Aquarius
“Hoje, trago em meu corpo a marca do meu tempo” – Taiguara
Ninguém melhor que a música para reconstruir as memórias de uma vida inteira. Eu digo “ninguém”, porque a música, no esplêndido filme brasileiro “Aquarius”, é quase uma personagem onipresente, uma divindade incorporada nos objetos, pessoas, lugares, capaz de acessá-los numa dimensão atemporal, e que, paradoxalmente, traz à superfície das ondas da vida, com precisão, o tempo que passou, submergido no oceano de nossas memórias.
É político, sim, não poderia deixar de ser, uma vez que se trata da história de uma pessoa que, como qualquer outra, questiona seu lugar no mundo e briga por ele, ainda mais tendo atravessado o corredor da morte e sobrevivido, motivo suficiente para justificar a valorização dos sentimentos que perpassam cada detalhe do mais simples cotidiano.
O filme retrata , de forma muito sensível, as diversas facetas do “humano”, evidenciadas nos conflitos familiares. Eu enxerguei claramente minha família, como cada membro dela se comporta: os mais afetuosos e os mais materialistas.Constatei como, de fato, o bem e o mal nietzcheano coabitam nesse corpo humano, de alma, muitas vezes, tão desumana.
A belíssima e surpreendente película, de Kléber Mendonça Filho, fala de afeto, e da falta dele diante dos interesses materiais. A palavra “Aquarius” remete a” Era de Aquarius”, que, na astrologia, seria uma era de fraternidade universal, guiada pela razão, na qual seria possível solucionar os problemas sociais, levando a um desenvolvimento intelectual e espiritual. Porém, no filme, Aquarius é o “nó da narrativa”, o ponto de conflito, o qual revela o melhor e o pior do ser humano. Acredito que a escolha desse nome para o prédio, onde Clara (a protagonista) morava, tenha sido intencional, para nos mostrar que, em pleno século XXI, ainda continuamos distantes dessa tal evolução.
O desapego, o desprezo pelas coisas vividas, a sociedade líquida de Bauman está ali, estampada, e a Clara (protagonizada pela talentosíssima Sônia Braga) encontra-se lutando pela permanência de sua história, através da defesa do espaço onde viveu a vida toda, e pela preservação de suas memórias impregnadas nesse lugar, no qual os discos de vinil cantam e contam um fragmento do que foi sua vida, do que foi ela, mulher, filha, mãe, esposa, avó, irmã, tia, jornalista, e do que é, porque o que fomos nos compõe para sempre, não há como esquecer ou ser roubado, está em nosso DNA, como eternizou o grandioso Taiguara : “Hoje, trago em meu corpo a marca do meu tempo”, corpo que não é só feito de carne, mas de etéreos entornos que o definem – um corpo poético para aqueles que não se deixaram endurecer, para aqueles que foram capazes de ouvir sua música.
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(RaiBlue)