Daniel Radcliffe vive o atormentado Ig Perrish.
Amaldiçoado – “Com um roteiro preguiçoso, tentando apenas encaixar a narrativa, deixando de lado qualquer reflexão que o livro proporciona sobre a dicotomia entre o bem e o mal.”
Por Elenilson Nascimento e Anna Carvalho
Você provavelmente nem ouviu falar do autor Joe Hill, o filho de Stephen King, que também enveredou pelo gênero do terror. “Amaldiçoado” (Horns, 2013) é o primeiro (e até agora único) longa-metragem baseado no seu romance “O Pacto”, lançado nos cinemas. E já vamos confessar aqui que só vimos o filme agora, muito tempo depois do lançamento, porque não estávamos muito motivados para assisti-lo antes. Apesar de sermos muito fãs do King, nunca havíamos lido nada do seu filho e achávamos a premissa meio rasa (apesar de original). O roteiro do então desconhecido Keith Bunin faz algumas escolhas infelizes na transição do livro do Hill para o cinema. Até entendemos que alterações e modificações seriam necessárias, afinal Hill, assim como o pai, é bem detalhista, e uma adaptação fiel poderia não ser a escolha certa.
Enfim, “Amaldiçoado” é uma história muito confusa, complexa demais, sobre chifres que crescem na cabeça de um jovem chamado Ig Perrish, ou Ignatius Perrish, vivido pelo eterno Harry Potter, Daniel Radcliffe, depois que a sua namorada virginal morre e toda a cidade se volta contra ele (crendo que ele é o assassino). Ig Perrish sempre foi considerado um cara bonzinho. Tinha uma família unida e perfeitinha de propagada de margarina, um irmão que era seu grande companheiro, um amigo inseparável e, muito cedo, conheceu Merrin, o amor de sua vida – a futura garota morta. Até que a tragédia põe fim a toda essa felicidade: Merrin é “estuprada” (tanto no livro quanto no filme tudo é sugerido) e morta, até que Ig passa a ser o principal suspeito. Embora não haja nenhuma evidência que o incrimine, como também não há nada que prove sua inocência. Mas, como sempre, todos na cidade acreditam que ele é mesmo o monstro. Porém o roteiro não pegou a essência do livro, ou qualquer mensagem subliminar presente nele – questões reflexivas foram deixadas de lado, e o caminho escolhido foi o mais fácil e descartável.
Depois de terminarmos a leitura do livro e de termos conferido o filme, ficamos aqui em “festa de pele” – com chifres de interrogações em nossas cabeças. As peles já foram trocadas e deram ar de uma pele mais inteira, descansada, boa, leve, como os chifres de Ig. Mas sempre nos imaginamos com um amor louco, nada morno, e parecia que no caso dele, o amor havia chegado intrépido, tépido, acalmando, transgredindo, no abraço, no cuidado. Mas deu merda! Um ano depois, Ig acorda de uma bebedeira com uma dor de cabeça infernal e chifres crescendo em suas têmporas. Além disso, descobre algo assustador: ao vê-lo, as pessoas não reagem com espanto ou horror, como seria de esperar. Em vez disso, entram numa espécie de transe e revelam seus pecados mais inconfessáveis. Mesmo tomando rumos diferentes do livro, ainda sim, o conteúdo principal no filme poderia render uma história muito melhor – lembrem-se da adaptação de Stanley Kubrick para “O Iluminado”, em que o filme segue outro rumo da história criada por King, e mesmo assim, é uma das melhores adaptações da história do cinema de horror. Lembrando aqui, de outro exemplo mais recente, o maravilhoso “À Espera de um Milagre”, com Tom Hanks, também adaptado de uma obra do King.
O autor Joe Hill ao lado do pai, o maravilhoso Stephen King.
E como nas nossas vidas de vitrais, de escafandros em que descemos ao fundo e víamos muito pouco, Ig se permitiu ir mais fundo, como Rilke e as civilizações atenienses símbolicas de liberdade e de beleza ao riso sinfônico de uma programa de hinos dos idos de 90. Então, eis que aparece um médico, um padre, os seus pais e até a sua querida avó, mas ninguém está imune aos pensamentos do Ig. Mas todos estão contra ele. Porém, a mais dolorosa das confissões é a de seu irmão, que sempre soube quem era o assassino da jovem Merrin, mas não podia contar a verdade. Até agora. Sozinho, sem ter aonde ir ou a quem recorrer, Ig vai descobrir que, quando as pessoas que você ama lhes viram as costas e sua vida se torna um inferno, e ser o próprio diabo não é tão mau assim.
Bem, não poderíamos continuar esse ensaio sobre o “Amaldiçoado”, sobre a história de um bedel por liberdade, sem dizer que não há pior juiz do que você mesmo, quando você descobre que as pessoas não podem ser íntimas, há eleições, não há culpa. Culpa foi a criação de algum gênio estoico, para que as pessoas não vivam, vivam entre fumaças, respirem cigarros, ou seja mar. Logo de cara, naquela manhã onde percebeu os chifres crescendo em suas têmporas e descobriu o que eles faziam, naturalmente qualquer um ficaria apavorado. Mas você já sabia de tudo isso, e o mais interessante é que eles não só fazem as pessoas confessarem seus pesadelos, e acordam o mal dentro de cada um – nem as crianças estão livre daqueles chifres.
Mas, afinal, justificar um pecado como um estigma da humanidade tem seu lugar num cadafalso da hipermodernidade. Até os próprios pais passam a contar verdades que o próprio Ig nunca quis saber e que se nós aqui contássemos vocês nos matariam por dar spoilers para muita culpa para pouca responsabilidade efetiva sobre quem você seja de fato. E a história de um cara que é acusado de matar a namorada e fica sob esse estigma, se transmutando num diabo, com chifres, estigmas e escatológicos, perde o sentido para as questões mais subjetivas na trama. Poderíamos traçar paralelos com a metamorfose de Franz Kafka ou ainda a elaboração da dissociação da convivência de um personagem com a sua culpa na obra de Dostoiévski , em obras mais elaboradas em que mortes são construídas à medida que distinções ou deliberações conscientes são feitas.
A história no livro ficou interessante, talento e marketing que o escritor herdou do pai (mestre King), um dom bem peculiar para escrever histórias assustadoras e excepcionais, mas a trama no cinema ficou muito a desejar de como a história toda é contada, com alguns capítulos inteiros chatos e rebuscados, direcionados a uma adolescência com seu amor de infância, seu irmão companheiro e seus amigos, capítulos que não fazem muito sentido no começo, parece que só está enchendo linguiça mas logo descobrimos que cada página tem sua importância (ou não), mas no livro tudo é um pouco mais extenso. No filme, parece que tudo desanda em sua meia hora final, pois tem pouco espaço para tantas reviravoltas presentes no livro, e consequentemente, inseridas no roteiro.
Daniel Radcliffe como um demo atormentado em “Amaldiçoado”.
Aliás, o diabo é figurinha fácil quando não se assume de fato que se faz merdas, a capacidade atuante que temos em sermos insensíveis, ingerentes, cruéis e exortar essa maldade sob o afã de um elemento veterano na vilania. O famoso “..não era eu”, não é só cômodo, é indigno também. A Igreja, religiões, núcleos familiares, núcleos de poder, todos vivem sob essa eterna negociação com terceirização de culpa, não seria diferente em um livro/filme analisado. Exatamente como esse avanço da tecnologia, onde viramos um punhado de informações e, se não estivermos muito atentos, a nossa identidade, assim como a do Ig, fica resumida a um perfil tosco de rede social. Soluções essas que poderiam ser melhores aproveitadas caso não houvessem cenas desnecessárias, como a punição do Ig para com o irmão, ou a cena em que provoca uma revolta em um bar, inserida só para colocar a música “Personal Jesus”, de Marilyn Manson, criando assim uma cena de impacto na saída de Ig do bar em chamas.
A consciência , talvez seja um dos grandes estigmas nesse livro/filme, ou em obras que tangenciam a capacidade de pessoas matarem e se manterem com consciências incólumes. A única coisa que não gostamos muito no enredo de o “Amaldiçoado” foi o fato de não haver uma explicação para os chifres. Eles simplesmente brotaram na cabeça do Ig e você tem que engolir isso sem questionar, foi um ponto negativo bastante evidente. Mas temos receios de vandalizarmos argumentos, já que a hipermodernidade cobra de nós ineditismos e somos dotados à clássicos ou nada de beligerância ou voracidade de pensamentos novos. O confronto final é preguiçoso e não tem a agonia retratada no livro, até mesmo pela péssima escolha do destino do irmão do Ig. A cena ainda é comprometida pelos fracos efeitos especiais.
Contudo, o livro de Joe Hill – que também é o autor de “A Estrada da Noite” e “Nosferatu” – é muito mais sinistro, para alguns algo bom, outros ruim. Nós diríamos aqui até demoníaco, principalmente a parte em que o Ig faz um culto a cobras numa fundição abandonada. Confessamos que sentimos calafrios em nossas espinhas. O livro é bem tenebroso mas você passa a maior parte do tempo com um sorriso sádico vendo ele fazer “a coisa certa do modo errado”, você vai entender melhor quando ler. E vale muito a pena ler o “Amaldiçoado”, comprovando que os estigmatizados povoam o inconsciente literário seja no conto de Miguel Torga, “O Abafador”, onde o autor matava vítimas moribundas com mortes iminentes; seja na obra “Crime e Castigo”, em que uma senhora avarenta fosse a vítima com dolos suficientes para que fosse morta pelo estudante sem grana e que monetizou a pena da já parca vida em troca da morte da alma avarenta. Ou no livro/filme “O Leitor”, em que uma mulher com sobra do nazismo é ré, julgada e condenada por um julgamento acerca de um dos crimes do terceiro Reich. Então, tudo se repete.
E a banalidade do mal é posta inteira na frente da interlocução fazendo desmobilizar algo bem comum nessas obras de estigmatizados: a indiferença. Sistemas que instituem sistemas de violências com stafs, com cargos, com seções de obreiros em igrejas evangélicas e de estruturas que fazem com que personagens não assumam de fato a culpa pasteurizada de suas responsabilidades, assim como no filme do bruxinho Harry Potter, no julgamento de Eichmann e a sua indulgência subjetiva dimuta diante solução final nazista. Contudo, no filme, o roteiro e a direção optaram por conduzir a história de maneira preguiçosa, tentando apenas encaixar a narrativa no caso da solução do assassinato e da vingança do Ig, deixando de lado qualquer reflexão que o livro proporciona sobre a dicotomia entre o bem e o mal. O resultado final é decepcionante, uma história boa e mal aproveitada. O livro de Joe Hill merecia mais respeito e uma adaptação melhor.
Além disso, o mistério em torno da morte da namorada do Ig não ficou bem escrito. E, só por isso, valeria a pena uma continuação. Mesmo ele tendo sido esclarecido do jeito que foi (alguns minutos antes do final). Filme fraquinho para alguns, bom para outros, além de muitos o considerar cansativo demais, dadas as digressões, as voltas à infância da personagem. E alguns outros ainda acham que, exatamente por isso, o filme ganha a visão geral da intenção da história como um todo, mas nos parece que uma excreção quase católica, óbvio desnudada com catarses bem construídas. Para nós ainda, o detalhe do estigma, por ser obvio, é a grande chancela do mesmo, pois gostamos da escatologia sempre a uso como sinal dos tempos.
O livro é mais complexo e com alívios cômicos como no filme, mas ainda assim faltou a magia de Joe Hill.
O livro, contudo, é interessante, esperávamos mais, contudo, o final do filme é muito ruim. Quase ficamos com raiva por não termos encerrado a sessão quando descobriu-se o que aconteceu com a namorada do Ig. Mas quem quer que tenha concebido a ideia de tal final estava, muito provavelmente, sob efeito de algum psicotrópico como uma espécie de lembrete de que a humanidade naturalizou coisas, banalizou males. E não se pode safar disso, não é de bom tom executar esperanças sob a pecha das vilanias. A pressão de ser um livro do filho de um grande autor nos levou a ter grandes expectativas. O livro é mais complexo e com alívios cômicos como no filme, mas ainda assim faltou a magia de Joe Hill como é presente em seus livros anteriores. Contudo, assista ao filme, quem sabe haja estigmas em você também! E já está grandinho para assumir coisas não muito publicáveis. Mas grandes trunfos são, sem dúvida, a originalidade da história e o mistério que ela traz.
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