Crítica

Crítica: “A Bruxa” faz assustadora travessia do naturalismo ao sobrenatural

A Bruxa – Divulgação

Sem sonhos, metáforas ou entrecho chauvinista, filme do norte-americano Robert Eggers resgata mitologia ocultista em impressionante composição pictórica

Por Adolfo Gomes

Filme tenebrista,  baseado em relatos seculares e no folclore norte-americano, “A Bruxa” (The Witch, CAN/EUA, 2015) é um impressionante mergulho na mitologia ocultista, sem subterfúgios psicológicos ou etnográficos.  É claro que o diretor estreante Robert Eggers, premiado no Festival de Sundance, incorpora parte desse imaginário ocidental sobre as bruxas, e até ensaia uma crítica ao chauvinismo e à opressão religiosa, não importa a época. Mas também mostra coragem suficiente para fazer essa assustadora travessia do naturalismo ao sobrenatural até o final, e com raro senso plástico, pictórico mesmo.

“Retrato de Magdalena”, do pintor tenebrista francês Georges de La Tour: inspiração pictórica na composição da atmosfera do filme

Temos visto com alguma frequência em recentes filmes ditos de terror, porém com pretensões artísticas e autorais, uma certa indecisão sobre o tipo de tratamento visual e narrativo a ser dado ao tema. O sobrenatural,  em muitos desses casos, é reduzido a um mero recurso estilístico – é o sonho assombrado, que só se revela como elaboração mental ao final da sequência; é  a presença do inusitado ou do fantástico à margem do espaço diegético do filme…Enfim, tudo isso para assegurar, preservar ou reforçar a construção naturalista da história.

Essa hegemonia do naturalismo, sobretudo quando se pretende fazer cinema a sério, portanto, para além dos gêneros cinematográficos (horror, suspense, ficção científica), é confrontada por Eggers a partir de um interessante deslocamento estético.

Pois se estamos lá, novamente,  à beira de uma ameaçadora floresta,  em algum rincão da Nova Inglaterra, território norte-americano,  entre os séculos 17 e 18, com o fundamentalismo religioso, uma vez mais, dando as caras, e uma família, núcleo original da opressão,  entre a natureza implacável  e o mundo oculto da bruxaria… Sim, o risco da metáfora,  da parábola política (“As Bruxas de Salem”, por exemplo), do discurso engajado sobre a misoginia latente em comunidades conservadoras (a associação ancestral da mulher ao maligno), é uma armadilha (para não dizer facilidade) quase incontornável.

Então, o que faz o jovem realizador norte-americano?  Leva sua batalha para a trincheira do pictórico. É na rigorosa composição visual do filme que Eggers impõe sua poética. O tom tenebrista, mais George De La Tour, do que Caravaggio (para lembrar dois expoentes desse curto, porém significativo movimento estético), torna verossímil, ainda que assombrosa, a passagem entre o mundo visível e as forças ocultas que habitam a natureza. E em “A Bruxa” essa transição não é natural, ela é violenta, bela e, em certo sentido, libertária. Afinal, será que alguém duvida que, para a jovem protagonista do filme,  ao fim da sua jornada,  restasse outra saída se não o sobrenatural?

Adolfo Gomes é cineclubista e crítico de cinema filiado à Abraccine. Curador de mostras e retrospectivas, entre as quais “Nicholas Philibert, a emoção do real”, “Bresson, olhos para o impossível” e “O Mito de Dom Sebastião no Cinema”. Coordenou as três edições do prêmio de estímulo a jovens críticos “Walter da Silveira”, promovido pela Diretoria de Audiovisual, da Fundação Cultural da Bahia.

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