Divaldo – O Mensageiro da Paz
“O filme traz o tema mais recorrente em plena pandemia viral, exibindo o mal em sua banalidade, mal excrescente, ficando em uma espécie de reflexão que percorre o ideário espírita: não há fatalidade na morte, ela acontece.”
Por Elenilson Nascimento e Anna Carvalho
Para a ciência, espíritos não existem. Para os estudiosos nosso caráter, nossa personalidade, nossa inteligência, nossas escolhas, nossos caminhos, tudo é determinado pelas conexões cerebrais. E quando morremos, as células têm o mesmo fim, sem deixar possibilidade para almas ou fantasmas aflorarem e passarem a eternidade arrastando correntes. Contudo, os próprios cientistas admitem que experiências sobrenaturais e de contato com os mortos estão presentes em diversas civilizações e são quase tão antigos quanto a escrita. Na Idade Média, quem tinha alucinações era considerado herege. Joana D’Arc, por exemplo, foi queimada em 1431 quanto tinha 29 anos, mas começou a ouvir vozes e perceber luzes estranhas ainda adolescente. Hoje, os espíritos inspiram todo um gênero de cinema – os filmes de terror e/ou os filmes espíritas. E com tantas histórias sobre o lado de lá, é muito fácil acreditar que realmente existe algo além ao nosso redor. E Hollywood está sabendo tirar proveito disso.
Nos últimos anos, já foram lançados vários títulos – muitos destes com um sucesso arrebatador de público – sobre as manifestações de espíritos entre nós: “Em Algum Lugar do Passado”, “Ghost – Do Outro Lado da Vida”, “Amor Além da Vida”, “O Sexto Sentido”, “A Cabana”, “O Mistério da Libélula”, “A Casa dos Espíritos”, “As Cinco Pessoas Que Você Encontra no Céu”, “Um Olhar do Paraíso”, “Kardec: A História Por Trás do Nome” entre muitos outros bons filmes. Porém, tivemos também muitos filme esquecíveis: “O Filme dos Espíritos”, “Bezerra de Menezes: O Diário do Espírito”, “Chico Xavier – O Filme”, “As Mães de Chico Xavier” e “Nosso Lar”, só para citar alguns. O Brasil tem uma das maiores comunidades espíritas do planeta e, refletindo sobre este fato, diversas produções cinematográficas nacionais já abordaram os diferentes assuntos que o Espiritismo estuda, e muitas delas feitas no facão. Contudo, todo cuidado é pouco ao se escrever sob juízo de médium ostensiva, espírita e, por vezes, cansado desse corporativismo estruturalista que existe também em uma doutrina que alimenta egos, isolamentos, hierarquias, fascinações, humanismo, liturgias, estruturalismo e, por vezes, reflexos de um status quo sim. É uma doutrina científica entre humanos, não nos esqueçamos.
O jovem ator Guilherme Lobo vivendo Divaldo Franco na juventude.
E com o lançamento de “Divaldo – O Mensageiro da Paz” (2019), mais uma vez, a credibilidade dos filmes nacionais foi colocada à prova. Contudo, não foi dessa vez que os críticos mais ranzinzas tiveram um material para listar defeitos, pois a produção dirigida por Clovis Mello – de “Ninguém Ama Ninguém” e “Coração Vagabundo” – foi uma grata surpresa após os vários filmes espíritas muito fracos, mal dirigidos e cheios de clichês. Para o público espírita ou admiradores da obra do médium baiano, nascido na cidade de Feira de Santana, no ano de 1927, Divaldo Franco, com uma produção e curadoria eficiente de Isabela Veras, foi um presente. O enredo acompanha a vida do pequeno Divaldo (João Bravo), que desde os quatro anos convive com a presença de espíritos. E por essa razão é rejeitado pelos vizinhos e reprimido pelo pai mais católico do que o papa – mas este período é sempre mostrado no filme com muito humor. Não deve ter sido nada fácil dormir e acordar desdobrando ou vendo diversos espíritos arrastando coisas e pessoas mortas reclamando e exigindo atenção. Por mais que haja e há uma normalidade para médiuns ostensivos verem pessoas mortas, a morte assombra e eu, do alto de uma mediunidade de quase meio século, ainda hoje me assusto e o medo não me parece ser relevante ou irrelevante, seja melhor ou pior, pois sou eu, sou minha melhor versão. E o filme mostra isso de maneira bastante fluida.
Se Chico Xavier é, sem dúvida, o nome mais conhecido do movimento Espírita, Divaldo Franco não fica muito atrás. Autor de 270 livros e fundador da Mansão do Caminho, que atende mais de 3.000 pessoas por dia em Salvador, o médium baiano agora ganhou uma cinebiografia para chamar de sua. “Divaldo — O Mensageiro da Paz” traz o excelente Ghilherme Lobo defendendo muito bem o protagonista na juventude, e Bruno Garcia que pega o papel na fase adulta. A mãe de Divaldo, interpretada pela sempre excelente Laila Garin, o incentivou a estudar em Salvador e, por lá, o rapaz desenvolveu a mediunidade num centro espírita. Porém, o protagonista, não raro, é atormentado por um espírito obsessor, interpretado por Marcos Veras – que, por sinal, deu um show – e tem o espírito da freira Joanna de Ângelis, outrora Joana Angélica, interpretado maravilhosamente por Regiane Alves, como conselheira e protetora, além da presença do espírito do jornalista e escritor de Murutiba (BA), Humberto de Campos, por quem eu nutro admiração pela sua história e pelo livro “Sombras Que Sofrem”, de 1936, e por quem Drummond citou em uma entrevista bombástica à Veja, em 1980 (“Todo mundo lia seus livros. Hoje, não há um editor que se lembre de publicar…”) – essa e outras entrevistas podem ser encontradas em uma coletânea da Veja chamada “A História é Amarela” – uma antologia com 50 entrevistas, publicada em 2017.
A premiada Laila Garin, brilhando como Ana, mãe do famoso médium. “Quer dizer que eu vou ter que enterrar a minha filha como excomungada? Não aceito!”
Mas, além da competente recriação de época, o filme se vale da inusitada combinação do horror com o humor. Enquanto o espírito obsessor é assustador, a graça ganha pontos pelas brincadeiras do protagonista com o sobrenatural. Se eu não estou enganado, algo muito parecido era feito pelo espírito Emmanuel que acompanhou e assinou a autoria de boa parte das obras psicografadas do Chico Xavier. E embora a produção conte com um bom elenco, alguns diálogos soam empolados e recorrem ao didatismo. Laila Garin, sempre competente, que fez a Elis Regina em um musical de sucesso, atriz renomada da Rede Globo, que aparece aqui mínima, grande, forte, típica de uma atriz que exige vestes, camadas, frágil, resiliiente em dividir seu filho com o mundo. Penso nessa generosidade que me rendeu choro na cena de seu desencarne no filme. Lembrou-me de tantas cenas líricas, épicas e o filme segue no desmonte humanista do médium consagrado que fez mais de 13 mil palestras, publicou inúmeras obras, acolheu órfãos, e que seguiu sempre em frente.
No enredo, o diretor fez questão de mostrar que desde cedo é perceptível o comportamento incomum de Divaldo. De origem humilde, sempre foi uma criança alegre e respeitadora dos mais velhos. Já adolescente percebe que ajudar ao próximo é uma obrigação e sente, cada vez mais, a presença da mentora Joanna de Ângelis. É então convidado para morar em Salvador, centro maior e com mais chances de vida em todos os sentidos, além de oportunidade de autoconhecimento. Então, aprovado em um concurso público do IPASE, partir daí a sua nova trajetória, continua vendo mais espíritos no balcão para pedidos de aposentadorias e se dedica a fazer a caridade em toda sua plenitude, onde parte do seu salário é sempre para o próximo. O ator Bruno Garcia, por exemplo, chamou atenção sem o peso do protagonismo ou da exibição em holograma de uma personagem viva, que conseguiu ser verossímil, palatável. O ator rui o peso de ser um ator consagrado e nas últimas cenas consegue desestruturar em sendo Divaldo até no ensejo físico, no histo da viz sincopada, da calma típica do médium, com seu riso ostensivo de todo o sempre.
O ator Marcos Veras, vivendo um espírito obsessor: “As pessoas vão querer praticar uma boa ação”.
Divaldo, já adulto, se percebe ainda mais quanto ao seu caráter não se curvas às adversidades. Afinal, ele também tem problemas, tem medos, receios e anseios ao aceitar a espiritualidade. Mas a essência é puro amor. Muitas cinebiografias podem pecar em muitos aspectos, podem ser piegas, econômicas, didáticas, molharem demais na tinta, escolherem omissões ou intromissões pontuais, beirarem ao texto epistolar de rasgações de seda sumárias sem enfocarem seus representados sob sua humanidade (*vide o resultado tenebroso que ficou o filme sobre o Erasmo Carlos). Mas, especificamente, este filme de Clovis Mello tem um tamanho certo longe do status piegas de algumas produções ditas espíritas dotadas de inverosimilhanças, proselitismos ou tolerâncias ao rebuscamento que a doutrina exibe como praxe.
A atriz Regiane Alves, por exemplo, vivendo a mentora de Divaldo, consegue ser a própria, agregando alma dulcíssima, ágil, didática, amorosa, exigente, terna, tênue, forte e cheia de humor. Exibindo diálogos de envergadura moral que sempre constituem médiuns bons em retóricas ou improvisos, cobrando responsabilidades, o que me parece algo muito maior: o médium da envergadura de Divaldo é mostrado ainda mais humano, erra, cai longe da aura diletantista de muitos que por estarem em tablados, serem líderes de milhões de seguidores, aparecem quase sem a nevralgia comum aos meros mortais.
O filme é bem dinâmico, leve, tem humor ácido glicólico, quase um álcool em gel, longe de uma espécie de cátedra ou púlpito, não tem objetivo de ser professoral, mas tenta colocar atores e atrizes em papéis nada comuns, incômodos, em desestrutura com que são de fato, explico: estão menores, irreconhecíveis, pois cederam muito bem suas peles. O humorista Marcos Veras, por exemplo, ficou irreconhecível como o obsessor do médium, num viés dramático de ira desconhecida, mostrando ser um grande ator, apesar dos papéis pífios na TV: a composição nefasta do obsessor mais constante de Divaldo causa medo, o ator, em sua desestrutura, poderia ter caído no exagero caricato, mas não o fez.
Destaco a cena do quase suicídio do médium nos muros do Elevador Lacerda (*fiquei imaginado como colocaram o ator em cima daquele muro sem ele cair no precipício da Cidade Baixa), algo muito comum em vidas de figuras que escolhem ser ou estar sob sequestro da mediunidade, que por mais que seja uma faculdade normal, estigmatiza, traz pesos, pois há certo peso do estoico, somos fax de desencarnados, desastrados por natureza, deliberadamente atentos, sinuosos, vigilantes, voyeurs, com certo elan ao dramático, vivemos sob sequestro muitas vezes do etéreo. E temos também a necessidade de uma vigilância moral acima do normal, vivemos sob a pecha de vivermos sob uma espécie de dialética entre o que seja premonitório, paralelismo ou intuição pura e simplesmente. Vivemos sob especulações da morte e da vida, sem nenhum glamour, apenas com uma capacidade a mais, por assim ser, somos mais testados, mais implicados talvez.
Um dia ouvi alguém dizendo que a grande reflexão que ficou da morte de um ente querido foi que a morte chegou com ele vivo. A morte não é castigo, pois talvez seja livida em mostrar que seja democrática, num planeta em que pessoas estão em fragilidade mortal, cara a cara com a sua fraqueza, cara a cara com vilanias abissais, com virus fazendo de reféns, políticos inescrupulosos, grandes ladrões na acepção vierina, ética, ideologia, cordialidade civil de um país em sequestro de si mesmo. Mas “Divaldo – O Mensageiro da Paz” traz o tema mais recorrente em plena pandemia viral, miral, exibindo o mal em sua banalidade, mal excrescente, ficando uma espécie de reflexão que percorre o ideário espírita: não há fatalidade na morte, ela acontece.
Parte do elenco principal com o próprio Divaldo Franco, na estreia do filme, em Salvador (BA).
Essa cinebiografia não é somente uma homenagem em vida a Divaldo Franco, mas um presente ao espectador. Tudo o que faz é com amor. E não há quem saia da sessão do cinema sem querer mudar sua vida para melhor. Da equipe técnica, o figurino, maquiagem, fotografia e resgate de época são perfeitos. Em três atos distintos e três bons atores, o público sente como o médium viveu e até hoje vive, com 92 anos, em prol da caridade. Ótimo filme nacional. Nele você verá respeito às religiões, respeito ao próximo e poderá conhecer um pouquinho mais sobre esse, que é considerado um dos maiores médiuns do Brasil.
Ver o filme de Divaldo me deu alento, pois esse médium que não se abstém de nenhum assunto, muitas vezes trata dessa mesma política que prova que o País que adoeceu antes: doente moral, por assim ser. Nossa quarentena veio antes, pusemos tantos cancelados, calcinados, dormindo em redes sociais e ainda hoje em meio à pandemia global, a cidade que escolheu Divaldo matou duas pessoas comuns por chuva, por despreparo, destempero, invisibilidade social. O filme serviu nesse cenário de guerra tácita, essa guerra com mesma intolerância das demais guerras fisiológicas da história, hoje como uma espécie de paz , a paz de ter ainda luzes sobre descaminhos.
No final do filme, se ainda não sabe, é descrito o trabalho de caridade do médium, com 600 filhos adotivos, criador da Mansão do Caminho, um complexo educacional com cerca de 83.000 m2 e várias edificações. Atendendo até 3.200 crianças e jovens de famílias de baixa renda, com distribuição de mais de cinco mil refeições diárias, mantida com sua obra. Vá ao cinema com o coração aberto! Conheça Divaldo Franco! E em meio a uma guerra tácita, covarde e que prova tantas iniquidades humanas, Divaldo pacificou.
Divaldo – O Mensageiro da Paz | Trailer Oficial
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