Como Esquecer
A dor da separação é uma das piores dores que um ser humano pode suportar. Porém, muitos não só suportam como superam e, até, conseguem seguir em frente.
O cinema brasileiro, assim como o cinema estrangeiro, já narrou inúmeras vezes a história de uma pessoa abandonada pelo seu grande amor, a tragédia que é, para essa pessoa, a separação, e o difícil caminho do aceitar viver sem a pessoa amada. Exatamente por isso, COMO ESQUECER, filme de Malu de Matino, baseado no livro de Myriam Campello, não é nenhuma grande novidade dentro da filmografia nacional nem mundial.
O filme conta a história de Júlia, uma professora universitária de Literatura Inglesa, que foi abandonada pela companheira, com a qual vivera por mais de dez anos. Sem chão, Júlia está (ou é) amarga, egoísta e sem condições de superar – ou querer tentar superar – a imensa solidão na qual ela se encontra inserida, após o término do relacionamento. Sua dor, muitas vezes, chega a ser muito mais forte do que ela própria. Pequenas questões do dia a dia tornam-se quase insuportáveis para Júlia resolver, como quem vai pagar o aluguel agora, já que isso, e muitas outras coisas, como a conta bancária, eram questões resolvidas em parceria com Antonia, sua ex-companheira, personagem, aliás, altamente citado no decorrer de quase todo o filme, mas que nunca aparece na história, nem nos belos vídeos gravados do casal, numa viagem que elas haviam feito a Londres.
Ana Paula Arósio em Como Esquecer
Aparentemente, não há um futuro nem ao menos sereno para Júlia, quanto mais feliz. Mesmo muito relutante a princípio, ela decide morar numa casa, dividindo o espaço com o amigo Hugo, que é gay e que também tenta superar um término de relacionamento – seu companheiro tem um ano de falecido -, e com Lisa, uma jovem que foi abandonada, grávida, pelo namorado, e que é bem mais amiga de Hugo do que de Júlia.
Muitas são as qualidades de COMO ESQUECER, as quais eu poderia citar aqui e discorrer sobre. Porem, vou me concentrar em pelo menos duas, exatamente as duas que foram mais citadas – e criticadas – à época do lançamento filme, em 2010: o diálogo com a literatura, em especial, a literatura inglesa, e o ritmo do filme.
Júlia é uma acadêmica, é uma intelectual e é a orientadora da mestranda interpretada por Bianca Comparato. E as constantes menções a escritoras gays, como Cassandra Rios e Virginia Woolf, além de uma sempre presente e, às vezes, quase exaustiva citação a Morro do Ventos Uivantes, norteiam toda uma discussão literária no filme, discussão esta muito bem vinda à narrativa, ainda mais se levarmos em conta o significativo fato de que, pelo menos, os personagens centrais da trama estão inseridos num contexto literário. Até Hugo, que não é professor e, sim, ator, estuda o texto do livro de Emily Brontë para uma produção da televisão, na qual ele atuará. E, grande e importante detalhe: você não precisa ser um expert ou, sequer, um simples leitor da literatura inglesa, para entender todas essas citações. O roteiro do filme se incube de não confundir a cabeça do espectador com as citações de autoras que, talvez, nem sejam tão conhecidas assim pelo grande público: o roteiro consegue passar uma mensagem sem necessariamente o público ter que saber quem foram essas autoras nem as nuances e o contexto literário de cada uma delas.
E o ritmo do filme de Malu de Martino não só merece ser citado e discorrido, como elogiado. Contrariando várias críticas do filme, eu afirmo que o ritmo dado pela diretora e pelo editor do filme é de uma coerência e regularidade muito bem vindas. Decididamente, COMO ESQUECER não é um filme lento. E as três fases da personagem Júlia estão muitíssimo bem contadas – e interpretadas – dentro dessa narrativa: a dor insuportável e a quase certeza absoluta de que ela não conseguirá mais seguir, apesar de seguir (ou deixar-se ser levada pelas obrigações cotidianas); a chance que ela, finalmente, se dá, de tentar mudar aquele seu atual estado de espírito e, por fim, o reconhecimento de que pode ser possível, apesar de toda a mazela que a ruptura do relacionamento lhe trouxe, de continuar a viver e, quem sabe, voltar a se relacionar de novo com outra mulher.
Murilo Rosa em Como Esquecer
Júlia é seca e prepotente. Muitas vezes distribui, sem a menor cerimônia, comentários ásperos, frios, grosseiros. Porém, graças à ótima atuação de Ana Paula Arósio, não conseguimos sentir antipatia por ela. Inclusive, mesmo em alguns momentos dessa aspereza toda de uma personagem riquíssima, do ponto de vista dramatúrgico, vê-se um humor ali presente. Sutil, sim, porém um humor. E muito provavelmente percebemos isso devido à explícita sintonia que há entre direção e atores, em especial, Ana Paula, sem dúvida, a melhor atuação desse filme.
COMO ESQUECER é um drama, sim, e um drama com D maiúsculo. Do roteiro à direção, passando pela bela fotografia de Heloísa Passos, temos um filme muitíssimo bem feito, que nos envolve, nos emociona, que conta a história não de um processo de separação, mas de uma mulher separada, que está aos cacos, devido a este abandono. A primeira sequência do filme – a dos vídeos feitos de Júlia, em Londres, gravados por Antonia, ao som de Retrato em Branco e Preto, de Tom Jobim, na voz de Elis Regina –, é de arrasar, exatamente por mostrar uma Júlia feliz, uma Júlia que expressa, através dos belos olhos de Ana Paula Arosio, todo o amor que ela sentia pela companheira, uma Júlia que nunca veremos no decorrer de todo o filme, salvo nos momentos desses vídeos que ela e a companheira fizeram, quando estiveram em Londres. E logo depois dessa sequência inicial, o plano detalhe de uma foto, segurada por Júlia, para em seguida vermos um maravilhoso close de Júlia, chorando e queimando a tal foto… Não há como ficar indiferente à delicada situação vivida pela personagem.
O filme é perfeito ao narrar a trajetória de um personagem abandonado pelo seu grande amor. Desde o chorar copiosamente, que pode levar semanas, meses, até a necessidade de que o mundo saiba do seu sofrimento, passando pelo período de improdutividade, pelos momentos destinados aos planos de vingança e/ou aos desejos de morrer, até o momento em que o ser abandonado resolve fingir que a vida voltou ao normal. Tudo isso é mostrado de uma forma segura, delicada e verdadeira no filme, sem nunca, em absolutamente nenhum momento, cair no dramalhão.
Percebemos, durante toda a projeção, que estamos diante de um filme feito com um orçamento não muito alto, porém, um filme primoroso, bastante cuidadoso. A trilha sonora, inclusive, assinada não só por Bia Paes Leme, como pela própria diretora, é perfeita ao retratar todo o clima narrativo do filme, sem contar a bela canção Coming Home, de k.d. Lang.
Evidentemente que aquele público que já amou e que já foi abandonado tem uma probabilidade bem maior de se identificar com a obra de Malu de Martino. Entretanto, independente de você ter ou não amado alguma vez na vida, ter ou não ter sido abandonado por aquele que você considerava seu grande amor, COMO ESQUECER é um filme que tem todos os melhores predicativos para ser visto e conhecido pelo grande público.
Mauricio Amorim é professor de Linguistica e Produção Textual da Universidade do Estado da Bahia, Cineasta e Colaborador do Cabine Cultural.