1964
Documentário do grupo Brasil Paralelo mostra narrativa que substitui o pensamento oficial que mostra Ditadura como período mais sombrio de nossa história
O que falar do documentário “1964: o Brasil entre armas e livros”?
Desde o momento em que foi exibido em pré-estreia, no domingo passado, data de aniversário do golpe militar de 1964, até o instante em que foi disponibilizado de forma gratuita pelo canal do Brasil Paralelo no Youtube o mundo das redes sociais no país só ouve falar deste assunto, e de novos termos que foram agregados à discussão, como revisionismo da ditadura ou nova narrativa do golpe, para ficar somente nos mais famosos.
A primeira observação que dá para fazer após assistir ao documentário que constrói com base em relatos e documentos históricos vindos do serviço de inteligência da extinta Tchecoslováquia é que o projeto possui uma qualidade narrativa (conceito cinematográfico mesmo) bem interessante e bem cuidada. O trabalho dos rapazes do blog Brasil Paralelo é bem feito, e difere de muitos outros produzidos de forma tosca ou com uma acentuada e simplista ideologização, seja para um campo político, seja para outro.
Porém, diferente do que os próprios rapazes pregam, o projeto, bem como o grupo Brasil Paralelo, defende uma tese que é a bandeira de luta de um grupo político e uma linha ideológica. Colocar-se como independente (termo bastante esquizofrênico de entendimento) ou imparcial é um erro tão grande quanto o de sites que publicam somente conteúdos de esquerda e se autodenominam independentes ou imparciais.
Então sabendo que o documentário levanta a tese de que o golpe de 1964 foi um golpe civil seguido de uma revolução militar seguida de um pequeno golpe militar, podemos dialogar com o conteúdo, que é parcial.
O diálogo pode começar pelas escolhas dos entrevistados.
Por mais que os documentaristas tenham relatado a falta de vontade de pessoas com um discurso diferente do pregado em “1964: o Brasil entre armas e livros” o projeto ganharia muito se pudesse contrapor as narrativas no próprio desenvolvimento do filme. Ao escolher mostrar somente argumentos que reforçam a tese inicial do documentário, de que não tivemos um golpe e que a ditadura foi um período infinitamente menos dramático e nefasto que o apresentado pela chamada “narrativa corrente”, o projeto dos rapazes acaba incorrendo nos mesmos defeitos dos filmes criticados por eles, que ‘aparentemente’ faz o mesmo, só que defendendo outra bandeira.
Ao conceder o protagonismo da narrativa para nomes como Olavo de Carvalho, conselheiro online do presidente atual, o Brasil Paralelo reafirma um viés ideológico que ofusca um pouco o resultado final do trabalho, que por conta disto acaba sendo naturalmente odiado por quem é de ‘esquerda’ e naturalmente amado por quem é de ‘direita’. Porém, não são estes públicos os mais adequados a julgar o trabalho. Vamos imaginar alguém de cabeça aberta a todos os posicionamentos, e que exercite a pluralidade política como modo de vida. Estas pessoas, que teriam mais credibilidade para julgar a obra do Brasil Paralelo, certamente verificará uma série de vícios que o documentário apresenta.
Mesmo quando a narrativa de “1964: o Brasil entre armas e livros” questiona criticamente dois dos termos mais nefastos desta época (tortura e censura), ele o relativiza, não dando a devida importância a este momento histórico que qualquer país deveria se envergonhar. Podemos estabelecer uma discussão sobre o apoio popular que as ditaduras militares tiveram (de fato, é notório que um dos braços deste regime foi o apoio popular), mas não podemos minimizar a tortura e a censura praticada pelo Estado. A cada voz levantada que relativizava estas questões, o selo ‘parcial e ideológico de direita’ era colado no documentário.
Outro erro decorre do fato de se comparar ações civis com ações do Estado. Uma coisa é nos depararmos com ações de censura imposta pela sociedade civil (inclusive as que aconteceram na pré-estreia do filme, no dia 31), uma coisa são ações de terrorismo ou tortura feitas por civis (revolucionários ou não). Ponto. Outra coisa absolutamente distinta e mais grave são estas ações sendo feitas pelo Estado, criando erroneamente uma legitimidade onde não deve haver. Nunca. Esta linha defendida pelo documentário acaba falhando em sua essência, e coloca o mundo civil e o Estado como conceitos semelhantes.
1964 filme
Mesmo assim, não cabe censura ao documentário, seja pela ala político-partidária, seja por militantes. “1964: o Brasil entre armas e livros” carrega consigo uma tendência de construção de novas narrativas para eventos históricos. Uma Democracia de verdade vai conseguir sobreviver a versões diferentes da consagrada nos livros históricos.
Assim o documentário de forma alguma fere a Democracia. Ele levanta uma bandeira polêmica, que merece cada vez mais ser estudada, e lembrada. Considero somente triste uma defesa do conteúdo produzido pelos regimes militares no país. Uma coisa seria defender que a introdução do governo militar em 1964 veio para salvar o Brasil de uma ditadura comunista, ou que nasceu para se alinhar ao pensamento americano e não soviético (lembremos que estávamos na guerra fria). Outra coisa é questionar se houve tortura, ou minimizar as ações de censura nesta época.
“1964: o Brasil entre armas e livros” tende a se constituir como um documento relevante para a história, mesmo que se rejeite por completo ou parcialmente seu conteúdo. O fato de ser parcial (não deveria ser vergonhoso se assumir) faz automaticamente do documentário uma peça de amor para os mais conservadores de direita (em sua quase totalidade) e peça de ódio para os esquerdistas (em sua totalidade). Para estes dois grupos o projeto não tem tanta relevância narrativa. Mas para a camada média da sociedade ele pode agregar informação, adicionar posicionamentos e sim, por que não, conhecimento.
Um povo evoluído é aquele que consegue receber informações de todos os lados e construir de modo autônomo suas convicções e crenças.
Assistam ao documentário, pois não fará nenhum mal.