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A independência brasileira e a imagem glamorosa
Na última semana foram veiculados trechos das falas do atual Ministro da Cultura, Sérgio Sá Leitão, nos quais ele comentava sobre a intenção de se modernizar o desfile militar de Sete de Setembro, alusivo à Independência do Brasil, ideia sobre a qual teria já conversado inclusive com o Ministro da Defesa. Sobre modernizar ou não, não é o que nos interessará nessa reflexão, mas, sim, por que ir conversar com o Ministro da Defesa sobre isso? A resposta vai, talvez, remeter ao fato de que o desfile do Sete de Setembro é majoritariamente militar. E então, outra pergunta: por que o desfile que comemora a independência do Brasil é majoritariamente militar?
Há nos países como um todo, mas na América Latina, por causa do passado colonial comum, a intenção anual de comemorar o momento de independência, especialmente porque ela, em muitos casos, foi tida com a contraposição das colônias face os colonizadores que levavam a diversas situações de enfrentamento militar, como no Haiti, por exemplo, talvez por isso a ideia de militarização do desfile exista. Talvez também porque tradicionalmente, desde a Idade Média, ter um exército, mostrar o poderio dele e aproximá-lo dos eventos importantes do território é também um dos modos de se mostrar independente e, por tabela, pronto para defender-se enquanto independente.
Voltando ao Brasil, o que necessariamente tem a ver um desfile militar para a comemoração da independência? O que aconteceu no momento daquela hora de 16h30 (de acordo com o Barão de Pindamonhangaba que testemunhou o momento da independência brasileira) militarmente para que se justificasse a presença maciça dessa classe no Sete de Setembro?
Historicamente, e para fazer essa recuperação histórica vou elencar momentos e desenrolares não tão detalhados, desde o começo do ano de 1822 se poderia supor que a separação crassa do Brasil com Portugal estava próxima ou em vias de acontecer a qualquer momento. Lembremos que em 1808, quando da vinda da família real de Portugal para o Brasil, o que era uma antiga e mera colônia tornou-se sede do governo português, o que já elevou um pouco o status internacional do Brasil. As elevações aconteceram gradativamente com o aumento do comércio na região, por exemplo, e não mais a mera exploração, com a urbanização, com a criação de instituições importantes para um país, com a inclusão do Brasil ao Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves e outras atividades que favoreciam a vida no Brasil (não de todos, é claro, mas estamos pensando aqui na relação que o país teria sendo apenas mais uma colônia ou a que teve sendo sede do governo), afinal de contas, o expoente maior desse império, Dom João VI, morava aqui e não mais em Portugal.
Após uma efervescência dos ânimos em Portugal, principalmente dos políticos portugueses, D. João volta para Portugal em 1820. Muitos portugueses pensavam quem ele deveria estar em Portugal uma vez que lá era a sede e a origem de todo o poder, toda a história e todo o império português, entretanto, o retorno do poder português para Portugal não se deu por inteiro porque o herdeiro deste poder, posteriormente chamado de D. Pedro I, mas aqui ainda somente Pedro de Alcântara, ficou no Brasil. A volta de D. João não foi o suficiente para os poderosos de Portugal, eles queriam também que o Brasil se tornasse uma colônia, no mais raso sentido e função, como antes. Ao partir, esperando momentos mais tensos, D. João teria dito ao filho que se o Brasil vier a se separar de Portugal, põe a coroa na tua cabeça, antes que algum aventureiro lance mão dela. Se disse de fato ou não, cabe-nos que essa mensagem está incrustrada na história e na memória nacional. A presença dela já nos mostra uma forte intenção de manter a hegemonia da coroa portuguesa sobre o Brasil mesmo que este fosse independente, apoiando o governo de um descendente deles em nossas terras e não um brasileiro de fato.
Os mesmos fervorosos que exigiram o retorno de D. João VI, exigiram também o retorno de D. Pedro I, e no início de 1822 teria acontecido o famoso Dia do Fico. Contrariando as ordens que vinham de Portugal, Pedro teria dirigido-se à varanda do Paço Imperial, sua residência (à época chamado de palácio para colocar nele as ideias subjetivas de poder e luxo que um palácio tem, mas ele, em comparação com as construções europeias, é mais um casarão que um palácio) de onde teria falado as famosas palavras: se é para o bem de todos e felicidade geral da nação, digam ao povo que fico. Isso colocou o Brasil e Portugal em uma relação de fortes atritos de interesses que se desenrolaram durante todo aquele ano de 1822.
Independência ou Morte de Pedro Américo
Em setembro daquele ano, enquanto voltava de São Paulo rumo ao Rio de Janeiro, Pedro teria recebido diversas cartas de Portugal reiterando as intenções de retomar o status de colônia do Brasil. O Barão de Pindamonhangaba fala que os portugueses queriam massacrar o Brasil. Ressalvando-nos das anedotas históricas e acadêmicas sobre a viagem a São Paulo, o encontro com D. Domitila e os problemas intestinais de Pedro de Alcântara, o que nos é importante é que depois de um ano todo contrariando as ideias de Portugal e tentando manter o poder do Brasil sobre si, Pedro teria dito de cima de sua mula: As cortes querem mesmo escravizar o Brasil. Cumpre, portanto, declarar já a nossa independência. Desde este momento estamos definitivamente separados de Portugal: Independência ou Morte seja a nossa divisa!, e com isso, sem guerra, sem exército, sem armamento, sem embate militar o Brasil teria tido sua independência. Os militares ali presentes seriam, então, os destacados para acompanhar Pedro de Alcântara, após esse momento D. Pedro I, durante sua viagem. Não houve batalha campal de brasileiros vs portugueses. A batalha de houve foi de interesses, foi política, então, por que os militares se representam tanto no Sete de Setembro ainda hoje?
Outro ponto que podemos analisar aqui sobre a criação de mitos e a manutenção deles é a glória que se tenta dar ao momento do conhecido Grito do Ipiranga. Muitos foram os que testemunharam e ou escreveram ou relataram a quem escreveu sobre o acontecido e nenhum deles fala de nada que mensure as imagens da cena pintada por Pedro Américo. A pintura de Américo, que anacronicamente foi encomendada muitos anos depois do Grito, estando o artista em Florença e não no Brasil, pelo então novo imperador do Brasil, D. Pedro II, retrata um momento de honra e glória, com pessoas montadas em cavalos fortes, em uniformes militares, também a presença de homens com uniformes brancos conhecidos ainda hoje como os Dragões da Independência, e ainda fez a “gentileza” de incluir um carro de boi para representar o povo da área rural onde estava o riacho do Ipiranga. Os relatos das testemunhas dão conta de mulas e não cavalos, de alguns acompanhantes de Pedro de Alcântara, mas não em uniformes de gala, e de poucos soldados para a proteção deles e não o destacamento dos Dragões da Independência.
Estes casos todos num só evento nos levam a pensar como se tenta incutir a ideia de honra, glamour e glória num evento que por si traz essas condições, mas que não necessariamente é algo que seja de uma estilística bela para se contar depois. Ninguém há de querer marcar o momento da independência com a diarreia que acometia Pedro naqueles dias, nem com as mulas tão feias e não os belos corcéis. Ninguém há de querer marcar o momento da independência com um ato frasal de D. Pedro I, dotado de muito simbolismo e poder político, sem a força da imagem militarizada, armada (em 1822 com espadas, em 2018 com fuzis), sempre disposta a defender seu território e sua nação. Isso tudo é uma tentativa de moldar uma memória e coloca-la como verdadeira por tantos anos, assim como acontece com a presença dos militares nas comemorações da data. Por que se eles não estavam lá na proporção em que gostam de comemorar? Cabe a nós o sempre atual exercício de dúvida e esperar para ver se o Sete de Setembro vai mesmo parecer com a abertura das Olimpíadas, como quer o ministro.
Curitiba, 17 de abril de 2017.
Luciano Chinda.