Cinema

A pornotopia do parque na fotografia de Kohei Yoshiyuki

Kohei Yoshiyuki

A temporalidade do parque traz consigo a suspensão ilusória do mundo do trabalho: o passeio, o frescor sombreado, o abafamento dos ruídos urbanos, os descansos desejados estão ali, nos arvoredos e clareiras, como fantasmagoria acessível. O parque, contudo, é órgão estranho, enxertado na cidade; desta, ainda lhe é integrante, não a negando, não a interrompendo completamente. Apenas finge que o faz, contrapondo-se, com graça e ilusão, à violência dos carros e da poluição. Se o “automóvel é a guerra”, como nos lembrava Benjamin, o parque é o local onde os carros quase não penetram; logo, é o recanto urbano em que o ócio, e por extensão a fruição da vida, tornam-se mais possíveis; o parque é o lugar em que a guerra, ainda que falsamente, já terminou. Por isso tem algo do mundo dos mortos, longínquo, alijado da frequência comum da megalópole distópica, ocidentalizada, neoliberal.

Como se fossem os medievais jardins murados, os horti conclusi, ou jardins persas reservados (aos jardins, Foucault os considerava as primevas heterotopias), repostos no imaginário das massas ao longo dos séculos, os sendeiros do bosque urbano protegem – ou sonham proteger – do esfolamento cotidiano. Nas sociedades de capitalismo avançado, ir ao parque conecta-se com a fantasmagoria turística, num sentido lato, e com as heterotopias das colônias de férias, num sentido estrito, que cortam o tempo citadino; atravessado o limiar, o umbral do parque – principalmente em tempo diurno, e aos finais de semana – abraça-se, enfim, o vulto do lazer. Não à toa, a feira e o parque de diversões – uma heterotopia e uma fantasmagoria, respectivamente –, têm, em muitas ocasiões, o bosque urbano como seu hospedeiro, e dele são uma derivação, um compartimento simbólico adensado. Quanto aos parques de diversão, Benjamin uma vez notou que estes floresciam nas épocas de desemprego.

Enquanto espaço heterotópico, propõe-se, no parque, uma desconexão bucólica em relação ao tempo de produção habitual, “…que abre, de fato, um parêntese temporal, uma ucronia”, e que “corresponde a uma interrupção do cotidiano e da rotina”, segundo Souty, em Motel Brasil; logo, ir ao parque é a realização de um certo turismo intra-urbano, de pequena escala, de amostragem reduzida, pelo qual se deseja obter uma mais-valia de repouso. Sontag percebeu que o ato de tirar fotos maquinalmente, durante viagens turísticas, era uma forma fantasmagórica de povos consumidores, contudo submetidos a dinâmicas totalitárias de tempo-trabalho (no contexto de Sobre fotografia, alemães, americanos, japoneses) mitigarem a angústia do tempo livre.  Nesse raciocínio, o miniturismo da ida ao parque proporcionará seus ritos e processos de despressurização da angústia do não-trabalho, do picnic ao jogging. Este, Baudrillard via como um sinal do apocalipse; os joggers sonambúlicos seriam, para o autor, um sinal da loucura urbana, de pulsão maníaca.

Quando o umbral do parque urbano é atravessado durante a noite, talvez da noite semanal, nos momentos em que o bosque se esvazia e o discurso de fruição dos lazeres habituais se tornam mais rarefeitos, devido ao ar de solidão, escuridão, fechamento e de clandestinidade, a essência da clareira não se tornará, necessariamente, menos heterotópica. Pelo contrário, até recrudescerá, reforçando-se numa dimensão pornotópica. Ação  noctívaga; intercursos sexuais entre estranhos (ou entre pessoas que se fingem estranhas, quem sabe) num espaço ao mesmo tempo público, visível, só que ocultado pelas sombras; voyeurismo, exibicionismo e flagras fotográficos por parte de flâneurs que perambulam entre os arbustos, de madrugada; estes serão alguns componentes básicos das fotografias de Kohei Yoshiyuki em The Park Series (1971-9), e de sua aclimatação no espectro da pornotopia. Antes de procedermos aos detalhes de tal classificação, vejamos como Giménez Gatto apresenta a sequência fotográfica do artista japonês, no ensaio Pornografía espectral:

El fotógrafo japonés Kohei Yoshiyuki, en The Park Series (1971-1979), le sustrae a la noche sus imágenes. Este noctámbulo flâneur captura furtivos encuentros sexuales, cobijados por la oscuridad, en tres parques de Tokyo durante la década de los setenta, gracias al uso de película infrarroja y um flash modificado […] Es decir, el voyeurismo no es el tema de las fotografías de Yoshiyuki sino su tecnología, el despliegue de lo que Derrida llamará una visibilidad nocturna.

Feita essa análise, passemos às palavras de Beatriz Preciado, a respeito da definição do dispositivo pornotópico [extraídas do livro Pornotopía]:

Lo que caracteriza a la pornotopía es su capacidad de establecer relaciones singulares entre espacio, sexualidad, placer y tecnología (audiovisual, bioquímica, etc.), alterando las convenciones sexuales o de género y produciendo la subjetividad sexual como un derivado de sus operaciones espaciales. Por supuesto, es pornotópico el burdel, contraespacio característico de las sociedades disciplinarias capaz de crear una ficción_teatralizada de la sexualidad que se opone, al intercalar un contrato económico como base del intercambio, al mismo tiempo a la celda célibe y a la habitación conyugal

Cotejando os dizeres de Giménez Gatto com os de Preciado, podemos concluir que a figuração do parque, em The Park Series, pode fluir em direção ao campo de jogo da pornotopia. Porque teremos, em Yoshiyuki, o espaço em função da sexualidade (os encontros furtivos no bosque noturnal), projetando-se como cartografias de prazeres (o ócio, a supressão do trabalho, o campo cego da rotina, num contra-espaço, heterotópico, situado no âmago da megalópole), sob a intermediação de um dispositivo tecnológico (a câmera, o infravermelho), num tempo do flâneur madrugador, caçador de relíquias, em busca de imagens-choque para além do tédio, ou do imperativo laboral (o mundo diurno, produtivo).

Yoshiyuki é este flâneur “noctâmbulo”, turista da intra-cidade (o parque heterotópico), que, ao errar por suas reentrâncias (os baldios e os esconderijos entre o matagal) desvela a infra-cidade (a pornotopia).

Preciado mencionará outras pornotopias. Existem as pornotopias de proliferação extensa, territórios com suas leis, hábitos e códigos particulares: bairros/complexos de prostituição e discursividade sexual. De maneira espacialmente oposta, mas complementar, há as pornotopias localizadas: peep shows, casas de swing, cabines para exibição de conteúdo pornográfico, dungeons sadomasoquistas, anúncios de serviços sexuais em periódicos, espaço online para sexo virtual etc. Há pornotopias de restrição: prisão, cela celibatária, convento, colégio. Há pornotopias subalternas e de resistência, ligadas mais tanto às espacialidades quanto a eventos temporais; estas seriam bairros gays, paradas urbanas de orgulho LGBT, passeatas em prol dos direitos de profissionais do sexo, etc). Por fim, há as pornotopias de transição, como viagens de turismo sexual, noite de núpcias, luas-de-mel.

A pornotopia noturna do parque-beco, em Kohei Yoshiyuki, funcionará como alcova, e extensão fantasmagórica do interior doméstico sonhado, fantasmagórico. Se recorrermos a Foucault (a partir do texto De espaços outros), se alinhará, por um lado, ao simbolismo heterotópico dos motéis:

Há outras [pornotopias], ao contrário, que parecem puras e simples aberturas, mas que, geralmente,  escondem  curiosas  exclusões.  Todo o mundo pode  entrar  nessas  alocações heterotópicas, mas, a bem da verdade, isso é apenas uma ilusão: crê-se adentrar  e  se  está,  pelo  próprio  fato  de  entrar,  excluído.  Penso,  por  exemplo,  nesses famosos quartos que existiam nas grandes fazendas do Brasil e, em geral, da América do Sul. A porta para neles entrar não dava para o cômodo central  onde vivia a família, e todo indivíduo que passava, todo viajante tinha o direito de empurrar essa porta, entrar no quarto e então ali dormir por uma noite. Ora, esses quartos eram tais que o indivíduo que por aí passava não tinha jamais acesso ao seio mesmo da família; ele era simplesmente o hóspede de passagem, ele não era verdadeiramente o convidado. Esse tipo de heterotopia, agora praticamente desaparecido em nossas civilizações, talvez possa ser reencontrado nos  famosos quartos dos motéis americanos, onde se entra com o carro e a amante, e onde a sexualidade ilegal está absolutamente garantida e escondida, mantida a  distância, sem ser, entretanto, consentida.

Por outro lado, se irmanará com as pornotopias ligadas ao imaginário da viagem, seguindo Preciado: já que pontuamos que a visita ao parque urbano funciona na frequência de um mini-turismo, é no âmbito das imagens-pornotopias de transição que refletimos sobre as fotografias de Kohei Yoshiyuki.

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