Julieta
“Julieta”, novo filme de Pedro Almodóvar, atenua e conforma os percursos pelos labirintos das paixões do cineasta espanhol, a ponto de esvaziar completamente sua verve transgressora e kitsch
Por Adolfo Gomes
Não se deve esperar de um cineasta o mesmo filme, sempre. Nem se deve reprová-lo se o faz outra e outra vez. É algo mais sensível: descobrir e (a partir daí) testemunhar a poética de um artista, o seu desenvolvimento ou subversão. Pode soar nostálgico, pouco generoso, olhar cada filme de um realizador, como Pedro Almodóvar, na perspectiva do que já fizera antes. Mas se hoje dizemos que se trata – e assim ele assina – de um “filme de Almodóvar”, é porque parece incontornável a reivindicação – para não dizer afirmação – de um status de autor.
“Julieta” (ESP/2016), seu mais recente trabalho, retoma o classicismo calcado no melodrama hollywoodiano dos anos 1940 e 50, após a concessão mais episódica e irreverente de “Os Amantes Passageiros”. Atribui-se a essa elegância formal, ao código dramático mais convencional e à beleza da “fotografia” e das trilhas sonoras, a “maturidade” de Almodóvar. No entanto, há de se ter cuidado se essa “maturidade” não se converte em condescendência, alguma preguiça ou até comodismo.
Na zona de conforto do melodrama, diante do gênero estabelecido é ainda mais ariscado trabalhar, inventar…Mas falta risco à mise-en-scène de Almodóvar. Tudo soa meio que atenuado, como se as escolhas formais, dramatúrgicas, a decupagem em si, em nenhum momento problematizasse, colocasse em perigo o destino dos seus personagens, da narrativa, do nosso olhar sobre a alcova daquele drama familiar. O outrora labirinto das paixões do autor espanhol surge, aqui, demasiado planificado, calculado a ponto de esvaziar o seu percurso, o seu “pathos”, ora kitsch, por vezes sublime. Imperfeito.
Resta a emoção, o afeto e outros elementos subjetivos que dependem mais do nosso envolvimento com a obra do que com o que há de concreto, visível e contundente no filme. É a seda vermelha que emoldura o logo da produtora de Almodóvar, “El Deseo”, a realçar o artifício ou simplesmente nos lembrar de que aquelas paixões, os sentimentos irrefreáveis de outros tempos são, hoje em dia, apenas um índice publicitário. É ainda o plástico de embrulho, da cena de abertura, que elimina a fricção, a possibilidade da fratura, da perda, e garante a todos nós uma viagem tranquila. Chegamos ao outro lado, sem nenhum arranhão e prontos a deslocar o nosso olhar para outras imagens, com a indiferença de um autômato.
Adolfo Gomes é cineclubista e crítico de cinema filiado à Abraccine. Curador de mostras e retrospectivas, entre as quais “Nicholas Philibert, a emoção do real”, “Bresson, olhos para o impossível” e “O Mito de Dom Sebastião no Cinema”. Coordenou as três edições do prêmio de estímulo a jovens críticos “Walter da Silveira”, promovido pela Diretoria de Audiovisual, da Fundação Cultural da Bahia.