Literatura

Cinema: Cássia Eller é um documentário para ver de olhos bem abertos

Cássia Eller

“Quem viveu com intensidade os anos 1990 e o início da década seguinte certamente se emocionará…”

Por Elenilson Nascimento

No dia 29 de dezembro de 2001, recebo uma ligação de um colega de trabalho me informando da morte dela: “Elenilson, já soube? A Cássia morreu!”. Não consegui, naquele momento, ligar o nome a pessoa, pois para mim aquela voz que sempre gritou no meu som estava acima de todas as finitudes que afetam nós mortais. “Que Cássia, maluco?”, perguntei. “A Cássia Eller, porra!”, respondeu. Alguns anos depois, escrevi um conto chamado “29 de Dezembro” que entrou no meu livro “Memórias de um Herege Compulsivo” que fala justamente da morte da Cássia, não a Cássia estrela, mas daquela menina corajosa que eu sempre soube admirar e, como tudo na minha e na vida dela, as coisas pesam mais na cor.

Agora, anos depois, vendo o excelente documentário musical sobre a Cássia Eller, depois de ter me decepcionado muito com os últimos lançamentos nesse gênero como “Cazuza, O Tempo Não Pára”, “Uma Noite em 67”, “Raul – O Início, o Fim e o Meio” e “Olho Nu” (sobre Ney Matogrosso) – mas “Noel, O Poeta da Vila”, “Simonal – Ninguém Sabe o Duro que Dei”, “Elis Regina – Por Toda a Minha Vida”, “Novos Baianos F.C. 1975”, “Titãs – A Vida Até Parece Uma Festa” e “Vinicius de Moraes” são ótimos! – pude perceber que alguns diretores ainda têm pegadas quando resolvem tirar das gavetas “imagens raras de arquivo + depoimentos”, mas pecam quando não se preocupam muito em explorar caminhos desconhecidos da vida do documentado, optando apenas pelo caminho mais fácil: de contar o que todo mundo sabe. E isso, talvez, pode até gerar filmes interessantes, mas nunca resultará em um longa inesquecível. E este é o caso de Cássia.

Dirigido por Paulo Henrique Fontenelle, de “Loki – Arnaldo Baptista” e “Dossiê Jango”, o filme conta a história da vida e da obra de um dos maiores nomes da música brasileira no final dos anos 90 e início dos anos 2000. E um dos poucos nomes que ainda vale a pena comprar CDs (isso se alguém ainda compra CDs!). Exibido fora do circuito de competições Rio-SP (2014), o longa explora bem a dicotomia da personalidade da artista agressiva, que era tímida fora dos palcos e explosiva em cima deles. Com várias entrevistas pessoais e depoimentos de parentes e amigos que colaboraram sem pestanejar, o documentário consegue emocionar não só os fãs, mas quem realmente gosta de música.

Na teoria, era de se esperar que pouca coisa da história de Cássia estivesse fora do conhecimento popular. Mas o longa mostra que não é bem assim, oferecendo imagens históricas do início da carreira, em que atuou em peças com Oswaldo Montenegro, muitas fotos inéditas, e abordando várias informações acerca da artista que nunca foram exploradas pela grande mídia. Conta com depoimentos marcantes de Nando Reis, Zélia Duncan, Lan Lan e muitos outros, além de uma leitura de cartas pessoais pela voz de Malu Mader. O documentário possui um ritmo extremamente ágil, semelhante ao das canções da própria biografada, mas conta também com outros inúmeros momentos emocionantes. Curioso notar que nem sempre tais momentos nascem das cenas que em tese seriam mais tristes.

E o início em Brasília, suas principais parcerias (musicais e amorosas), os grandes momentos da carreira e sua morte. Aborda ainda o tratamento asqueroso da imprensa para seu falecimento (*a capa da Veja é ridícula). Mas ouvi-la cantando “As Coisas Tão Mais Lindas”, “Malandragem”, “O Segundo Sol”, dentre outras, vai levar o público a se emocionar mais do que quando o filme trata de sua morte. Senti muita falta da música “Palavras ao Vento” na trilha, mas é impressionante a força da voz dessa mulher, tanto para as músicas mais leves quanto para os mais pesados rocks. A sua versatilidade, que ia de Nirvana um sambinha de Itamar Assumpção, passando por Chico Buarque, Caetano, Brown e Edith Piaf, já era conhecida por parte do público, mas o documentário trata de deixar muito bem exemplificado.

Cássia Eller

Esse documentário é um dos poucos que trata-se de uma obra extremamente empolgante, elucidadora e, principalmente, corajosa. O filme não esconde a relação dela com as drogas e os vários casos que teve fora da relação de vários anos com a companheira Maria Eugênia, que é uma das principais entrevistadas da produção. Você poderá ficar perplexo, com eu fiquei, com o caso da morte do pai do filho da Cássia, o músico Daniel, que morreu uma semana antes do nascimento de Chicão – que aparece ao final do filme apenas para “assombrar” o espectador com as semelhanças com a mãe.

Um filme extraordinário sobre uma pessoa extraordinária – uma gatona, uma tigresa extraordinária que nos deixou cedo demais. Um filme suave, mas deve ser, para alguns, muito revelador descobrir que ela morreu em decorrência de um infarto e não da tão divulgada overdose. É muito divertido vê-la numa entrevista para Jô Soares em que revelava ser a segunda cantora favorita do filho, perdendo para Marisa Monte. Mas o diretor tratou da breve, mas importantíssima, disputa judicial pela guarda de Chicão após a morte da artista, quando pela primeira vez na história a Justiça brasileira concedeu a guarda de uma criança para uma companheira da mãe.

É um filme para ser visto e revisto. E vá preparado para se emocionar e se arrepiar várias vezes ao longo da projeção, como nos momentos emblemáticos como a gravação do “Acústico MTV” (que, a princípio, a direção da falecida emissora não queria fazer) e o lendário show no “Rock in Rio”, com o Chicão na bateria, onde tocou “Smells Like Teen Spirit” do Nirvana. Mas a Cássia que fica para o espectador é a garota tímida, apaixonada pelo filho e que só queria cantar.

Contudo, mesmo com vários momentos lindos e extremamente importantes, há certa falta de ousadia na produção, mas a qualidade excelente do material torna este documentário rico, construindo um relato completo e tocante da artista. Em determinado momento, Oswaldo Montenegro diz o seguinte: “Cássia desimplicou o Brasil”, querendo dizer que ela fez mais do que repassar as polêmicas e recuperar as nostalgias dos hits e contextualiza a sua obra trafegando entre vários estilos e quebrando barreiras que existem entre a MPB, o rock, o samba de raiz, o pop radiofônico e outras categorias estanques.

Cássia foi um fenômeno até hoje incomparável no pop nacional. Quem são os ídolos da música hoje? Anittas? Roberto “caduco” Carlos? Os pagodeiros e axezeiros? Não troco uma música da Cássia por todas ass obras desses moços. Pobres moços! E o documentário segue mostrando uma Cássia de personalidade extremamente tímida e avessa a bajulações, mas que se transformava no palco quase como se baixasse um espírito de um terreiro.

O documentário consegue mostrar um retrato honesto da cantora e vai além dos clichês alimentados sobre ela. O filme não é brilhante em sua narrativa, mas constrói com delicadeza a evolução musical de Cássia. Se em determinado momento estamos vendo na tela um longa sobre direitos LGBT no Brasil ao reviver o processo que deu a guarda de Chicão para Maria Eugênia, em outro podemos conferir a poesia na obra da artista. Mas o diferencial deste filme sobre uma das cantoras mais talentosas e queridas do Brasil é o quanto ele é humano, toca fundo nos aspectos mais pessoais da artista, sem fugir de casos mais polêmicos, como sua relação com as drogas e sua vida sentimental.

Filme Cássia Eller

Saudades de Cássia que, até então, só foi muito bem retratada no belíssimo CD “Com Você… Meu Mundo Ficaria Completo” (1999), fruto de um esforço para se reinventar, mostrando que era mais do que uma cantora que gritava, trazendo composições totalmente inéditas de grandes artistas, com destaque para Nando Reis, que produziu o disco. Mas, talvez, em meio ao excesso de shows, de uma agenda lotada, das cobranças, no auge de sua popularidade, vieram todos os excessos, drogas e casos extraconjugais que encurtou uma das carreiras mais brilhantes que esse país já viu. Mas é curioso e perturbador saber que ela já previa a própria morte, quando conversou a respeito com o tio e guitarrista da sua banda, conforme depoimento apresentado. Em suma, é um filme para ver de olhos marejados. Mas bem abertos.

Elenilson Nascimento – dentre outras coisas – é escritor, colaborador do Cabine Cultural e possui o excelente blog Literatura Clandestina.

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