosas em Porto Alegre. O filme acompanha a diretora em uma busca pessoal pela história do pai mas ao mesmo tempo em seu contexto apresenta os cenários produzidos pela vigência da supressão de direitos civis democráticos no país. Intenso, denso e doloroso, o filme parece ser também um acerto de contas entre a diretora protagonista e seu passado.

Em Cidadão Boilesen (2009), documentário de Chaim Litewski somos apresentados ao empresário Henning Boilsen, dinamarquês naturalizado brasileiro e que foi morto em um atentado efetuado por militantes da esquerda armada. O empresário é apresentado como suspeito de participar de sessões de tortura de presos políticos não apenas assistindo mas também como executor, o que teria causado a decisão de um grupo de guerrilheiros em condená-lo a morte ou “justiçamento” como costumavam definir este método. Ao lado disso há depoimentos do filho e de outras pessoas que auxiliam a construir um painel mais completo e complexo sobre Boilsen.

Diário de uma Busca (2011)

Outra linha de documentários recentes trabalha nas articulações que derrubaram o governo democrático e as dimensões políticas internacionais envolvidas. É o caso de Condor (2007) de Roberto Mader que fala sobre a chamada Operação Condor que tinha como objetivo desestabilizar governos no Cone Sul que estivessem alinhados à esquerda, tudo isso com o apoio dos Estados Unidos. O Dia Que Durou 21 Anos (2013) de Camilo Tavares evidencia a estratégia de colaboração aos golpistas organizada pelos americanos em um documentário esclarecedor e contundente. Por sua vez Dossiê Jango (2013) dirigido por Paulo Henrique Fontenelle trás uma minuciosa e por vezes surpreendente investigação sobre o presidente deposto João Goulart, as circunstâncias que o fizeram sair do país, o seu exílio e morte.

Uma curiosa experiência fílmica sobre o tema e que na época do lançamento provocou acirradas discussões e interminável polêmica é a obra A Taça do Mundo é Nossa (2003) de Lula Buarque de Hollanda onde o grupo humorístico Casseta e Planeta usa do cenário da luta armada contra a Ditadura Militar para destilar seu repertório característico de anedotas, parodiando, fazendo a crítica de costumes e a caricaturização dos protagonistas dos dois lados do enfrentamento. Com isso provocou o levante de uma parcela de formadores de opinião que enxergaram desrespeito e insensibilidade nos humoristas que diziam apenas querer tratar um tema pesado de uma forma mais leve.

Apesar de não ter tradição em produzir filmes com temática política, a cinematografia nacional tem significativas obras que ao longo das últimas três décadas apresentaram a temática da Ditadura Militar de maneira direta e indireta, buscando não apenas o âmbito político mas sobretudo estabelecendo uma conexão entre os dramas individuais e o conflito com a situação opressora. A tendência é que este período seja cada vez mais retomado com olhares diversos, complexos e multifacetados, auxiliando para a construção de uma reflexão permanente sobre em que sociedade estamos vivendo, de onde viemos e para onde estamos indo.

Josival Nunes é escritor, cineasta e colunista do Cabine Cultural.

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