Apocalipse em escala corpórea a poesia de Carolina Braga Ferreira da Costa
“Esses dois livros essenciais anunciam o apocalipse não no porvir, mas no presente, evidentemente. Nos shoppings, nas megalópoles, nas clínicas de massagem”
I
Entropia e apocalipse: estas são as coordenadas de certa poesia brasileira contemporânea. A percepção do fim dos tempos, consumada ou a se consumar, conduz os versos de Bruno Brum em “Tudo pronto para o fim do mundo” [ed. 34, 2019]. Sob o signo do deboche e do brilhantismo lemos a respeito de praças de alimentação convertidas em barricadas; sobre “zumbis de havaianas que vomitam silício e pedem perdão”, sobre infartos na sorveteria, hambúrgueres de células-tronco, sobre hologramas de Elke Maravilha e fantasmagorias lúgubres de um Parque da Mônica pós-hecatombe. O clima do livro é o de regurgitar engasgos, de vômitos de hiper-realidades, de arrotos de sucata, de bads no happy hour, de detrito e empachamento; e com humor e ascese o poeta reúne a inflação de signos e o mundo-lixão dos tempos neoliberais num contundente diagnóstico alegórico.
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Uma poesia tematizadora dos dejetos do industrialismo empanturrado se encontra também no grandioso “Plástico Pluma” [Urutau, 2018], de Tomaz Amorim Izabel. Uma civilização mumificada, composta de personagens de videogame “cicatrizados em circuito verde”; rotinas prestes a desaparecer como “um bambolê de vapor de gelo” nas supernovas; assombrações que fritam “lêndea na manteiga” e mamam no amniótico são alguns exemplos dos absurdos da ultra-realidade que se encontram nessa obra.
Carolina Braga Ferreira da Costa
Esses dois livros essenciais anunciam o apocalipse não no porvir, mas no presente, evidentemente. Nos shoppings, nas megalópoles, nas clínicas de massagem, nas ondas de calor. Com mais amargor (o caso de Izabel) ou com mais cinismo e sarro (o caso de Brum, ou seria o contrário?) as linhas de ambos denunciam, de maneira genial, um tempo saturado de saturação mas “vazio como um peido”, para retomar David Lynch. O paradoxal é que o impasse detonado por esses escritores converta a leitura de suas obras num exercício de alegria estética.
II
A escatologia se faz também presente na obra de Carolina Ferreira Braga da Costa, fotógrafa, artista visual/digital e escritora negra, conforme define em sua autobiografia. Dona de um talento avassalador e de uma poética poderosa, no campo da imagem e no da poesia, a artista tem colaborado principalmente com revistas online: no dia 2 de setembro, alguns de seus poemas e light-paintings foram publicados pela Ruído Manifesto [http://ruidomanifesto.org/tag/carolina-ferreira-braga/], apenas para citarmos um exemplo. No entanto, nos versos da autora o agouro apocalíptico não atinge em cheio os aglomerados turísticos, as ruínas urbanas, as multidões. É na escala do corpóreo que o mal-estar na contemporaneidade se coloca, em suas poesias, perpassado pelo gênero e pela condição, mais do que humana, feminina, e mais do que feminina em geral, pela condição da mulher negra e brasileira, em específico:
“Meus seios, você os olha
enquanto este câncer radioativo corrói meu tecido mamário
começando internamente
caroceando o freio entre minhas axilas e eles
delimitados na sua palma máscula
às urgências de que sou sua
de que eles lhe são
de que podemos deixar que molhem os lençóis como mares
lágrimas
ainda me faço sua
me olha, intruso você
enquanto com os bicos acesos estou, como se eles o chamassem para a noite adentro
e luzes fossem
para que prove dos líquidos e deles
redondos, sem arestas do pequeno ponto, seio nosso mundo
sem gargantas secas
porque dali começa o paraíso
porque, mais abaixo, você o encontra, até que se acabe
embora não vá ao inferno-solo
não o alcance
são as suas cavernas
meus seios radioativos
lençóis gelatinosos
na iminência de serem a seca rapidamente
e se na cama estamos
para que admire o que socialmente me faz
mulher explícita
e se na cama estamos
para que me foda porque preencho os requisitos biológicos de ser fêmea
mulher ordinária
na cama estamos
para que de tudo faça e de que todo prazer sue
porque não houvera tempo
quando me despi
de lhe dar a notícia de que morro consumida por mim mesma
por eles
não houvera tempo de lhe dizer que morro
radioativa, amanhã
às quinze horas
sem ser mulher
e que talvez você não entenda que posso sê-lo sem estes tecidos de veias, vasos, pintas
sangue
não houvera tempo de lhe dizer
porque só me quer assim
só assim me vê
perfeita, com duas bocas
seios e fontes
mulher da sociedade desde os prelúdios das outras
que pousavam caladas
horas a fio para seus homens
sem que contassem a eles sobre a vida ou a morte
e sem que eles soubessem que elas ali estariam
até que a vida as levasse daqui
num sopro.”
[sobre ouvir as vozes de nossas mulheres II];
Apocalipse em escala corpórea a poesia de Carolina Braga Ferreira da Costa
ou ainda, em Metástase III:
“abre-me ao meio saber que não tem meu cheiro como o último odor doce no cenário apocalíptico de fogo
que não enxerga minhas cicatrizes nos seios como labirintos que o levam para alguma parte do mundo não catalogada
no miolo do acerto, abre-me ao meio ver em seus olhos o cinza do meio-termo, bem quando não me ama no último segundo do dia como sua musa moribunda, padecendo de amor
uma cratera, abre-me no corpo inteiro, dos pés cansados à cabeça que repousa na fronha manchada
todos os dias em que oceano na cama porque você não gira nos calcanhares, olha para trás e sente minha matéria só
porque à sua frente há algo melhor e mais bonito a ser contemplado, tocado
uma cratera sem luz, abre-me
quando seus punhos não deslizam sobre meu corpo-mundo
e os dedos estão trancados a sete chaves da palma da mão, a qual não compactua com a pele quente-brasa
abre-me ao meio carregar o peso de meus olhos derramando lágrimas, estas que, de forma suicida, inundam o quarto no qual varo todos os dias e todas as noites
e quando, por último, afogo-me em mim, nestas lágrimas nascentes
e quando mergulho sem você, não ouvindo sua voz trêmula, pedindo, por conveniência, para que eu alcance suas mãos, numa tentativa esbaforida de me salvar, assim, para que caminhe nas avenidas da vida com a culpa fora de sua vivência
eu morro antes que me note, que me ame
e me toque
e me tenha como mulher cuja pele de cor escura sempre confrontando.”.
Apocalipse em escala corpórea a poesia de Carolina Braga Ferreira da Costa
A poesia fascinante dessa jovem escritora é, por outro lado, recoberta de meandros, de mananciais. De ecos espirituais que chamejam na forma de imagens enigmáticas, sombrias e estranhas, e por isso mesmo repositoras de espírito e de imaginário. As ruínas do apocalipse consumado sobre as quais Carolina versa em seus poemas não são amontoados de lixo irreciclável ou trojan-vundos dos maremotos cibernéticos: são antes, portais de mistério, de medo, de violência, de angústia e de delicadeza.
São “foices estouradas”; é a “compra de uma casa na encruzilhada”; são lençóis freáticos que se revelam nas rachaduras dos pés; palavras da mãe, das mães, das avós brasileiras; são bússolas secretas captáveis apenas para quem, na fila do açougue e no mundo-cão, tem a sensibilidade de se emancipar do horror político, histórico e econômico sem dele perder a consciência, e constituir, pela voz e pela grandeza poética, o contraponto ao pânico que nos cerca, num determinante gesto de resistência. Poesia de beleza e tristeza é a de Carolina; é também de práxis e de chamado à ação. Por isso, em sua obra, vê-se aqui e ali a figura da curandeira. Na luta presente evocada por essa personagem, e no caráter ancestral que sua figuração também traz consigo, pode-se ver, em escala não mais corpórea, mas agora social e religiosa, um motivo para erguermos os olhos, e enxergarmos além da maldade sem fim.
Essas são apenas algumas leituras possíveis para os versos dessa grande poeta. Suas fotografias, note-se, também vão nessa direção. Produtos de longas exposições com o lado B da câmera, feitas com fogo e lanternas, com bombril incendiado, com sombras desenhadas no ar, suas imagens são fractações, pulsações de flúor, delírios de pálpebra, anagramas coloridos, estrelas cadentes sem o desgaste da velha metáfora. Se as imagens de nosso tempo apenas reiteram, infernalmente, o seu próprio excesso, o que propõe a fotógrafa Carolina Braga é a antítese de tal processo: suas criações são orografias da beleza num mapa de calor, fagulhas quase simples de tão indecifráveis, como holofotes acesos durante o pré-Cambriano, ao relento.
E os cílios, os corredorzinhos de luz e os túneis de cores que a artista compõe (por exemplo, na imagem “regina: recovering from depression”) nos anunciam, esperançosamente: um outro mundo é possível, e já está presente, entre nós, há muito tempo, pela ação e pela resistência. Logo, o apocalipse, para Carolina, é também afirmação da vida, em termos pessoais e em termos históricos.
***
Veja-se mais sobre a autora em:
Blog: confrontecompoesiahoje.com Instagram: @ferreiratcarolina
Portfólio: ferreiratcarolina.format.com