Capitães da Areia
Assim, entre erros e acertos, prefiro lembrar-me de Capitães da Areia pelo segundo viés, representado pela sua plasticidade admirável, que transporta-nos para uma Salvador abarrotada de riquezas naturais
Assistir Meia Noite em Paris invocou-me para um imediato desejo de me transformar num cidadão parisiense, tão somente para apreciar com um prazer mais crível aquela ode à Cidade Luz. Esse poder imagético que o cinema possui me foi sentido novamente, mas com uma peculiaridade: não precisei desejar ser de outro lugar, já que Capitães da Areia, de Cecília Amado, me contempla enquanto baiano e soteropolitano. Sua ode à Salvador é vista com deleite e sentida com intensidade, mas o racionalizar dos fatos evidencia que nem tudo são flores neste (amado) projeto.
Desde o primeiro plano-sequência, com os meninos correndo pelas areias da praia do Rio Vermelho, percebe-se uma câmera interessada em projetar a cidade de modo que sobressaíssem suas belezas naturais, sem entretanto forçar o espectador no processo de captação desta mensagem. Assim, toda a arte desenhada na trama acaba fluindo de forma bastante discreta, casando organicamente com as locações escolhidas e apresentando uma Salvador plasticamente bela, mesmo quando o foco central é o olhar sobre um trapiche velho e abandonado. Observa-se ainda um acertado trabalho de fotografia, que segue este viés de discrição e que foge da tentação de mostrar tão somente paisagens com cores exageradas, bem comuns em tramas ambientadas na cidade.
Esses cenários por sinal dialogam agradavelmente com a trilha sonora, conseguindo lançar no espectador uma carga emotiva eficiente, sendo difícil não se sentir afetado ao menos por algum instante. Há ainda uma montagem que se mostra interessante ao apostar numa ágil colagem de cenas, trazendo certo dinamismo na construção narrativa. Contudo, em alguns momentos essa colagem soa aleatória e confusa, como por exemplo na sequência que introduz a personagem Dora (Ana Graciela) na trama.
A beleza visual apresentada na história é entretanto contraposta pelo roteiro assinado por Cecília Amado e Hilton Lacerda, que peca em não acrescer à trama toda a densidade dramática por vezes necessária para a narrativa melhor fluir. Essa constatação se expõe mais claramente quando há diálogos longos, evidenciando assim o risco por escolher não-atores para os papeis principais. Percebe-se que os meninos são talentosos e que muitos deles terão um promissor futuro na área, mas em Capitães da Areia suas atuações mostram-se mecanizadas demais. Mas a responsabilidade, vale destaque, deve ser distribuída entre os diversos realizadores do projeto e não somente lançada aos garotos. Nota-se também uma subvalorização no desenvolvimento da narrativa, onde cenas mais secundárias tomam grande espaço de tempo, enquanto que sequências importantes (como a guerra de gangues ou o desfecho envolvendo Dora) são apresentadas mais apressadamente, prejudicando na fruição das mesmas.
Além disso, a história propriamente dita é digna de questionamentos, por trazer à tona um romantismo que não se sustenta por muito tempo, sendo prejudicada por uma rasa construção das personalidades. Uma das explicações recai no grande número de personagens apresentados no filme, fato que dificulta no desenvolvimento mais aprofundado de suas individualidades (seus desejos, sonhos e anseios). A sequência do carrossel, uma das mais emblemáticas de Capitães da Areia, se traduz como uma boa tentativa da trama em adentrar mais seriamente nesta perspectiva.
Assim, entre erros e acertos, prefiro lembrar-me de Capitães da Areia pelo segundo viés, representado pela sua plasticidade admirável, que transporta-nos para uma Salvador abarrotada de riquezas naturais. Certamente ela não se apresenta como uma cidade tão bem desenhada quanto à Paris concebida por Woody Allen, mas com certeza invoca uma sensação plena de satisfação visual. Cecília Amado explorou de modo feliz a força que o poder da imagem carrega consigo. E no fim das contas, seu avô, Jorge, tem motivos para se sentir homenageado (e amado).