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Carnaval de Salvador: impressões de um folião curioso

Coluna de Pedro Del Mar sobre política, educação, cultura e muitos outros assuntos

Carnaval de Salvador

Salvador abriga aquela que é considerada a maior festa a céu aberto do planeta: o carnaval. E só uma festa de proporções tão colossais consegue concentrar as mais diversas e antagônicas expressões em relativa harmonia. Aqui se vê, como diria a talentosa cantora paulista Tulipa Ruiz, “tudo tanto”. E, como tal, há um tanto de coisas boas e um tanto de coisas ruins. Primeiro, vamos falar das boas.

Não poderia começar de outra forma se não citando aquele que, para mim, foi o ápice da folia soteropolitana: a pipoca de Saulo. Foram 4 apresentações do cantor, todas sem cordas, sem blocos e sem camarotes. A ordem era democratizar, colorir e diversificar. Com o reportório do seu mais novo trabalho, o disco “Baiuno”, sucessos da carreira solo e músicas de outros artistas, Saulo trouxe para os circuitos Dodô (Barra-Ondina) e Osmar (Campo Grande) o resgate do carnaval popular como há muito não se via e fez um desfile memorável. O público compareceu em peso e deu um belo exemplo de que é possível curtir o carnaval, mesmo com um grande número de pessoas, de forma tranquila. Não vi nenhuma confusão, brigas ou incidentes violentos. Aliás, isso só ressalta o que muitos já dizem há um bom tempo: carnaval sem cordas reduz drasticamente a violência, como o próprio comando da Polícia Militar da Bahia reconheceu este ano (veja aqui: ).

Outro ponto alto ficou por conta do sempre inventivo e inquieto cacique do Candeal, Carlinhos Brown. Este ano Brown trouxe para a festa o que muitos jamais imaginariam, e se imaginassem, diriam que não daria certo: 2 bandas de heavy metal para um trio elétrico. Aliás, não duas bandas quaisquer, mas duas das maiores bandas do mundo, Sepultura e Angra. Os roqueiros subiram ao “camarote andante” e proporcionaram uma bela mistura de guitarras distorcidas e percussão, com um mar de fãs vestidos de pretos os acompanhando logo atrás.Um interessantemix que dificilmente sairá da cabeça de quem teve o privilégio de presenciar.

Não dá pra deixar de destacar também a figura sempre interessante e controversa de Igor Kannário, que mais uma vez levou uma multidão incrível para o Campo Grande e fez muita gente pensar, novamente, o porquê sua música e o seu público incomodam tanto.Mais uma ferida aberta que pulsa travestida de folia. O certo é que Kannário ignorou as críticas e preconceitos e mostrou para o Brasil o porquê que “depois de “nóis”, é “nóis” de novo”.

Baianasystem

Ainda, mas não menos importante que os já citados, gostei também de:

– a sempre inovadora música da BaianaSystem, que assim como em 2015, arrastou multidões neste carnaval. Como bem disse Manno Goes, BaianaSystem é o futuro do carnaval de Salvador, só não vê quem não quer.

– a pipoca de Armandinho e família, sempre irreverente e trazendo o melhor da guitarra baiana e clássicos dos carnavais passados.

– a pipoca de Margareth Menezes, pra mim, a voz mais poderosa da Bahia! Maravilhosa!

– a pipoca de Moraes Moreira, rei é sempre rei! Viva os Novos Baianos!

– os corpos de balé de Daniela Mercury e Carlinhos Brown, um verdadeiro espetáculo de dança, figurino e cenografia.

– O pranchão da Alavontê, sempre bom vê outro modelo de trio, mais próximo do público, mais intimista e, claro, com boa música.

– O “JazzTrio” do Maestro Letieres Leite & Orkestra Rumpillez, levando música instrumental de qualidade para um novo público. Excelente experiência!

– Os sempre belos blocos afros, mesmo tão ignorados pelo establishment, tão invisíveis para tantos, continuam a desfilar com maestria e resistência.

– A sempre diferenciada transmissão da TVE, de longe a melhor cobertura do carnaval de Salvador.

Rumpilezz – Foto de Fernando Eduardo

Ok, ufa! Fatores positivos não faltaram (ainda bem), mas não dá para deixar de falar de outros tantos pontos negativos que marcaram esse carnaval. Alguns, infelizmente, já são velhos conhecidos e insistem em permanecer, outros, deram as caras pela 1ª vez.

Não deve ter sido difícil imaginar que eu começaria pelo imbróglio envolvendo o monopólio de uma marca de cerveja nos circuitos do carnaval que gerou diversos protestos de consumidores e vendedores ambulantes. Afinal, é correto restringir as opções dos consumidores à única marca? É legal? A prefeitura está correta? Para responder estas questões, conversei com o advogado e professor universitário Lauricio Pedrosa, que me disse o seguinte:

1) “Entendo que viola os princípios constitucionais da livre iniciativa e da livre concorrência (CF, art. 1º, IV, art. 170, IV). Não encontro fundamento jurídico que possa legitimar a Prefeitura impor a marca do produto que deve ser consumido num espaço público. O seu papel consiste em disciplinar a venda de diferentes produtos, mas nunca de restringir a comercialização a uma única marca. Vejam o que dispõe o parágrafo único do art. 170 da Constituição Federal: “Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”. Desconheço Lei Complementar que autorize Prefeito a restringir a atividade econômica de comercialização de bebidas alcoólicas ou de qualquer outro produto a uma única fabricante, ou seja, essa restrição estabelecida em Salvador é inconstitucional.”

2) “Não se trata de evento privado nem de área particular, mas de manifestação popular, surgida espontaneamente, e que ocorre em ruas, praças e avenidas, bens de uso comum do povo. Como se pode tolerar tamanha restrição a áreas que são bens de uso comum do povo? Não são espaços pertencentes à Prefeitura, mas ao povo. (Código Civil, artigo 99: “São bens públicos: I – os de uso comum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e praças;”

3) “Existem maneiras mais inteligentes de se obter patrocínio sem ferir princípios e regras constitucionais, ou seja, o argumento do valor arrecadado não é suficiente, por si só. Essa não era a única maneira de se obter esse valor com patrocínios.”

4) “Entendo que tal comportamento representa uma prática comercial coercitiva e desleal, pois o consumidor termina por adquirir determinada marca de cerveja não porque deseja, mas por falta de opção, o que viola o Código de Defesa do Consumidor (art. 6º, V).”

Bom, após essa aula do professor Laurício, acho que não restam muitas dúvidas de que esta opção de financiamento foi uma baita mancada da Prefeitura de Salvador. E que fique claro, não se trata de reclamar por ser marca x ou y, ainda que fosse a melhor cerveja do mundo, a prática seria igualmente ilegal. Resta-nos torcer para que o próximo prefeito, ou se o mesmo se reeleger, reveja essa prática que em nada combina com o carnaval, afinal, carnaval incide em liberdade em todas as suas formas, inclusive a de consumo.

Machismo! Esse, mais uma vez, marcou forte presença no carnaval soteropolitano. Mulheres foram agredidas por dizer “não” a cantadas, outras foram beijadas á força e muitas tiveram que lidar com piadinhas e ofensivas de homens que ainda não aprenderam que as mulheres não nos pertencem, não pertencem a ninguém se não a elas mesmas e merecem ser respeitadas em qualquer ocasião.

Abordagem da Policia no Carnaval

Abordagem policial seletiva! Mais uma vez não foram poucas as vezes que vi abordagens policiais arbitrárias a foliões negros. Cidadãos que estavam curtindo a festa tranquilamente e sem motivo aparente foram abordados, quase sempre de forma ríspida, pela Polícia Militar para uma revista que não consigo ver justificativa. Eu, branco, nunca fui abordado, por quê? Não é possível tolerar essa seletividade que endossa o racismo nas ruas de Salvador. O que vi no carnaval, acontece todos os dias pelas ruas da cidade, em especial nas periferias. Lamentável

Julgamentos precipitados! Já nos últimos dias da folia momesca, foi amplamente divulgado um vídeo onde uma vendedora ambulante enchia garrafas de água mineral com água do gelo derretido do seu isopor. Logo choveu uma enxurrada de críticas a vendedora, acusando-a de manipular o produto e vender a água do isopor como se fosse mineral. Foi um verdadeiro linchamento virtual. Bom, mas como tudo tem um outro lado da história… logo se descobriu que, na verdade, aquelas garrafas que ela enchia não eram para serem vendidas, e sim para serem entregues aos associados do bloco Muquiranas, para que eles pudessem encher suas tradicionais pistolas d´agua. Quem conhece o bloco sabe que essa prática é comum, inclusive os foliões só compram cerveja nos ambulantes que lhe fornecem essa água, por isso a vendedora em questão o fez, como tantos outros fazem, para não perder clientes.Agora imaginem quantas injustiças como essa não já foram cometidas por julgamentos precipitados na internet? Então, muita calma na hora de divulgar certas “notícias”…

Bom, certamente deixei de relatar outros tantos fatos positivos e negativos que esqueci, não vi ou não coube neste artigo. Resumir 9 dias de carnaval em um pequeno texto não é fácil. Entre mortos e feridos, creio que o Carnaval de Salvador de 2016 começou a executar um longo processo de reinvenção que se aprofundará nos próximos anos. O meu desejo é que essa reinvenção siga a trilha de uma festa mais inclusiva, com cada vez menos cordas e outras barreiras, simbólicas ou concretas, que separam os foliões. Que seja mais diversificado e plural, que recupere a sua verdadeira essência popular, uma festa gigante que abarque todos. Só assim faremos verdadeiramente a maior festa do planeta!

Pedro Carvalho (Del Mar) é graduando em Direito e em Ciências Sociais. Desde a adolescência participou ativamente de movimentos estudantis e sociais na Bahia e em Minas Gerais. À margem destas atividades, mas não menos importante, cultiva o hábito da escrita, sempre atento ao que acontece na política, sociedade, comportamento, educação, cultura e entretenimento no Brasil e no mundo.

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